sábado, 27 de dezembro de 2008

Queda Livre

Sentado no parque, encarando uma cascata artificial, cercado por árvores sem pássaros e flores de vinil. Música relaxante sai dos alto falantes, ritmando os passos de mulheres de meia idade em sua caminhada matinal. Tudo é simétrico. Tudo é sem vida. Tudo é silêncio. A batida do meu coração está fora dessa suave sincronia. Meu estômago geme de dor e minha cabeça pulsa na ressaca e na tormenta de furiosos pensamentos que não cessam. Eu não pertenço a este lugar, eu não me encaixo nesta cena. Para onde então? De onde foi que eu me perdi? Eu me sinto em carne viva, dolorido e indefeso. Todas as feridas expostas, todos os desejos revirados, mente e espírito postos em xeque. A verdade veio à tona, mas isso não significa que eu estava preparado para lidar com ela. Eu olho ao meu redor e não sei o que esperam de mim. Eu olho para meu interior eu não sei como preencher esse vazio. Talvez o limite da razão humana seja reconhecer que é refém do instinto, como no momento eu percebo que estou em queda livre e nada posso fazer a respeito. E saber não traz nenhum alívio. Talvez o alívio seja o final da queda. Talvez não haja resposta. Talvez a vida seja um paradoxo sem sentido. Talvez eu seja apenas um desvario de um deus insano, um breve delírio que brilhou na escuridão do infinito antes de desvanecer pela eternidade. Talvez eu esteja apenas confuso. Talvez eu seja apenas um garoto. Evitar o sono parece mesmo uma maneira estúpida de lidar com tudo isso, mas o que eu devo fazer a respeito dos meus sonhos? Como eu posso me encarar agora? Tudo que eu sei é que eu odeio essas flores falsas e que o silêncio das árvores é um peso sobre mim.

 

Veja lá fora quem foge tão cedo

Veja o menino que quer ser maior que os deuses

Tentando cegamente desvendar o segredo

Sequer consegue desvendar a si mesmo 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Glória

Toda dia, na mesma hora da noite, eu sinto essa dor de cabeça e esse vazio no peito. Eu tenho que ficar vadiando por ai, dando voltas no quarteirão, para só então ir pra cama, completamente exausto, evitando assim ter que passar horas encarando a escuridão na desagradável companhia dos meus pensamentos. Eu estive tempo demais comigo mesmo, me analisando, olhando através dos meus desejos mesquinhos e das minhas frustrações e agora eu não suporto mais ser o fracasso enrustido que eu sou. Eu queria ter a coragem de me tornar um fracasso completo. Eu queria ter a integridade que se precisa ter para desistir. Eu ainda sou tolo o bastante para sonhar com alguma forma de recompensa, algum tipo de satisfação narcisista. Eu ainda sonho com glória, seja lá o que for isso. 

Eu li a respeito de um menino Buda que vive no Nepal. Aparentemente ele pode ficar meses sem se alimentar, meditando e peregrinando pelas selvas. De vez em quando ele aparece e conversa com as pessoas. Eu tenho uma inveja do caralho desse cara. Ele tem 18 anos e já descobriu que o custo da liberdade é desistir de si mesmo e vomitar essa porra toda que te empurram goela abaixo desde o minuto que você nasce. Perambular pela floresta em busca de paz interior e autoconhecimento, o que pode ser mais transgressor do que isso? “Fodam-se vocês com suas patéticas ilusões amorosas e seus planos de carreira! Eu não preciso dessa merda! Isso é veneno para o espírito!”. 

Sabedoria é mesmo uma qualidade dos fodidos, dos sem esperanças, daqueles que ultrapassaram a cortina de fogo do egocentrismo e descobriram o que há por trás da miragem. Eu queria ter a audácia para isso, mas eu sou mimado demais. Muitos sonhos de glória ainda terão de ser despedaçados antes que eu decida partir para a escuridão das selvas e não me sinta só na companhia dos meus pensamentos.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Amor

Eu espero amor do infinito ao começo
Lanço meu peito em desafio ao desespero
Amo em resposta ao vazio do teu desprezo
A nossa dor é a sobra do mesmo inteiro

E não me importa o teu exército
Eu sou eterno, pois o universo
É feito de mim

Eu te espero em toda a parte
Teu sangue aquece, pois minha carne
É feita de ti

Eu vejo o infinito refletir o segredo
Secreto é som que ecoa em meu peito
Infinitos sonhos reverberam o desejo
O nosso ódio é a raiz do mesmo veneno

Eu trago luz à tua miséria
Eu sou a quebra, pois minha guerra
É feita assim

A tua baioneta não me derrota
Eu sou a afronta que ressoa
Viva até o fim

A minha pele encobre um precipício
Sonhos despedaçados levam ao paraíso
Pois a travessia é feita de dor
Além da dor resta apenas vazio

Meu espírito quer a redenção da verdade
Libertar o ego servil ao disfarce
Pois o infinito é feito de amor

Além do amor resta apenas miragem

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Vermes

Feridas, delírios, fetiches
Um abismo que busca consolo
A amarga verdade é tão simples
Seu silêncio perturba meu sono
Paixão que conduz a demência
Instintos perdem o controle
Um amor maior que a existência
E tudo é tão vazio como antes

Por favor, ainda não me abandone
Faça tudo, mas fique por perto
Esse desesperado nojo que me consome
É o mais perto que eu já tive de um afeto

Em busca da droga perfeita
Percorro galerias de ilusões
Abandono a noite desfeita
Um anjo sussurra revelações
Auto-indulgência me leva ao ridículo
Espero carícias na escuridão
Seu toque é vulgar e abrasivo
Você é um bom motivo para a solidão

Ainda enxergo o menino
Que grita por socorro
Drenando o espírito
Até um ponto sem retorno
Madrugadas se perdem
A cidade banhada em sangue
A selvageria me impele
Mas nunca é o bastante
Da euforia ao lamento
Eu só desejo vingança
Se aconchegue em meu peito
E se deleite com as chamas

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Carcaças

A metrópole pulsava quando o céu violeta elétrico da noite foi tingido pela lava da aurora. A atmosfera envenenada cobria as intermináveis malocas da periferia, solidificadas sobre lodo e miséria. Uma multidão de mutilados trafegava por entre as avenidas imundas que ligavam o subúrbio ao centro, levados pela transe tóxica dos veículos de transporte de  massa. Práticas milenares de genocídio cotidiano garantiam a moção das engrenagens da grande máquina. Primatas presos a um estágio intermediário da evolução onde a percepção é limitada por cinco sentidos sensoriais, dogmas religiosos e tabus sociais. A política de Estado é o infanticídio via lavagem cerebral. O processo consiste em saturar a mente da população ainda na infância com valores decadentes e a abstração da capacidade criar/questionar. Os resultados são humanóides adulterados, enclausurados na ilusão de sua própria individualidade, masturbadores arrogantes cheios de certezas e vazios de imaginação. Fábricas movidas por operários lobotomizados e estimulados por cocaína, servindo eternamente a manutenção de sua própria escravidão. Virá o dia em que das entranhas fétidas de um aterro sanitário, um anjo com asas feitas de lixo irá pender sobre toda nossa sordidez infecciosa e anunciar que o apocalipse já aconteceu, nós apenas não percebemos, ocupados demais com nossas guerras tribais, interesses mercadológicos e fantasias românticas de narcisismo depravado. O mundo acabou, nossas almas foram julgadas e condenadas. Ninguém foi avisado, pois nós matamos todos os nossos profetas. Todos eles apodreceram em sarjetas ou quartos de hotéis baratos, com os corpos decompostos por heroína e álcool, as mentes feridas por mentiras, desprezo e intolerância. Nosso modo de vida insano matou as únicas vozes sábias e agora nós podemos nos deleitar com nosso banquete de sangue e sêmen, alimentando continuamente nossos cérebros atrofiados de holocausto em holocausto. A orgia das sensações satisfazendo nosso instinto anêmico de auto-preservação, a ambição e angústia são nossas motivações existenciais. Tumores desenvolvidos via estática, a ilusão de liberdade é a forma mais eficiente de opressão. Carcaças errantes e sem sonhos, somos viajantes  abandonadas a deriva por qualquer força criadora que tenha cometido o erro de nos permitir existir.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Os Tigres do Jardim

Toda noite o ritual se repete. Antes de apagar as luzes tenho que apanhar a pilha de gatos sobre a minha cama e jogá-los no quintal. Lancelot se esconde embaixo da cama, Bituca protesta com um miado estridente, e o velho Lestat apenas suspira conformado. Tem um bando deles nessa casa desde que eu me lembre. Foram tantos, alguns de presença fugaz e pouco marcante, mas outros com histórias memoráveis.

O primeiro deles foi o Farinha, um gato amarelo e rabugento que dormia sobre uma pilha de jornais velhos. Ele não era muito brincalhão e me arranhava às vezes, mas eu adorava ver as lutas em que eles se metia. Sempre que algum gato de rua invadia seus domínios, ele prontamente se lançava em duelos pavorosos, cheios de rosnados assustadores e quedas espetaculares do alto do telhado. Tinha um gato siamês gigantesco que sempre vinha roubar comida. Farinha nunca fugia da briga, apesar de ser bem menor. Ele era meu herói, mas infelizmente uma dessas batalhas acabou custando caro demais. Uma das feridas de guerra infeccionou e Farinha morreu. Ele tinha cinco anos.

Alguns anos depois apareceu o Juan, disparado o gato mais insano que eu já tive. Ele só ficou comigo por uns seis meses, mas foi uma estadia intensa, onde protagonizou as cenas felinas mais bizarras que eu já vi. Uma vez ele saltou sobre as costas da minha cachorra e por alguns segundos pareceu galopar no lombo dela. Ninguém acredita em mim quando eu conto essa história. De fato, eu mesmo mal acredito. Juan sempre ficava preso no alto da goiabeira e o resgate durava horas, noite adentro. No dia seguinte, lá ia ele de novo, sempre fora do nosso alcance. Ele tinha o hábito de dar cambalhotas, esmurrar ursinhos de pelúcia e jamais cagava fora de sua caixa de areia. Uma manhã simplesmente sumiu e nunca mais voltou. Espero que alguém o tenha adotado e que ele tenha vivido bem.

Logo depois os gêmeos vieram, Lestat e Lucrécia. Lucrécia era medrosa, tinha medo de abacates, sacolas de papel, instrumentos musicais e do reflexo dela no espelho. Mas eram bonés a sua grande fobia. Pegar a Lucrécia no colo com um boné na cabeça era garantia de alguns arranhões. Era uma gata especialmente carinhosa, capaz de ficar horas ronronando no meu colo, afofando de maneira irritante as minhas pernas com suas garras afiadas. Tinha um miado baixo e curto diferente de qualquer outro gato. Morreu de câncer aos oito anos.

Quem nunca se bicou muito com Lucrécia foi Bituca, a nossa doce pantera selvagem. Tímida com estranhos, histérica com os donos e terrível com os outros gatos. A única gata no mundo que eu conheço que é capaz de rosnar como um cão. Vive brigando com os outros gatos, morde todo mundo, me arranha toda hora.  Mas não sai do meu colo e reclama quando não lhe dou atenção. Realmente uma mulher misteriosa essa gata cinzenta.

Por último o meu velho amigo Lestat. Onze anos de vida, mas poderiam ter sido nove, já que há dois anos ele se meteu numa briga com um cão labrador. Ele saiu vivo dessa de maneira incrível, mas não sem o custo de uma pata quebrada. Hoje ele manca orgulhosamente por ai, gordo e sereno como um Buda. Não conte para os outros gatos, mas é ele o meu preferido. Ele é a síntese de tudo que apreciou nos felinos. Silencioso, paciente, imprevisível, companheiro e extremamente orgulhoso. Aqueles que detratam os gatos e os acham arrogantes são os que verdadeiramente precisam ser mais humildes. Os gatos são nossos parceiros, não nossos servos, e isso diz muito do caráter de quem os despreza. Por que um gato deveria se curvar para um humano? Por que essas criaturas magníficas nos devem alguma satisfação? Se os cães quiseram se comportar assim, o problema é deles. Nós oferecemos comida e abrigo, eles nos pagam com afeto e sabedoria. É possível aprender muito com essas criaturas suaves, noturnas e poéticas, donas de espírito irremediavelmente livre. Dóceis e indomáveis, me sinto muito grato a eles por hoje ter um pouco de felino dentro de mim.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Espectros

Olho para todos os rostos. Não vejo nada. Eles nada me oferecem e eu nada tenho para dar em troca. Nenhuma expectativa, nenhum futuro. Apenas passado e promessas. Eu sorrio para os rostos. Eles sorriem de volta. Sorrisos vazios, sem vida, uma contorção facial, nada mais. O som das palavras é monótono, desestimulante. Todos nós já ouvimos essa conversa antes. Todas as conversas levam ao mesmo lugar. Todos os rostos são iguais no final. Eles olham para mim e não me enxergam, apenas me julgam, uma velha memória, um objeto decorativo de suas rotinas. Eu os vejo da mesma maneira, e no fim somos todos espectros, corpos translúcidos sem valor, reflexos de nossa própria apatia. E quando eu busco seus olhos, procuro algum brilho, espero qualquer sinal de que ainda sou capaz de provocar alguma faísca. Mas seus olhos são sempre opacos, tão opacos quanto os meus.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Mosca

Chutei a carcaça da mosca morta para fora do meu quarto. Eu a matei por causa do zumbido, o barulho me irritava. Sem dúvida um motivo mesquinho para se matar. A mosca só estava seguindo seu instinto, batendo suas asas, se alimentando dos meus restos, se aproveitando da minha imundice. Talvez eu só a tenha matado por instinto também. Qual a diferença entre nós dois afinal? Matéria orgânica de curta existência, regida pelo impulso de sobreviver por mais um segundo. É fácil colocar a humanidade num pedestal, o topo da cadeia evolutiva, os jardineiros do Éden. Não é assim que eu me sinto. Não há nenhuma racionalidade por trás dos meus atos, não há nenhum mecanismo lógico movendo minhas ambições e não há nenhum sentimento divino guiando minha vida. Apenas atividade hormonal intensa, do meu cérebro aos meus testículos, um mero primata bípede. Comer, cagar, dormir e foder, eis o sentido da vida. Todo o resto é apenas um embuste para comunicar o resto do mundo sobre o seu progresso na realização de tais objetivos. O amor por exemplo. O amor é a forma que suas glândulas cerebrais dizem ao seu corpo: “Procrie, fique por perto do seu parceiro e ajude a cria crescer”. É isso, um mecanismo de sobrevivência da espécie, uma arma evolutiva. Agora eu penso na mosca morta. O instinto ordenava que ela se aproximasse de mim, rastejasse por minha pele e desovasse em minhas feridas. Quando larvas eclodissem em minhas chagas e se desenvolvessem alimentando-se de meu pus, a continuidade da espécie estaria garantida. Então me questiono: “Qual a diferença entre o amor e o instinto da mosca? Atração carnal, cópula e nascimento. Não é isso o que move o amor?” Bem, isso não importa mais para essa mosca agora. Eu a matei, talvez por mais do que pelo zumbido. Talvez eu a tenha matado pela sensação de controle, pelo anseio humano de interferir e subjugar a natureza ao seu redor. Mas novamente, eu me vi sobrepujado pelo instinto.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Contra a Parede

Eu me sinto abençoado
Meus lábios cortados
Nunca beijaram tão bem

Estarei sempre em dívida
Sua calorosa mentira
Fez eu me sentir alguém

Em silêncio fulguro
O amor é um estupro
Contra a minha estupidez

Eu sinto falta do desespero de ser seu

Entrego-lhe a mensagem
Sem tempo para miragens
Minha carne exposta a você

O mesmo velho perfume
Que me atraí e me pune
Voltou a me vencer

A marca de suas unhas
Da cor da minha fúria
Que o tempo não desfez

Eu sinto falta do que se perdeu contra a parede

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Para o coração de cada homem, uma estrada perdida

Eu me enganei quanto a Enrico Roccato. Achei que ele fosse um clichê, um niilista raso desprovido de humildade e bom senso, um moleque cheio de rancor querendo descontar no mundo a sua ira. Não, esse não era ele, era eu. Era eu o pivete arrogante o tempo todo. Enrico é muito mais do que isso. Hoje eu o vejo como um protótipo de um animal iluminado, lúcido demais para o nosso tempo. Desde que eu o conheci, há cerca de um ano e meio, minhas certezas foram pulverizadas e a realidade se tornou cada vez mais tênue sob minha percepção. Enrico não tem laços familiares, não tem ideologias, não tem crenças, não tem um trabalho, não tem senso cívico. Mas isso são detalhes irrelevantes, meros traços de seu caráter. O segredo por trás de sua sabedoria é que ele não tem esperança. O que é a esperança senão a razão de todos os anseios? O que é a esperança senão um eufemismo para a agonia? O espírito de um homem só será livre quando a esperança se for, e nele ainda restar a vontade de viver. A vontade selvagem de fazer carne e alma pulsarem até o último suspiro. Sem esperança, sem remorsos, sem hipocrisias. Enrico viu que a questão da vida não é o domínio da razão sobre os instintos, e tampouco o contrário. Instinto e razão são duas expressões da mesma natureza, da mesma origem, que é a vontade de existir e provar sua existência ao resto do universo. Por trás de cada ação, de cada conversa, de cada paixão, há um homem gritando por atenção, para que todos notem quão brilhante sua alma é, para que todos sintam o calor de seu coração em chamas. Enrico desistiu disso. Ele sabe que ninguém poderá conhecer a real essência de outra pessoa. Por isso ele se satisfaz com seu próprio brilho, com suas próprias chamas. Ele não mais espera por compreensão externa, ele não precisa de desculpas por ser o que é. Diante desse homem, venho perdendo a fé em tudo em que me ensinaram, e não vejo mais propósito em fazer o que supostamente é o correto. Tudo em que eu consigo pensar é que a estrada para redenção leva a um abismo e por mais que meu espírito brilhe, por mais que meu peito se contorça em chamas, nada será o suficiente para satisfazer o despropósito de minha existência. E por mais que eu me questione, não consigo me ver livre da esperança de chegar ao fim do caminho e encontrar uma resposta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Estigmas

Nossa busca espiritual recomeçou às oito da noite de uma sexta-feira. De boteco em boteco, de puteiro em puteiro, mulheres nas esquinas, mulheres na pista, “Ei mano, vai casar com esse baseado? Passa a bola, porra!”. Em algum momento Enrico perguntou “Já viu Deus agora?”, “Não, ainda não.”, “Então bebe mais, seu merda!”. Eu bebi, mas Deus não apareceu naquela noite.

Eu sempre tive uma obsessão por anjos. Quando eu era criança ficava olhando os vitrais da cúpula da igreja do meu bairro e ficava fascinado com um em particular, que mostrava um anjo segurando o braço de Abraão, impedindo que ele sacrificasse o filho. Sonhei inúmeras vezes com anjos, li sobre o assunto e continuei acreditando neles por um certo tempo, mesmo depois de parar de crer em Deus, sei lá porquê. O que eles representam para mim afinal? Por que eu continuo procurando por anjos nos lugares mais sórdidos?

“Budismo é a religião mais inteligente que existe”, eu afirmei, deitado na mesa de sinuca. “Justifique-se”, ordenou Enrico, sentado no chão. “Pois não. O budismo, e eu me refiro ao pensamento original de Buda, não as formas como ele é praticado hoje em dia, que não passam de distorções e fusões com outras religiões, é a religião mais inteligente por que nela não existe Deus”. Enrico ficou em silêncio reflexivo por alguns segundos. “É um bom ponto. Você tem mais algum?”. “Sim senhor. Um aspecto do budismo que me agrada é que ele prega a iluminação espiritual através do questionamento e do auto-conhecimento. É exatamente o oposto das religiões monoteístas, que pregam a subserviência. A posição básica do catolicismo é ficar de joelhos, por exemplo. Outra coisa, na cultura grega, Prometeu é o herói da humanidade, aquele que trouxe luz e o conhecimento para todos. Sabe quem corresponde a ele no Cristianismo? Lúcifer. E o que ele é considerado? Um arrogante desgraçado que questionou Deus e quer foder com todo mundo...”. Eu poderia ter continuado por horas, mas o dono do bar apareceu: “Já tá fechando aqui. Vão blasfemar em outro lugar.”

Nós estávamos deitados na grama, no alto de um morro, a beira da Via Anchieta. O velho Chevette tinha ficado alguns quilômetros para trás no acostamento, com a bateria arriada. Obviamente nós estávamos bêbados, por isso largamos o carro, temendo ser novas vítimas da lei seca. “Eu sinto pena desses otários que procuram uma buceta ou um caralho por aí que vai redimi-los de toda a miséria que ele sentem, de todo esse lixo que eles acolhem. Então o objetivo da vida é esse? Um prêmio de consolação?”, praguejou Enrico. “O que é o paraíso afinal?”. “Eu não sei, nunca pensei muito sobre ele”, eu respondi. “Quando eu tinha uns nove anos e fazia catecismo só tinha medo do inferno”. Enrico concordou com um gesto. “É isso que eles nos ensinam, a ter medo da derrota, da humilhação, de ser um fudido. É pra ninguém ter coragem de correr riscos, questionar esse padrão escroto de vida. O paraíso é só uma promessa, mas o inferno...”. Do outro lado da pista o Sol começava a nascer. Então eu falei: “O lance da vida é se jogar de cabeça e aproveitar a brisa da queda. As pessoas ficam na beira do abismo, se perguntando se devem pular ou não. Elas deveriam se perguntar o que é que as prende ao chão”. Não tenho certeza do quis dizer.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Nem Migalhas, Nem Ilusões

Olho para o infinito e busco a mim mesmo
Procuro saídas, um sonho que valha a pena
Sentimento impreciso, mágoa, fúria ou medo?
Condenando a vida a repetição da mesma cena

Outra noite de miragens e eu não sei o que sou
Não é mesmo um milagre que alguma coisa sobrou?
Não me sinto inteiro, eu pressinto sufoco
Devo ser sereno quando sonhos ainda são sonhos?

A dúvida me lancina, evito confrontos
Cultivo um peito cheio de rancor
Paixão que fascina a um ponto sem retorno
Acordo refeito, mas ainda sinto o ardor

O silêncio é farsa, o silêncio é dor
O que eu tenho não basta e o que basta é tão pouco
Eu não tenho respostas, eu mal sei as questões
Nada disso me importa, nem migalhas, nem ilusões

Meu jogo favorito é fingir pretensões
Um fracasso a mais, mas aprendi a lição
Tingindo de tinto meus mil perdões
Esquecido em paz terei redenção

domingo, 2 de novembro de 2008

Majestade Esfarrapado

Quando ele vinha, as crianças riam
Sempre muito altivo em seus farrapos
Seus adornos eram flores e feridas
Pendia como um anjo mutilado

Ele me disse: “Meu amigo,
Eu era a sua cara com sua idade
Eu já tinha talento pra ser mendigo
Orgulhoso demais para ter vaidade”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado

Acendeu a brasa do cachimbo
Tirou uma cachaça do casaco
“Sonhar é tudo que eu preciso
Quem sonha nunca está errado”

Marinheiro louco espera a maresia
Brisa boa como um beijo demorado
“A felicidade é mesmo uma menina
E cortejá-la é o que eu faço ”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado

Espectros dançavam na esquina
Se aqueciam com o fogo da madrugada
Cantaram até nascer do dia
Então o cortejo seguiu a estrada

Nunca mais vi meu amigo
Fiquei com tudo que foi ensinado
“Na vida o maior perigo
É deixar a fome te fazer de escravo”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Performance

Carlo era o pior suicida do mundo. Oito tentativas em seis anos, todas fracassadas. Suas motivações eram as mais variadas, de desilusões amorosas ao simples tédio de existir. Era um sujeito pequeno e taciturno, trabalhava como bibliotecário e dedicava suas noites ao seu projeto de morrer. Sua última experiência, envolvendo um maçarico, uma corda e uma pesada peça de chumbo, resultou em concussões, feridas, mais dor e nenhum alívio. O seus sucessivos fracassos e seus elaborados sistemas de suicídio chamaram a atenção da comunidade artística internacional. Agora as suas máquinas de autodestruição estão expostas em museus como obras de rara criatividade e hoje Carlo é um feliz artista performático. Carlo, o suicida, nos mostra o absurdo de viver, dizem os críticos.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Paraíso a qualquer segundo

Meditação transcendental lúdica suburbana sem
seqüelas
Iluminação espiritual anunciada nas páginas

amarelas
Masturbação coletiva tântrica hedonista

pós-moderna
Nirvana plastificado comprado na boca da

miséria

Diagnósticos psicanalíticos produzidos em escala industrial
Autoconhecimento instantâneo introduzido através de sonda retal
Consciência limpa manufaturada e embalada para uso comercial
A decisão corporativa afirma que todo bem justifica todo o mal

Filosofia libertária divulgada em intervalo da telenovela
Projeto de marketing anuncia o altruísmo agressivo da nova era
Cristão pagador de impostos celebra a chacina na favela
Deus em forma de consolo oferece um orgasmo a cada reza

Neo-romantismo idealizado propaga a eternidade do amor banal
Comida macrobiótica saturada por proteínas de coliforme fecal
As chagas de Cristo corrigidas através de cirurgia plástica espiritual
Revista semanal reporta as maravilhas da lobotomia recreacional

A utopia de um moribundo
É o paraíso a qualquer segundo
E o mundo será mudo
Enfim

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Noite e Dia

Perambulando ao redor das mesmas ruas,
Como mariposas bêbadas sempre atraídas
Pelo traiçoeiro brilho artificial do Sol noturno,
Lamentamos a falta de perspectivas na
Repetição de rituais milenares já saturados
De embriaguez sistemática e filosofia etílica.
A mesma noite, revivida inúmeras vezes.
Os mesmos versos declamados em ordem
Aleatória. Milhares de bocas comprimidas
Em um único beijo, disseminando infecções
E os demais efeitos colaterais, visíveis
Apenas sob a luz do dia.

Ela veio
Veio junto ao Sol
Junto ao sereno no lençol
Sereno, eu vejo o fim

Ela veio
Veio com a aurora
Com o perdão pela demora
Perdão por ser assim

Contra a mentira que me versa
Controversa tatuagem
Trago-lhe a imagem
Deste verso que não fiz

Clara em minha mente
Claramente uma inverdade
Delicada crueldade
Cruelmente ela me quis

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Turista

Sete e quarenta da manhã. Esqueci de desligar o despertador. Não tenho razões para acordar cedo hoje. Ontem à tarde recebi o comunicado de demissão da corporação. O motivo foi “conduta de trabalho inapropriada, baixa produtividade e falta de motivação”. Um curso de “reeducação de hábitos” foi sugerido. Não sei se o dia amanheceu limpo ou nublado, pois a vista da janela do meu quarto é bloqueada por um muro. Mas posso sentir que está muito frio. Enrolo-me no cobertor e volto a dormir.

Faço minha refeição em frente ao televisor. Assisto uma reportagem sobre uma onda de aparições sacras em diversos pontos das cidades. Santos surgem nas vidraças de arranha-céus, a Virgem Maria brota em uma gigantesca mancha química no asfalto, e o sangue de um mendigo assassinado forma os graciosos contornos de um anjo. Os especialistas dão suas explicações lógicas. Os clérigos falam em sinais. Os fiéis continuam a rezar. Mastigo minha ração e o gosto artificial não me satisfaz.

No banco do metrô escuto duas jovens conversando. Fico impressionado com a tamanha segurança que elas têm ao expor suas certezas banais, suas ambições fúteis e seu estilo de vida promíscuo. Pergunto-me se minhas idéias soam assim tão vulgares aos outros. Provavelmente não, pois eu raramente falo em público. No departamento de relações trabalhistas me informam que minha ficha foi classificada como “não-funcional” e ficará assim até que eu completo o curso de reeducação. Uma unidade de treinamento próxima a minha casa é indicada e os créditos da rescisão contratual são depositados em minha conta. Nas escadarias do prédio um pedinte é expulso por seguranças.

Caminho de volta para casa. Respiro fumaça, absorvo ruídos, cruzo com os demais humanos em suas silenciosas caminhadas rumo ao tempo perdido, sempre sob a vista das torres de vigilância. É mais seguro assim. Meu estomago dói. Não enxergo o horizonte. Sinto claustrofobia. Eu não queria viver aqui, sequer queria me formar. Tinha medo de dizer a minha mãe. Tinha medo de desistir. Procuro um espaço aberto, caminho em direção a periferia. Queria viver longe das muralhas, longe dos telefones e dos planos de carreira. Minha pressão está baixa. Sento-me sobre uma lata de lixo. Vejo um garoto correndo da policia. Ele atravessa a rua, pula uma grade e desaparece. Os policias se entreolham constrangidos. Caminho na direção do inicio da perseguição. Em um muro negro está escrito em vermelho “A vida é um crime”. No chão a lata de spray jaz abandonada. Os policias dizem que eu devo ir para casa, pois está escurecendo e ali é perigoso. Obedeço em silêncio e levo meu espírito não-funcional de volta para as avenidas principais.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Tormenta

Opacos
Os meus olhos sempre opacos
Até você surgir
E destruir minha redoma

Agora toda tarde
Toda tarde da noite
Eu quero mais uma gota
Mais um pouco em minha boca
Pouco à pouco sem escolha

Êxtase
Sinto-me sagrado
Espírito aprisionado
Um eco do nada

O meu destino
Não corresponde ao seu futuro
Embriagado de sorte
Abençoado e confuso

Agora toda noite
Toda noite suja
Eu quero um pouco mais pura
Mais calma em minha fúria
Pura maldade sua

A mentira me enerva
O meu corpo aquecido
Eu quis esta quebra
No limite do instinto

Venha ao meu lado
Efetue o seu abuso
Golpeie com firmeza
Também farei meu uso

Cuspa em meus olhos
Faça com que eu te obrigue
Brinque com meu sono
Se meu sonho te aflige

Aos meus irmãos o meu sangue
Ao meu vício os meus rins
Ao meu delírio o meu córtex
O coração fica para mim

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Confraria

O rosto de Enrico estava horrível. Nós não somos nenhum exemplo de crianças saudáveis, mas ele estava pior do que o habitual. Após passar mais de um dia desaparecido, ele me ligou às seis da manhã, sussurrando para que eu fosse buscá-lo. “Onde? Puta merda! Como você foi parar ai?”. Enrico havia sumido logo após uma consulta no dentista. Enquanto não havia ninguém na sala, ele decidiu ingerir um pouco de anestesia, que aparentemente causou um forte efeito após se misturar com as inúmeras substancias já presentes no organismo do menino. “Me lembro de sair do consultório tropeçando. Andei sei lá quanto tempo até chegar a um ponto de ônibus. Ai vinha um ônibus escrito “Liberdade” e eu acho que interpretei isso de maneira literal”. 20 horas depois ele despertou em uma lixeira nos fundos de um restaurante chinês, coberto por biscoitos da sorte estragados. Ele tinha um galo na cabeça, um pulso bem machucado e os joelhos esfolados. O que ele não tinha mais era sua carteira. “Sabe, vendo toda aquela sorte jogada fora, eu fiquei pensando na ansiedade humana de antecipar o fim. Entende?” Sim Enrico. Não se alcança a liberdade de ônibus, o nosso destino não está num pedaço de papel e muita vezes as nossas certezas não passam de lixo amanhecido.

“É impossível criar um ser humano funcional. Não importa como você crie uma criança, ele vai crescer para virar uma criatura grotesca como todos nós. Olha só para nós dois, eu e o Gabriel, por exemplo,”, disse Enrico, apontando para mim e para ele mesmo, repetidas vezes, enquanto discursava sua tese para uma amiga nossa. “Eu venho de um lar despedaçado, pai ausente, mãe cachaceira. Porra, eu passei a maior parte de minha infância em uma boate, sendo pajeado por um travesti. Olha só o que eu virei.”, ao dizer isso ele abriu os braços e sorriu forçadamente. “Mas por outro lado, nosso colega aqui. Família estruturada, pai e mãe carinhosos, irmã e primos companheiros, tios, tias, avôs... escola, brinquedos, cachorrinhos... e olha só pra ele! Ele é tão paranóico, depressivo e socialmente inapto quanto eu! Não tem jeito, você sempre vai foder com a cabeça da criança, não importa como você a eduque.” Enrico olhou para mim em busca de apoio e eu respondi com um gesto afirmativo. A nossa amiga olhou alternadamente para mim e para ele antes de declarar: “Ah, vocês estragam tudo...”. Cinco minutos antes, ela estava alegremente falando pelos cotovelos sobre o fato de sua irmã estar grávida. Ao ver a expressão levemente angustiada no rosto da garota, Enrico sorriu triunfalmente.

“Qual é o seu signo?”, me perguntou um cego no metrô.
“Touro’, eu respondi. “E do seu amigo?”, ele indagou ao mesmo tempo que acertava Enrico com uma bengalada na perna, enquanto o mesmo se pendurava na barra de apoio do vagão. “Ele é de escorpião”, eu respondi. “Bom, uma boa dupla”, afirmou o velho, fitando fixamente o infinito com seus olhos vazios. “Você é um criador, e ele um destruidor. Mas não no mau sentido. No sentido de derrubar velhas estruturas, jogar fora o que não presta”. “É, ele é meio iconoclasta...”, eu disse, enquanto tentava me desviar de Enrico, que estava em meio a uma perigosa acrobacia. Ele ficou de cabeça para baixo, com as pernas presas na barra, observando o cego. Após alguns segundos, ele perguntou. “Você acredita que os astros influenciam nossas personalidades?”. O velho balançou a cabeça. “Os astros não influenciam nada, eles apenas contam uma história. Se você olhar bem no fundo do universo, à distância de 13 bilhões de anos luz, você vai ver o inicio de tudo. Em algum lugar está também o fim. É uma questão de observar da maneira correta”. Enrico, a essa altura extremamente vermelho pela pressão sangüínea em sua cabeça , questionou mais uma vez. “Quer dizer que não importa o que eu faça, tudo já está definido?”. O velho tornou a balançar a cabeça. “Não garoto. Você já fez. Tudo já está feito”. Quando descemos do metrô, Enrico parecia extremamente tonto, e eu não acho que foi por causa de suas acrobacias.

Uma vez fomos expulsos de um puteiro e eu me lembro de berrar para um segurança: “O fato de eu ser um merda não te dá o direito de me tratar como um!”, Foi uma frase extremamente difícil de elaborar no estado etílico que eu me encontrava, mas pareceu causar algum efeito no sujeito, ainda que fosse cômico. Alguns meses depois eu repeti, de maneira patética, a frase para uma garota que me deu um fora. Lá estava, a mesma expressão confusa, uma mistura de piedade com vontade de rir. Talvez a minha intenção fosse demonstrar sofrimento através de uma piada. Mas quando Enrico pixou essa sentença no outdoor do candidato a prefeito do partido da situação de nossa cidade, assim como sempre, ele elevou o efeito de minha criação a um novo nível.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Abstinência

Lábios secos, lábios feridos. Minha boca é uma chaga aberta, uma rosa pálida e esquecida. Meu peito pesado, meu ego corrompido. Meu corpo entregue a espasmos enquanto o vento sussurra, zombando do meu delírio. Lembranças, lembranças, tortura... oh, o gosto era doce. Nem mesmo o fedor do meu hálito, o quarto tomado por meu suor, nada é capaz de afastar o perfume. Minha fúria demolida, o que sobrou? Refém de carícias, refém de mazelas, eu ainda estou preso ao deleite do seu sabor. Me arrasto pelas trevas, busco por migalhas, imploro por perdão.

Um sentimento estreito,

Os meus lábios contra o chão
Exilado em meu leito

Derramo lágrimas no colchão
Ensaio um pedido de desculpas
Mas minha verdade soa débil
É, eu sei... eu sei....

Observo a luz do horizonte, escuto a cidade se lamentar em dor. Eu não sou ninguém, eu sou o todo, eu sou o corpo que se contorce em transe. O quebrar de mil sonhos, um grito de socorro. O pranto estrangulado, o Sol incapaz de esperar o fim da noite. Minha boca está seca como as flores mortas sobre a televisão.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Darma

Comecei a manhã perseguindo um delírio
Agora a loucura vã tem mais um capítulo
Olho o meu reflexo e sinto repulsa
Nada tem nexo, nada disso tem cura

Minha mente errante busca o mesmo caminho
E assim como antes, me sinto sozinho
O Sol se ergue e me atraí como nunca
Ninguém me persegue e esse é o motivo da fuga

O céu rubro anuncia uma noite desfeita
Um nome ressoa na minha cabeça
Ouço com atenção o sibilar do vento
Abençoar corações fartos de desespero

Atrás de respostas, atrás de repouso
Nada importa agora quando tudo é tão pouco
A luz do inverno desperta meu mundo
Nunca estive tão perto do meu próprio absurdo

Revejo as mentiras até a fantasia morrer
Uma coleção de feridas com que me adornei
No transcorrer da tormenta apenas a dor é real
E ao encontrar os seus olhos eu vejo todo o meu mal

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Procrastinações

Há cerca de três meses, Gabriel Gabay sofreu uma crise gastrointestinal que o levou a ser hospitalizado. Após um dia de vômitos e diarréia, ele chegou ao pronto-socorro em um estado moderado de desidratação. Enquanto recebia soro e medicação, pediu a enfermeira um pedaço de papel e uma caneta. Após algumas horas, ele foi liberado. Uma faxineira encontrou debaixo de uma maca o papel esquecido pelo paciente. Nele se encontrava a seguinte lista:

Coisas a se resolver nesta encarnação (ou até quinta-feira, se possível)

1° - Romper os laços maternais e crescer. Deixar de ser um bebê castrado e preguiçoso. Pagar minhas próprias contas, correr atrás dos meus sonhos, viver sem correntes. Abandonar o conforto da jaula. Liberdade vem do sofrimento.

2° - Não ser um hipócrita. Parar de comer carne e tudo que venha de animais. Não comprar nada que venha de grandes corporações e multinacionais. Não utilizar meios de transporte poluentes. Não precisar de instituições públicas para nada. Ser anarquista em um nível pessoal e responsável.

3° - Limpar meu quarto. Cheiro desagradável, insetos mortos pelo chão, poeira entre os teclados. Violão e guitarras também precisam de atenção. Trocar roupa de cama e colar mais pôsteres nas paredes. Paredes brancas são paredes mortas.

4° - Não jogar a responsabilidade pela minha felicidade em outras pessoas. Não esperar por um messias, por um amor perfeito, por um anjo salvador. Buscar a paz mental através da auto-compreensão e não pelo êxtase efêmero. O gozo é o nirvana dos tolos.

5° - Aprender a tocar violoncelo.

6° - Ser emocionalmente estável para evitar o risco de uma vida pouco prática, obsessões psicóticas e pensamentos suicidas. O padrão ansiedade – depressão – ansiedade - euforia é desgastante demais. Adolescência já arruinada, evitar que isso se repita no futuro.

7° - Ter um gato chamado Lúcifer. A cor do pêlo não é importante.

8° - Contribuir socialmente de uma forma positiva para a raça humana. Não sei como. Talvez escrevendo um livro, uma matéria, pixando uma mensagem em um muro. Morrer sem ter a vergonha de ter sido um branco de classe média que não fez nada por ninguém, viveu uma vida mesquinha e ensinou aos seus filhos valores obscenos como a ganância, a ostentação e a indiferença. Foda-se a lei do mais forte. Se a selvageria é a solução, ao menos dissolvam a constituição e liberem a chacina de qualquer hipocrisia.

9° - Escrever um poema de amor que não seja brega, mentiroso ou que cause ânsia de vômitos, e efetivamente mostrá-lo para a pessoa que o inspirou, ao invés de guardá-lo na gaveta.

10° - Ter uma casa no campo após a velhice. Ela deverá ter um grande pomar, um jardim para os meus netos brincarem, uma mangueira com um balanço (mangueiras são arvores grandes e fortes, boas para um balanço), dois ou três cachorros, uma varanda onde meus gatos possam dormir e eu possa passar as tardes tocando violão, bebendo cachaça e fumando haxixe.

sábado, 30 de agosto de 2008

O Equilibrista do Meio-Fio

Um desperdício de noite, uma chacina sem propósito... um maldito porre solitário e sem graça. Arrasto-me pela calçada como um verme e entro em uma garrafa de Velho Barreiro. No fundo dela encontro um sujeito de barba rala, cabelos sujos e olhos tão vermelhos quanto profundos. Ele me diz ser Gonzalo, filósofo do meio-fio, guardião da sarjeta e protetor de todos os fracassados. Um rapaz curioso, vocês devem conhecê-lo. Com minha língua dormente pergunto a ele por que eu sempre me sinto tão aconchegado caído em vias públicas.

A RESPOSTA DE GONZALO EM 429 CARACTERES

“A posição básica da sarjeta, sentado no meio fio, pés no asfalto, coluna curvada, olhos baixos e braços apoiados sobre os joelhos, é uma postura naturalmente reflexiva. Este estado introspectivo, aditivado pelo álcool e pelo silêncio noturno da cidade, proporciona uma atmosfera favorável ao auto-questionamento. Eu diria que a sarjeta é a principal postura de meditação dos tempos modernos, a posição de lótus pós-industrial”.

Ao final desta análise esclarecedora, começo a me sentir um pouco claustrofóbico entre aquelas paredes de vidro. Escorrego para fora e deitado de barriga para cima encaro o céu roxo e sem estrelas. Sim meus amigos, uma noite trágica para a carreira deste pobre dipsomaníaco em treinamento.

Meus joelhos doem. Minhas roupas estão sujas. Estou emocionalmente fadigado. Mas ainda não é o bastante! MAIS! Continuo caminhando, sem destino certo, apreciando o frescor da noite, a incerteza de cada esquina. Relembro sabor do beijo, o cheiro do perfume... Eu gargalho, hahaha, triunfalmente. As minhas lembranças ninguém vai tomar nunca! Meu infinito intimo é intocável. Meu ímpeto é invencível. Minha imaginação projeta meus sonhos no asfalto e eu não tenho razão para me sentir sozinho.

O último lugar que eu quero encontrar é a minha casa e a pálida e falsa versão de mim mesmo que lá habita, enjaulada, amaldiçoada pelo desperdício. Não, não, ainda não é hora para isso. Então eu caminho como um equilibrista na guia da calçada, um pé de cada vez, os braços abertos e oscilantes, os lábios rasgados em um sorriso infantil. Seria uma noite e tanto se tivesse alguém pra me ver aqui, no auge da forma, desafiando o bom senso, ignorando todos os sinais de alerta e de mau agouro. Garoa, cachaça e expectativas. É tudo que eu disponho enquanto sorrio de pé no meio fio. E se até o fim da noite a sarjeta voltar a me abraçar, não terá sido nenhum desperdício afinal.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Fragmentos, Sonhos e Desperdícios

O Enforcado

Meu abraço é a forca, é o desconforto que entrelaça. É o puro desespero, é o medo do abandono, o frio e silencioso aperto, o horror de não pertencer. Quando você desfaz o laço, eu caio sufocado e meu peito angustiado chora antes de esmorecer.

Crisálidas

Já tenho minha vingança planejada, uma carta amarga e mal escrita endereçada para a boca do seu desprezo. Nas poucas horas que nos separam, promessas dispostas e crisálidas formadas. Levanto meus punhos contra o céu e espero ansioso pelo nosso vôo.

Jorge

Jorge era um velho que ninguém suportava
Um verdadeiro tédio, tudo ele odiava
Uma tarde ele levou a mão ao coração
“Ora vamos vovô tomar alguma medicação!”
“Vão se foder!”, ele gritou sem nenhum pudor
“Agora só por querer, vou tomar remédio à toa?”
Assim ele ficou por alguns segundos
Até cair morto sobre o chão imundo

Bem feito velho, por que não escuta?
Tomara que vá pro inferno
Queime filho da puta!

(Retirado de um diário de sonhos. A data é de 30/04/2004, uma sexta-feira)

Estava em uma ilha de concreto no meio do oceano. Era uma ilha pequena, e lá também estava um grande número de pessoas, todos jovens como eu. Eles formavam um circulo em volta de um grande cacto. Eu me mantinha afastado, olhando para o mar. Ouvi risos e me virei. Vi três meninas andando de braços dados, rindo histericamente. Uma delas se aproximou do cacto e o beijou. Sua boca começou a sangrar, ela desmaiou e começou a ter convulsões. Alguns se aproximaram para tentar ajudar. Da boca da garota jorrava sangue e de todo seu corpo brotavam bolhas que inchavam e estouravam de maneira grotesca. Um jovem segurava a cabeça dela e tentava acalmar os demais dizendo “Não há nada a se fazer! Temos que esperar!”. Eu dei as costas para aquela cena e voltei a observar o mar.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Desarranjo

Quando a Moça despertou seu mundo era ordenado, subordinado a preocupações cotidianas, rituais inconscientes e gestos medidos. Desvencilhou-se dos últimos pensamentos desconexos de seus sonhos, abraçou a luz do quarto como uma porta para a realidade, conferiu no espelho se seu rosto ainda estava lá, ingeriu sua dose matinal de cafeína, projetou mentalmente o seu dia e observou as horas ao menos seis vezes antes de sair. Ao abrir a porta de sua casa se deparou diante de um estranho objeto, um erro de padrão, um elemento caótico na rotina que julgava previamente equacionada. Um buquê de rosas, deitado de maneira quase obscena no corredor. Esse imprevisto provocou uma breve supressão da respiração e um lapso na sua presente linha de raciocínio. Apanhou as flores e notou que havia um cartão. Talvez fosse a chance de esclarecer e reordenar toda a situação, mas o que ela leu naquele pedaço de papel foi: “Ele mandou flores. O que você vai fazer a respeito?”. Aquilo não estava certo... Ela releu a mensagem inúmeras vezes para confirmar que não havia equívocos. Mas não, estava sempre lá, a escrita impiedosa que arruinou seu compasso e implodiu seus domínios. Havia inúmeras questões dentro daquela única interrogação. Talvez fosse pertinente saber quem havia mandando aquelas rosas, mas não era nisso em que a Moça pensava, embora não soubesse por que. Foi como se toda sua estrutura interna, seus valores e seu senso de realidade tivessem sido despedaçados por aquele ato singular. Suas idéias íntimas estavam completamente expostas e ela percebeu quão frágil elas eram. A sua manhã opaca havia sido tingida de vermelho e sua busca por tranqüilidade e paz mental havia sido ridiculamente arrasada. Tudo o que ela tinha agora eram questões sem respostas. Decifrar aquele enigma seria decifrar a si mesma, e isso seria uma tarefa penosa, torturante e nada prática. Mas agora era tarde, o trem havia descarrilado, suas emoções aflorado e seu mundo não era mais ordenado. Era sinuoso, pulsante e sublime. Era o sorriso em seu rosto, o mistério em seu olhar e o universo que se rearranjava ao seu redor.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Citações de um toxicomaníaco – Um breve passeio pela mente e mundo de Enrico Roccato

“A maior parte da bíblia foi escrita sob o efeito de drogas alucinógenas”, durante uma discussão teológica com dois missionários mórmons.

Um dos grandes feitos do feminismo foi prover ao mundo uma mão-de-obra mais barata”, para uma lésbica em uma balada GLS, no que seria depois considerada a pior cantada da história.

“O seu problema não é pensar demais com o pinto, é foder demais com a cabeça”, ao debochar da inerte vida sexual de seu amigo Gabriel Gabay.

“Psicanálise é a declaração da falência das relações humanas. Que porra de mundo é esse em que você tem que pagar alguém para te ouvir?”, aos 16 anos, para a diretora da escola, quando essa o informou que ele seria obrigado a passar por um tratamento psicológico após desmaiar bêbado durante um seminário.

“Quando meu pai abandou minha mãe, eu me perguntei como ele pode ter feito uma coisa dessas. Anos depois quando eu fugi de casa, me perguntei como ele pode agüentar tanto tempo”, sobre sua relação afetiva com sua progenitora, Estela Mantovani.

“Se trabalho fosse sagrado, Jesus nunca teria deixado de ser carpinteiro”, dando um xeque-mate em uma discussão com seu amigo Jorge Hércules, que insistia que ele deveria arrumar um emprego para dar sentido a sua vida.

“Porra Gabriel, não seja tão ansioso!”, repetida inúmeras vezes, em inúmeras ocasiões.

“A bebida foi a única coisa na minha vida que não me traiu”, em um de seus “momentos”...

“Já que as mulheres me intimidam, eu trato logo de estragar tudo no primeiro instante. Isso deixa tudo mais tranqüilo”, sobre suas táticas amorosas.

“Foi quando a cerveja parou de ser tão amarga”, ao ser perguntado qual tinha sido o melhor dia de sua vida.

“O problema de ser anarquista, comunista, essas coisas, é que você tem que estudar filosofia, ler livros, saber fazer analise social... Já para ser capitalista, basta ser um merda qualquer”, discorrendo sobre modelos sócio-econômicos em um bar de esquina.

“Você me devia ver sóbrio”, após ser elogiado por seu instrutor de direção.

“Sexo é muito bom, amor é importante, o medo da morte é um fato, mas esses são aspectos passageiros, relacionadas a certas etapas da vida. A força matriz por trás de todas as ações é o tédio”, discursando sobre a natureza humana para um cão labrador chamado Duque, após uma noite “caótica”.

“Vai se fuder mãe!”, ao sair de casa definitivamente.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Sobre Benzedeiras e Insônia

Sentado na cama do meu quarto
Eu contemplo as manchas de mofo
Da parede e pratico um exercício
De higiene mental.
Enumero os prós e contras das
Minhas futuras pretensões
E me pergunto sobre a utilidade
Das rezas de uma benzedeira que
Busquei para curar meus freqüentes
Ataques de ansiedade. Ao julgar
Pela minha insônia, tempo perdido.

As janelas e a porta estão fechadas
Há tempo demais, e um odor desagradável
Começa a inundar o recinto. Minha camisa
Ainda está encharcada pelo suor de meu
Último pesadelo. Admiro o brilho dos meus
Coturnos recém engraxados e acaricio
As feridas recentes em meu joelho. O corte
Tem um peculiar formato em V e suponho
Que devo ter caído em algum momento
Enquanto embriagado. Foram muitos
Momentos assim nos últimos dias.

Percebo uma folha amarelada caída
Próxima a minha cama. Nela está
Escrito a mão um poema auto-depreciativo
Que não me lembro de ter rabiscado.
Entretanto a letra é claramente a minha.
Leio com indiferença sentimental, mas me agrada
O ritmo das palavras. É só o que importa, um
Poema é apenas uma emoção morta e mumificada.

Gatos começam a miar a minha porta
Despertando uma estranha noção de isolamento
Em mim, trancado neste quarto. Um pernilongo
Começa a zumbir próximo ao meu ouvido.
Mantenho me parado e decido oferecer ao
Inseto uma escolha. Abro a janela e o Sol
Da manhã fere meus olhos. Observo e espero
Se o pernilongo irá partir ou tentará me picar.
Ele escolhe a minha carne, espero a picada e
Esmago a criatura sem prazer ou remorso.
Observo a mancha de sangue, do sangue que já
Foi meu e penso sobre verdades inconvenientes,
Lembranças incômodas que retornam mais fortes
Toda vez que tento evitá-las. Penso que eu também
Tive uma escolha e decidi ser esmagado, com meus
Lábios encharcados de sangue. Agarrado ao meu

Anseio Insaciável, trancado aqui, penso sobre
Benzedeiras e insônia, antes de caminhar para
Fora em busca de vento fresco e da placidez
Do meu quintal.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Lixo

Estou no alto de uma colina, observando a imensidão de um vale. Um depósito de lixo absurdamente vasto. A obra-prima da civilização humana, o mar onde os excessos desembocam, uma hemorragia na Terra causada por 10 mil anos de depravação e loucura. O céu tem uma coloração rubra crepuscular, e em meio aos detritos eu noto que há pessoas caminhando. Desço a colina aos tropeços, pisando sobre seringas, comida estragada, plástico retorcido... as soluções definitivas do passado, os brinquedos preferidos de outrora. Adornos do orgulho distorcido e ansioso, imperiosos e descartáveis. Vejo pessoas vasculhando o lixo, lambendo as sobras, sustentadas pelo o excremento do mundo que os rejeitou. Seres humanos... descartáveis. Escorrego sobre o lixo, meus joelhos sangram. Uma criança chora e a outra olha para um ponto indefinido, com o desalento de quem teve que aceitar o absurdo da existência cedo demais estampado em seu rosto. Mães e irmãs investigam os detritos em busca de comida, sucatas aproveitáveis, trinta segundos de paz. Nos olhos o sentido mais primitivo de auto-preservação, sem traços de vergonha ou ego ferido. O orgulho é uma mera invenção de uma civilização fetichista de que elas não fazem parte. Sinto um arrepio percorrer toda a minha coluna. Um frio intenso, interno, me envolve de assalto. Ouço um sussurro, meu nome... Olho para o lado e vejo o Estranho. Ele é muito alto, muito magro, veste farrapos negros, os cabelos são sujos e seus olhos... seus olhos são vazios, apenas duas órbitas obscuras. E esses olhos se encontram com os meus e mostram a verdade. Meus fracassos pessoais e os fracassos da humanidade, uma única visão, turva, distorcida, mas clara e lacerante. Em seus olhos meus ideais natimortos, as boas intenções inúteis, minha vaidade devassa, uma coleção de paixões febris e efêmeras, minha busca infantil e descompromissada por uma resposta que não existe... minhas mãos sujas de sangue inocente de populações massacradas, vidas mutiladas pela minha estupidez diária de fechar os olhos e não dar um fim a isso tudo. Eu suplico ao Estranho que pare, mas ele não me abandonará, não antes que eu compreenda o fracasso e invalidez deste longo e criminoso processo de civilização, da torturante verdade por trás da experiência humana. Não há conforto, não há redenção. A ingenuidade é um pecado sem perdão. Eu sou o culpado, eu sou a inanição, eu sou a indiferença, eu sou a certeza da derrota. Sou eu quem se ajoelha sobre as carcaças e reza pela própria alma, sem perceber a brutalidade deste ato. E diante da miséria do meu espírito, o Estranho me liberta e eu faço esforço em busca de ar. Sinto nojo de mim, me sinto indigno de deitar sobre o lixo.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O Canto da Castidade – Ato Único

O TOLO
Eu era um rapaz saudável
E casto. Vivia em uma bolha
E mamãe me amava. Até que
Em um outono conheci os
Seus lábios. Agora desmaio em
Banheiros de locais depravados.

CORO
O amor o deixou insano!

O TOLO
Não mesmo!

O CORO
O amor o deixou insano!

O TOLO
Eu não lembro!

A MOÇA
Eu era uma dama virginal
E delicada. Quando um homem
Surgia, eu logo corava. Até que
Em uma primavera eu conheci
Esse fardo. Agora desperto em
Tavernas e não sei quem está em meus braços.

CORO
O amor a alucinou!

A MOÇA
Isso não é amor!

CORO
O amor a alucinou!

A MOÇA
Não, por favor!

O TOLO
O absinto me enerva e só faço
Bobagens. Pego doenças venéreas
E faço promessas desagradáveis...

A MOÇA
Não me recordo dos seus galanteios,
Temo por sua aparência e te amaldiçôo
Se grávida. Não quero saber de
Promessas, a mim você não é
Mais que um pedaço de carne.

O TOLO
Quantas sutilezas! Pouco me importa
Como me trata! Entre você e “aquelas”
A diferença é que você é de graça!

CORO
O amor os deixou insanos!

A MOÇA
Ah, esqueça!

O CORO
O amor os deixou insanos!

O TOLO
Oh, não!

O CORO
O amor os deixou insanos!

A MOÇA
Por que não me deixa!

O CORO
O amor os deixou insanos!

O TOLO
Não, dessa vez não!

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Projeto Manhattan

No centro do fracasso da sua utopia,
Escravos escrevem poemas
Em cemitérios de alegorias
Meu coração envenenado
Pulsa firme apesar dos edemas
Apesar das mentiras

Escrevo o nome dela em minha carne
Feridas são flores escarlates
Que dou para provar meu amor

Carcaças podres de um futuro abisso
Acumulam-se no deserto venéfico
Sobre a gênese de uma tribo
Meu corpo incinerado
Pelo fogo bélico
Ainda é vivo

Guardo uma mecha de seu cabelo perfumado
Um amuleto em meu peito despedaçado
Que guardo para conservar seu calor

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Samsara

“Quando foi que as expectativas ficaram tão baixas?”, eu perguntei, acariciando a areia morna. “São ciclos, Gabriel, ciclos”, me respondeu Enrico, enquanto cavava. “No momento, após uma grande seqüência de fracassos, nós estamos num ponto bem baixo. Mas logo, teremos novas coisas em vista no horizonte, novos anseios, entende? Então, a porra da roda gigante da vida começará a girar, e nós voltaremos a estar no topo e... voltaremos a descer miseravelmente. Bom, mas pelo menos vamos nos divertir no caminho”. Tomei um gole da mistura quente de pinga com guaraná e meditei sobre aquelas palavras, sem dar muita atenção à areia que invariavelmente me atingia. “Pronto”, suspirou Enrico. “Me dá o gato”. Levantei-me e peguei o pequeno cadáver. O coloquei dentro da cova e Enrico o cobriu. Era tarde da noite, estávamos perto da luz de uma fogueira onde um bando de hippies se reunia. O som do violão fazia parte agora de nossos ritos fúnebres. Enrico colocou uma grande pedra sobre a cova, limpou a garganta e começou o discurso. “Diarréia. Você veio ao nosso acampamento como um gato cinza, sarnento e doentio. Vi em seus olhos sujos um pedido de piedade. Nós lhe demos água, comida e atenção. Aí você vomitou no chinelo de Gabriel, o que alegrou muito o nosso dia. E foi assim que você ganhou o seu nome, Diarréia. Quando retornamos da praia, você estava morto”. Tomei mais um gole e passei a garrafa plástica para o nosso orador. “Acredito que você tenha sido um bom gato e tenha aproveitado bem a sua vida livre e simples aqui na praia. Subindo em árvores, fugindo de cães, sendo alimentado por turistas e pescadores... essas coisas de gato. Você poderia ter sido um animal gordo, mimado e castrado da cidade, mas teve o destino de viver como um selvagem, como seus ancestrais e eu te saúdo por isso. A você Diarréia!”, brindou Enrico. Aquilo me pareceu apropriado. “Fale alguma coisa você, vocês tinham uma relação estreita”, me pediu Enrico. Sem questionar comecei. “Diarréia... nós podíamos ser de espécies diferentes, mas nós tínhamos muito mais em comum do que parecia. Você, assim como a areia que te envolve, a pedra de sua tumba, o mar e todos nós que aqui vivemos, somos todos parte do mesmo todo...” Eu sentia minha boca ficar mais mole a cada palavra que eu dizia e a cada gole que eu tomava. Não me responsabilizo por mais nada que vem a seguir. “No inicio dos tempos, toda a matéria prima do universo estava condensada em um único átomo, que se expandiu sem parar, criando o cosmos como hoje ele é. Tudo que existe, portanto, está ligado quimicamente, pois todos nós fomos um só na origem. Somos feitos do mesmo pó que formou as estrelas, planetas e coisas infinitamente maiores do que eu e você...”, parei para tomar fôlego e notei que Enrico fitava gravemente o oceano. “Nós, animais estúpidos desta terra, não percebemos a singularidade de nossa existência, essa nossa ligação. Estamos cegos por nossas vaidades, nossa ganância e nosso orgulho. Buscamos respostas nos lugares errados e só damos continuidade a um ciclo interminável de miséria. Você também nunca percebeu isso, pois sempre foi um escravo da própria fome, e sua única preocupação era se manter vivo por mais um dia. Eu não sou diferente. A minha vida inteira persegui bobagens, pistas falsas e caminhos enganosos que me afastaram do que realmente é importante. Eu vivo frustrado, assim como você vivia faminto, pois nada é capaz de satisfazer, nada disso...”, nesse momento noto que o violão silenciou e alguns hippies escutam com atenção o meu discurso. “... nada pode nos fazer sentir menos sós, pois somos apenas fragmentos daquele átomo primordial, eternamente separados após a grande explosão. Só quando entendermos que nossa individualidade é uma mera ilusão, que nossa cobiça leva apenas a um ciclo interminável de fracassos, decepções e angustias, é que poderemos ver com clareza, juntar as peças de desse enorme quebra-cabeça e novamente voltar a ser um apenas”. Terminei de falar e senti uma leve tontura. A praia parecia tomada por uma névoa e minha cabeça parecia dominada por um zumbido. “Nossa cara, que viagem!”, disse um dos hippies, e os outros concordaram e iniciaram uma discussão filosófica sobre energias cósmicas e místicas. Eu não tinha tentado ser profundo ou profético, eu era apenas um bêbado sensibilizado pela morte de um gato vadio. Além disso, tinha visto recentemente um documentário sobre o Big Bang que tinha me deixado um pouco impressionado. Enrico acenou com a garrafa, olhou para as estrelas e gargalhou. Olhei para a tumba de Diarréia e depois para os meus pés. Conclui que toda vez que olhasse para um par de chinelos, iria sorrir e lembrar dele.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

“O tédio é um crime contra os desocupados”


Despertando (o lado negativo) – Meio da tarde

Jesus Cristo! Olhe só essas olheiras! Porra, tudo que eu fiz nas últimas semanas foi dormir umas oito horas, acordar, reclamar do frio e voltar a dormir por mais umas duas horas. Adiando compromissos, ignorando ligações, conversando com meus gatos... é um fato cientifico comprovado, se você passa a maior parte de seu tempo de moletom, você só pode ser um perdedor.

Revigorando-se – Inicio da noite

Estômago cheio, cabeça vazia. Lobotomia via tv a cabo. Modernas formas de meditação, padrões monótonos de sons e imagens sobrecarregam e sabotam meu senso de julgamento. Na cozinha outro televisor ligado, a falácia obscena do telejornal se funde ao chiado da frigideira. Meus sentidos super-excitados ocultam minha ansiedade e um sorriso débil deforma meu rosto. Orgasmo digital.

Tratado sobre o álcool – Meio da noite

Não tenho mais nenhuma idéia ingênua sobre o uso de entorpecentes. Passei um bom tempo tentando justificar o seu uso por razões políticas, intelectuais ou místicas, mas isso é papo furado. Eu fico bêbado por que me sinto desconfortável sóbrio. Completamente alienado de tudo que me cerca, incapaz de tomar parte em uma atividade social prática, por que nada que está fora da minha cabeça me interessa. Quando chapado me sinto absorvido pelo ambiente em que estou, me sinto parte do quadro. É como se minha mente me trancasse para fora e me obrigasse a brincar com as outras crianças.

Existencialismo juvenil (Idealismo morto?) – Final da noite

Nunca me senti tão desmotivado. Sempre soube que não poderia tomar parte de uma vida estável, comum e enfadonha. Empregos regulares não me atraíam, por isso quis virar jornalista. Que piada... essa deve ser a carreira mais corrupta, mentirosa e mecânica que existe. Tudo que você pode ser é uma engrenagem de uma máquina de propaganda regida por interesses corporativos. Eu sempre soube disso, mas pensava que havia alternativas, mas elas não existem, pois essa máquina engloba todo o sistema sócio-econômico em que vivemos e fugir disso te reduziria a um marginal. Eu não quero ser um ermitão alucinado berrando para o nada profecias apocalípticas. Eu quero fazer parte de algo real, mas acredito cada vez menos que isso possa existir.

Alívio onírico – Aurora

Não há nada que possa acontecer amanhã que possa satisfazer meu anseio acumulado nas últimas semanas. Não há nada que eu possa escrever que seja tão forte quantas as inúmeras folhas em branco com que me deparei nas últimas noites. O mundo parece oco e o silêncio da madrugada torna tudo mais absurdo. Assisto o Sol nascer e me reconforto com minha insignificância. Memórias desbotadas surgem em sonhos onde não posso reprimir meus desejos. Que o mundo se reduzisse a isso...

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Tácita

O que traz o silêncio além de desespero
Quando seu ímpeto é regido pelo medo?
Anestesiado pelo mais amargo dos venenos
Contemplo o desperdício de um íntimo desejo

Um sonho morto nos conduz por avenidas
Dedos entrelaçados, língua contra língua
Levo meus lábios ao encontro das feridas
E o choque da verdade fere minhas retinas

Imagens sacras me atormentam em um delírio
Anjos e mártires sangram sem nenhum motivo
O Caído me fala através de palavras e espinhos
O sacrifício é consagrado com um cálice de vinho

O som da manhã inspira algumas mentiras
A angustia cálida é devidamente entorpecida
Crianças pálidas aguardam uma lua enfurecida
A paixão amarga de fazer a vida tão mesquinha

“São oito e quarenta da manhã, domingo, estou desperto. Mais um dia sem motivo, meu estômago dói e minha cabeça quer morrer. Eu preciso de um exílio, estou fugindo de mim mesmo. As semanas se desperdiçam, todas iguais, inicio e fim, nada além. Talvez eu encontre um amigo e ele me diga que sente o mesmo. E me mostre o sentido por traz de cada verso, de cada sentença. Talvez o fracasso me faça ver que uma vez rendido não há nada a se perder. Nunca mais me procure novamente, o meu silêncio não precisa de você. Nunca mais me procure novamente, o meu delírio não foi feito para te dizer... Encontre o seu próprio medo e se afaste”.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

21

Meus olhos se abriram no meio da madrugada e se chocaram contra a luz vermelha do relógio digital: “5:21”. Fixei no número 21 por um longo minuto e me senti incomodado. Nunca me importei com números, para mim não significam nada. Mas quando completei 21 anos foi diferente, esse número veio carregado de um significado importante para mim. Ele me remete as partidas de 21 que jogava na casa de meus avós, quando tinha 10, 11 anos. Eu gostava de me sentar na cabeceira da mesa, de frente ao meu avô e observá-lo, bebendo seu café preto e forte, amaldiçoando sua má sorte no jogo e rindo silenciosamente das bobagens dos seus netos e filhos. Nascido em 21 de abril de 1921. Taurino, como eu. Gosto de pensar que de todos os netos, eu sou o mais parecido com ele. Alto, magro, silencioso. Havia uma áurea calma nele, uma complacência que jamais vi em outra pessoa. Mas dento de seu peito ardia uma inquietude, eu sei, assim como arde em mim. Naquela figura esguia que se sentava de maneira desleixada, ainda havia o charme boêmio de sua juventude, regada a álcool, cigarros e a música de Nelson Gonçalves, quando freqüentava prostíbulos com uma arma na cintura e um sorriso de deboche na boca. Tocava violão e acordeão até que um derrame limitou os movimentos de um de seus braços. Sobrou-lhe a gaita, que tocava com um dom natural inexplicável de um sujeito que estudou até o primário e nunca soube o que era uma partitura. Sua vontade de viver não o deixava parado nunca. Não morava na mesma casa muito tempo, abria o próprio negócio no interior, vinha para São Paulo e se arranjava como segurança. Aposentou-se, voltou para sua terra, comprou um sítio, uma casa. Nem mesmo a doença conseguiu o derrotar. Após o derrame, se recusou ficar na cama e voltou, na marra, a andar. Às vezes me surpreendia o vendo pelas ruas, carregando um pesado carrinho de feira, brincando com cães vagabundos e recolhendo qualquer tábua de madeira que encontrasse, para em casa brincar de marceneiro. Ficava fascinado o vendo trabalhar e com os brinquedos que ele fazia para mim. Tão calmo, tão inquieto, só não conseguiu mesmo derrotar o cigarro. Sentei-me na cama. Entendi por que me sentia tão estranho. Há exatos três anos, numa sexta-feira 13 de maio, cinco dias após eu completar 18 anos, meu avô morria, vítima de um enfisema pulmonar. A última coisa que ele fez foi derrotar minha avó numa partida de 21. Estava encerrada uma vida simples, mas nada medíocre. Peguei a gaita que um dia foi dele e hoje guardo comigo. Tentei tocar algo, mas nada saiu, este talento não herdei. Visualizo aquele homem alto e magro, frágil e invencível, e me pergunto se um dia serei parecido com ele. Estou tentando há 21 anos

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Esqueça

“Eu sou o pior no que faço de melhor”

Olhei para a folha e senti nojo. Nojo dos meus garranchos, da minha breguice exposta naquela confissão pobre e sem estilo. Onde eu quero chegar com essa merda? Eu deveria escrever com meu sangue, exorcizar meus traumas, vomitar minhas vísceras sem nenhum pudor e criar um monstro a minha imagem e semelhança, meu medo de viver traduzido para o português. Mas ao invés disso, o que eu venho fazendo? Escrevendo futilidades para impressionar menininhas. E eu garanto, ninguém ficou.

“Mas ele não sabe o que isso significa”

Comprou uma jaqueta militar, costurou uma faixa vermelha no braço esquerdo. Deixou o cabelo crescer, vestiu coturnos. Decorou citações de filósofos, discutiu em bares, cuspiu na Veja. Mas as crianças continuaram a morrer de fome, a reforma agrária não foi para frente e os sem-tetos foram despejados. Olhou no espelho. Lá estava eu, o grande clichê, o grande inerte.

“Como uma velha memória”

O que aconteceu com ela? Quantas manhãs eu despertei ansiando apenas por vê-la, beijar seu rosto e decorar seu perfume? Por quantas tardes eu delirei por caminhar ao seu lado, regozijando o silêncio suave que nos separava? Por quantas madrugadas eu adormeci visualizando seu rosto no escuro, desejando seu corpo contra o meu, agonizando por saber que nunca a teria? E agora ela me aparece, sem graça, sem perfume, vulgar como uma qualquer. Seus lábios, seus cabelos, seu fogo, ela era imagem de meus sonhos. O que restou agora? Antes eu nunca mais a tivesse visto.

“Não me importo se eu não tenho uma mente”

A vida vem se passando com freqüência em banheiros alheios, cheiro de vomito e mijo, cabeça latejante, algum amigo esmurrando na porta me perguntando se eu estou vivo. Me pergunto se estou perdendo alguma coisa aqui. Lobotomias temporárias, é isso que todo mundo quer afinal. Reduzido ao estado primordial, onde só fome, sono e tesão fazem sentido. Qualquer outro pensamento é complexo demais, impossível de ser elaborado. Sensações, só isso me importa. A névoa branca de embriaguez me liberta responsabilidade de ser. Sim amigo, ainda estou vivo.

“Talvez eu seja culpado de tudo que venho ouvindo... mas não tenho certeza”

Reflita por um instante sobre toda a sua vida. Pense nos padrões, nos erros que se repetem, nas mentiras que permanecem em pé. Olhe para seu rosto no espelho e finja que está diante de um estranho e diga tudo que ele mereça ouvir. Diga que ele é um imaturo narcisista, incapaz de confiar em alguém, que está tão amedrontado com a possibilidade de desperdiçar a vida que não consegue encará-la como um adulto. Diga que a sua timidez é um embuste de uma criança mimada, um ser negativo que só quer receber sem dar nada em troca. Será que isso basta? Não, é obvio que há muito mais...

“Eu juro que venho sendo verdadeiro”

Delírios, mitos, fetiches, é disso que sou feito afinal. Não tem nada errado em interpretar um papel a vida inteira, especialmente quando ninguém está olhando. Na verdade, é impossível fazer diferente. Experimente não fingir ou apenas imagine. O que isso seria? Um psicopata? Uma criança? Não, isso não funciona. Não venha me dizer que eu estou mentindo, não me acuse de não ser autentico. Isso só faz de você um hipócrita.

“Só por que você está paranóico, não significa que eles não estejam atrás de você”

Sussurros, sussurrando por todos os cantos. Ela, ele, ela e mais aquela, cochichando, ignorando, distraindo-me como uma criança fútil. Ok, ok, vocês venceram víboras. Vou para casa praticar minha expressão de desdém, desarmar minha metralhadora espiritual, me chafurdar na minha inocência. Tem álcool e maconha o bastante para acalmar meu ímpeto. Pela manhã terei éter e estimulantes o bastante para eu me tornar outra pessoa. Ai vocês e seus sussurros serão tão irrelevantes quanto merecem ser.

“Eu não me importo com que você pensa, a não ser que seja sobre mim”

O amor nunca foi um sentimento altruísta para você, não é mesmo? Ao contrario, é a necessidade que você tem de ser aceito, idolatrado e deusificado por essa merda ai que você é. Culpa da mamãe que te mimou demais. Agora você espera que o mundo te trate do mesmo jeito e esse é o seu grande problema, quando você percebe que nem todo mundo te acha uma graça. Ai você se esconde num canto, se contorce em fúria juvenil e se sente inseguro. Escreve um texto depressivo em seu blog, espera que alguém lhe de atenção. E quando alguém dá, começa tudo de novo. Até onde você acha que vai com isso, gracinha?

“Não me diga o que eu quero ouvir”

O que é pior do que ser subestimado? O que é pior do que uma falsa caricia, uma mentira doce, um beijo amargo? O que é pior do que um fracasso que recebe adornos para se parecer um triunfo, como uma velha que tenta esconder sua feiúra por trás da maquiagem? As minhas lágrimas não me envergonham, o que eu não quero é sorrir sem alegria.

“Antes morto do que legal”

Não tem nada que eles possam me oferecer, nada de atraente. O destino deles é fracassar. Caminho sozinho por esses corredores frios, por este galpão estúpido e conto as horas para o fim do dia, os dias para o fim do ano e os anos para o fim dessa merda. Eles me chamam de morto, riem do meu silencio, zombam do meu desinteresse. A vida chegou ao auge cedo demais para esses coitados que mal sabem aonde pisam. Mas eu sou diferente e minha arrogância me mantém vivo, aquecido e cheio de esperanças. Para mim, uma passagem pelo inferno que irá me fortalecer. Para eles, o mais próximo do paraíso que jamais irão chegar.

“O que diabos eu estou tentando dizer?”

Um grito no meio da noite seria mais eficiente. Seria um alivio grande despertar meus vizinhos com um brado de medo e ódio, um grunhido selvagem, uma expressão honesta do que eu estou sentindo. O que eu vou ganhar me expondo aqui, nessas linhas estúpidas e mentirosas? Quem é que se importa com que se passou pela minha cabeça em uma noite de insônia? Amanhã de manhã sequer vou me lembrar disso.

“Algo no caminho”

Resisti até o final e senti um orgulho tão ingênuo, algo que não vivia desde a infância. Um triunfo afinal, um anseio a menos para carregar. São dias tão cansativos como esse que tornam o sono tão recompensador. Os sonhos vêm e não são tão doces quanto o seu abraço. Eles me esperam em algum bar e o som dos risos fica mais alto. Não tenho mais por que fingir ser o homem que ninguém quer ser. Estou em paz e não me importo se tem alguém mentindo. O que eu sinto é real.



quarta-feira, 30 de abril de 2008

Esplendor

A cegueira rege seu perdão
E as crianças conhecem o refrão
Desprezo é o veneno mais barato
Sufocado na agonia do orgasmo

Seu corpo pulsa, a parede vibra
A corporação me usa na chacina
O dia inteiro eu sinto a fúria
Convulsão no gueto e eu tenho culpa

A miséria pesa em seus braços
É sangue que tenho em meus lábios

Nunca confie na piedade
Daqueles que cuspiram em sua face
A cidade transpira em um dia quente
O odor de morte me faz doente

Toda a repulsa, toda a verdade
Está nas ruas, está na carne
Tudo perfeito, além do medo
Atrás do espelho de vidro negro

A miséria pesa em seus braços
É sangue que tenho em meus lábios

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas


“Descreva o seu tédio logo, antes que eu adormeça”, ele disse com a boca torta e seu ar pedante. Que grande idiota.

Dois anjos apareceram em um sonho e anunciaram a grande mudança. Foi com grande decepção que despertou e viu que ainda era o mesmo.

Quando ela tinha 13 anos, gostava de se vestir como uma striper e dançar na frente do espelho. Depois tirava tudo e chorava antes de dormir.

O aluno, incapaz de tocar aquela canção, se enfureceu e destruiu seu violino. Sentiu-se patético quando notou que seu fracasso ainda estava intacto.

“As mulheres preferem homens idiotas”, ele disse a si mesmo a caminho de casa. Não tinha ninguém lá quando ele chegou.

Era um bilhete suicida dos mais intensos. Descrevia minuciosamente seus conflitos, seus impasses e suas falhas. Ficou tão fadigado ao escrever que acabou desistindo de morrer.

Um amigo confiou um segredo a outro. No final não havia mais segredos ou amigos. Até eu fiquei sabendo.

Era um daqueles questionários de revista. Os sintomas de ansiedade são:

1. fadiga,
2. insônia,
3. falta de ar ou sensação de sufoco,
4. picadas nas mãos e nos pés,
5. confusão,
6. instabilidade ou sensações de desmaio,
7. dores no peito e palpitações,
8. suores, arrepios,
9. boca seca,
10. tremores incontroláveis,
11. tensão muscular,
12. necessidade urgente de defecar e urinar,
13. dificuldade em engolir,
14. sensação de nó na garganta,
15. dificuldade para relaxar,
16. dificuldade em dormir.

“Merda! Só 50%! Já foi uma grande decepção saber que eu não era autista!”.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Quimera

Gabriel está na avenida
12 notas em seu bolso
2 ligações não atendidas
E uma marca em seu pescoço
Ignorando as ameaças
E os pedidos de socorro
Começa a madrugada
E a caçada ao tesouro

Eu não espero me encontrar
Eu não espero encontrar com Deus
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

Uma caixa de cigarros
Munição para noite inteira
Abandonados ao acaso
7 casas de incerteza
Se enrosca em seu cabelo
E diz: “Aqui não é o seu lugar”
E diz qual é seu preço
Mas seu perfume é tão vulgar

Eu não vim aqui para me explicar
Eu não vim aqui para me render
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

Bolinando alguém na pista
Entre fumaça, música e couro
Ferindo o que resta da vista
Acariciando o que resta do corpo
A noite agora está acabada
Não há tempo para outro furto
Não há tempo para mais nada
Não há passado, não há futuro

Eu não preciso implorar
Eu não preciso entender
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

sábado, 12 de abril de 2008

Embustes

Cruzando ruas obscuras, iluminadas pelo néon vermelho e vulgar dos prostíbulos, eu não encontro nada além de algumas horas de anestesia. Daqui algumas horas, no escuro gélido do meu quarto, o fluxo de consciência irá renascer na minha mente ébria e dúvidas cruciais mais uma vez irão me abalar. Durmo envolvido em meus próprios braços, não por falta de calor humano, mas por que assim é mais fácil ouvir meu coração bater. “Estou aqui”, eu digo a mim mesmo, e logo a sentença se torna uma questão. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito neste dia. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito nesta vida. Nas ruas as pessoas caminham tão solitárias quanto eu, todas elas. Em cada intimo um grito desesperado sibila durante a noite, clamando por respostas que nunca virão ou pelo silêncio das perguntas impiedosas...

Eram nove da manhã de uma quinta e Enrico estava completamente bêbado. Andava bêbado e drogado quase o tempo todo desde que recebera sua herança. O auge tinha chegado cedo demais para ele. Seu problema crônico de falta de dinheiro sempre o manteve sóbrio pelo menos quatro dias por semana. Agora parecia um dandy decadente, com barriga de cerveja e olhos vermelhos. O raciocínio estava lento, e às vezes ele se tornava incomunicável. Ele tinha toda munição que precisava para seu projeto de autodestruição.

Quando eu era criança, costuma construir túneis com caixas de papelão. Colocava meu capacete de soldado, pegava minha metralhadora de plástico vermelho e fingia que estava em um bunker, enquanto o mundo lá fora era destruído por uma guerra atômica. Ficava deitado lá por horas, encarando as paredes de papelão e ouvindo os sons do meu quintal. Pensava sobre tudo lá dentro e a cada vez que deixava o abrigo sentia-me menos conectado com o mundo.

Estávamos caminhando no parque quando vimos um garoto de uns nove anos tentando enterrar outro menino bem menor, que gritava e chorava enquanto terra atingia seu rosto. Corremos em direção a eles e eu gritei: “É bom mexer com quem é pequeno, não é?” O garoto me encarou assustado, mas não se mexeu. Então Enrico começou a pular e emitir estranhos ruídos, numa imitação grotesca de um primata. Quando ele mostrou os dentes e ameaçou dar um bote, o moleque saiu correndo desesperado. Enquanto ajudava o menino menor a se levantar, percebi que ele estava tão assustado quanto eu.

A luz do Sol começa a invadir meu quarto. Sem propósitos, sem paixões, a vida é uma sucessão de imagens opacas. Pior do que fracassar é caminhar sem rumo, pior do que ser ansioso é não ter esperança. Abro a janela, observo as cores da manhã. O mundo respira sem mim. O mundo vive apesar de nós. Olho para as casas da minha vizinhança e penso nos milhares adormecidos. Quantos os sonhos serão lembrados e quantas palavras terão sentido? De que nos servem esses pensamentos se ninguém pode ouvi-los? A vida afinal, se passa aqui fora ou dentro de nossos espíritos?

Encontrei Enrico caído no boxe do banheiro, banhado pelo próprio vômito. Ele estava acordado, mas desorientado. Coloquei-o de pé e lavei o seu rosto. Ele se sentou no vaso e ficou encarando a parede. O cobri com uma toalha. “O que você está fazendo?”, perguntei com voz estridente. Ele continuou a olhar, para onde quer que ele estivesse olhando. “Não sei viver assim”, ele falou gravemente. Era obvio que os dias de desperdício de Enrico não eram uma escolha, apenas uma confusão diante da nova vida. Ele não precisava mais roubar restos de cerveja, viver de empréstimos e dormir em um quarto mofado. Ele tinha tudo e não sabia o que fazer com aquilo. “Pare de ficar chapado o tempo todo e arrume alguma coisa para fazer”, eu quis dizer, mas isso seria insensível, não é? Eu diria aquilo mais tarde.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Inexorável

Já passou das duas e eu ainda estou aqui, encarando as infinitas obscenidades que se escondem nessa folha em branco. Porra. Tem uma paisagem árida na minha cabeça, um jardim sem flores, um quarto de hotel barato, um espelho despedaçado, uma cicatriz enorme em meu peito. Um sujeito de olhos flamejantes me apontando, sussurrando suas profecias. Merda. Eu só sou um moleque e ela é só uma menina, corta essa baboseira agora. Já reparou no desdém de um homem após o gozo? Uma vez trepei na frente do espelho e fiquei apavorado com o que vi. Parecia Lúcifer no momento em que olhou o Homem de cima pra baixo, um anjo profano de lábios sangrentos, desprezando a criação, fascinado pela própria beleza. Jesus Cristo! Tinha bebido tanto naquele dia que me sentia o próprio Messias. Era Maria Madalena quem eu penetrava, acho eu. De qualquer forma, somos jovens demais para distinguir amor de luxuria. Só vamos descobrir quando está tudo consumado, feito e fodido. E para que nós iríamos querer uma sujeira dessas, minha Musa ímpia? Continue ai, intocável, idealizada, perfeita. Não corte a minha brisa, não arruíne minha inspiração. Me deixa aqui, fingindo-me de morto, posando de poeta, encarando as infinitas obscenidades que se escondem por trás de cada alma. Dádiva dos Deuses, seu silêncio é minha melodia.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Domingo de Ramos

Por mim, silencie meus sonhos
Resfrie meu corpo, não me deixe crer

Por mim, desengane o desejo
Renegue o beijo, faça o amor morrer

Na incerteza eterna que me faz vagar
Na imensa espera de cada olhar
Sussurro o seu nome
Suave como navalha

Por fim, eu não busco consolo
Seu abraço morno de quem não sabe o que quer
Por fim, ignoro o retorno
Os traços de seu rosto esquecerei se puder

Nas longas noites vazias e secas
No horizonte, onde a promessa queima
Sussurro o seu nome
Suave como navalha

segunda-feira, 10 de março de 2008

Sussurros

Ela toca o meu nervo
Ela sabe que não quero dor
Ela me olha em segredo
Espera o frio me expor

_______________________Desdenho a dor com um sorriso
_______________________O meu ímpeto não quer descanso
_______________________No abraço quente de meu delírio
_______________________O amor é a lâmina dos insanos

Ela morde os meus lábios
Ela sabe apreciar meu gosto
Ela foge pelo quarto
A sua carne vem ao meu encontro

_________________________Rituais noturnos elevam o espírito
_________________________Mãos trêmulas vasculham meu corpo
_________________________O corte profundo, um olhar perdido
_________________________A brisa suave de nosso sono...

Me aqueça com seu fetiche
A pele queima, mas resiste
Viagem ilimitada entre as paredes
Beije a marca, não está tão quente

_________________________Mas se você me mantiver aquecida
_________________________Amanhã ainda estarei com você
_________________________Acariciando cada uma das feridas
_________________________Beijando seus lábios com desdém

sábado, 1 de março de 2008

Amores Efêmeros

Gabriel Gabay, 6:03 AM – São Bernardo do Campo

O fluxo de consciência de Gabriel vaga em direção a lucidez após horas de insanidade induzida por uma noite de excessos. A instabilidade emocional, insegurança em relação ao futuro e questionamentos existênciais, típicos de um jovem, são os tópicos deste discurso, desencadeado após um encontro inesperado na Estação Consolação. A sub-filosofia elaborada com a mente entorpecida não é em momento algum negada, mas reforçada por argumentos mais consistentes, ainda que improváveis.

A vida é regida por nossas escolhas ou somos reféns de fatores acima de nossa compreensão? Já está tudo definido por nossos genes, mapas astrais e homônimos ou somos nós quem construímos nossas próprias identidades? Eu estou cansado. Idéias se repetem, dia após dia. As semanas passam velozes, assim como as certezas. Como posso achar uma motivação sólida, se a cada segundo uma nova paixão explode na minha cabeça? Descendo do ônibus em uma manhã de domingo, admirando o prenúncio de uma tempestade no céu, eu sinto que deixei de fazer alguma coisa, uma missão incompleta. Há algumas semanas, quando a tive em meus braços havia um senso de certeza muito grande em mim, mas hoje nós éramos apenas estranhos, sem ressentimentos, constrangimento ou danos. Não me sinto triste ou decepcionado. Acho até que escapei de cometer um erro infantil. Mas é perturbador perceber as miragens que crio e com que facilidade me deixo levar por elas.

Acho que estou buscando um novo paraíso por segundo, um orgasmo longo, uma vida a prova de tédio. Senso de realização pessoal, contribuição social, que o apocalipse venha e enxágüe para longe todo o mal da humanidade. Uma nova droga que me faça olhar para o abismo da existência e compreender meu papel nessa grande piada que é e a experiência humana. Um modo de secar as lágrimas fúteis, iluminar corações e avisar a todos da boa nova. Eu achei que fosse ela a resposta, assim como tantas outras antes, mas eram meros escapismos, o desejo narcisista de abrir mão da liberdade em troca de conforto, de ser amado pelo que nunca fui. Eu busco uma nova utopia, uma aldeia selvagem, perdida em um limbo subconsciente da alma de cada homem, onde todos compreendem que nada são sozinhos. Uma revolução na mente da humanidade, imprescindível a uma revolução social. Não podemos planejar um novo mundo, se somos incapazes de nos desprender do atual.

Ao questionar tudo que passa diante de meu olhos eu estou aprendendo algo ou me privando dos prazeres mais mundanos? Sinto-me ansioso por algo novo a cada instante, mas nunca é o suficiente. O tempo todo a fantasia de liberdade, distante de obrigações, regras, silêncios constrangedores e julgamentos. Viver como um eremita, sereno, desprendido das vaidades que muitos julgam virtudes, ciente da própria insignificância. Quando despenquei daquela janela e emergi das trevas da inconsciência, a realidade diante de meus olhos me pareceu tão fútil e vazia. Algo mudou em mim naquele dia, como se tudo que houvesse ocorrido antes não passasse de uma preexistência, um rascunho de quem eu deveria ser. Quando estava apagado, tive a impressão de ter conversado com alguém, e diante dele eu me sentia uma criança. Talvez fossem anjos obscuros me fazendo uma profecia. Talvez fosse o resgate me socorrendo, mas quem é que vai saber? Acima de mim o céu se torna ainda mais hostil, e vejo a beleza nesta fúria cinzenta. Acaricio meu antebraço, onde ela me tocou pela última vez e tento emular algum sentimento, mas nada acontece. Desejo que os anjos voltem a me visitar, talvez num sonho, talvez em um delírio. É tempo para mais uma metamorfose.

O protagonista adormece. Os sonhos não serão lembrados, mas as impressões permanecerão com ele. Nada mais a ser relatado.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Arena de Asfalto

Enrico Roccato, 2:12 AM – São Paulo

Selvageria pura e crua, sem influências socioeconômicas, étnicas ou religiosas. Violência primitiva, sexual, instintiva. Enrico relata sua experiência e de maneira precisa descreve como a condição humana, supostamente evoluída e racional, ainda é refém de urgências subconscientes, oriundas dos estágios primários da evolução.


Olhei para o espelho. Cravei meus olhos no olhar ensandecido, nos lábios sangrentos, nos cortes na testa, no meu olho roxo, nos cabelos desgrenhados, naquele rosto arruinado... Sorri. Sabe o que eu penso sobre cicatrizes? São a glorificação máxima da estupidez masculina. Nós temos toda essa violência contida dentro de nós, um instinto assassino que não se apagou totalmente após milênios de evolução. Quando podemos externar isso, batendo ou apanhando, uma descarga química prazeroso ocorre em nosso cérebro, a libido sobe a níveis incontroláveis, e nossos traumas infantis de dominação feminina são subjugados. Pois nós nunca deixamos de querer ser machos dominantes, violentos e estupradores. Todos os demais comportamentos são hipócritas.

Tinha um bando de idiotas na frente de um boteco sujo. Eu deveria ter subido a Augusta, mas acabei descendo, não imagino por que. Tinha uma garota com esses caras, eles eram uns seis, talvez mais, não posso afirmar, para mim não passavam de vultos. Mas eu me lembro da garota, ela era bem bonita Nada de espetacular, esteticamente falando, mas tinha um certo charme, cabelos lisos avermelhados, pele bem pálida, olhos verdes, um belo decote. Comecei a falar com ela, mas não posso sequer imaginar sobre o que. Pelo que eu me lembre, eu não tinha muito controle sobre minha língua e minha garganta. Não conseguia tirar os olhos do decote, a pele parecia ser tão macia, tão sujeita a um toque... Ela não gostou muito da minha conversa, me empurrou e começou a se afastar. Bom, foi ai que eu fiz o movimento errado, e toquei aquilo que eu queria. Não sei dizer se eles eram punks, skinheads ou garis. Questões ideológicas perdem qualquer sentido, quando um macho toca a fêmea de outro bando. O instinto vem primeiro. Eles gritaram alguma coisa antes de um deles me acertar um murro na cara. Cai instantaneamente, e acho que isso os surpreendeu, pois eles me cercaram e hesitaram. Era o que eu precisava para enterrar meu coturno nas genitais de um deles, que recuou guinchando. Não foi uma coisa esperta de se fazer, eu soube na hora. Comecei a ser chutado por todos os lados. Nas costelas e nas coxas principalmente. Não faço idéia por quanto tempo durou essa tentativa de linchamento. Uma garota começou a gritar e uma sirene salvadora soou pela Augusta. A matilha de assassinos se desfez e meus olhos se abriram. Sangue, cerveja e vomito na sarjeta. Nada mais confortável que um clichê.

Gelo contra meu olho inchado. Minha cabeça latejava, minhas costelas gritavam enfurecidas e minhas pernas não funcionavam direito. A menina que tinha gritado durante meu espancamento me ajudou a entrar no bar. “Seu rosto está horrível”, eu a ouvi dizer, através de um túnel metálico de dor e confusão. Tentei mirar no que possivelmente era o rosto dela a minha frente. “Jura? Logo hoje? Eu esperava ganhar uma grana fazendo ponto, mas aqueles viados velhos só me querem pelo meu rostinho angelical”. Foi então que senti uma enorme tontura e o foco do meu olho bom retornou. Surgiu em minha frente uma moça morena. Ela tinha aquela expressão que todas as mulheres fazem quando um cara não leva a sério algo que supostamente deveria. Olhos cerrados, testa franzida, boca torta... algo meio maternal.
“O que você fez pra eles te baterem?”, ela perguntou impaciente. “Foi marcação de território, a velha história, entende?”. Não, ela não entendeu. Ela não era mais bonita do que a outra garota, mas me parecia muito mais atraente. Os olhos delas eram inteligentes, havia firmeza em sua voz, mas tinha um desalento escondido por trás daquilo tudo. A garota dos sonhos de Gabriel. Pena que ele não estava ali para desperdiçá-la. “Você quer que eu chame uma ambulância?”, ela quis saber. Neguei com a cabeça, o que foi uma idiotice, pos qualquer movimento era doloroso. “Não, ficar por horas na fila de um PS não iria me ajudar muito, mas valeu”. Ela finalmente pareceu concordar comigo. Comecei a me lembrar do carro, de Jorge, provavelmente me esperando no portão da minha casa. Ele diria algo como, “Você não tem jeito, vai acabar preso ou se matando, o que Susana ia pensar?”, essas coisas que meu pai nunca disse. Pobre Jorge. “Eu preciso cair fora”, eu anunciei. “Tem gente esperando por mim”. Ela me olhou perplexa. “Como você vai sair daqui desse jeito?”. Pensei numa boa mentira. “Meus amigos estão de carro, tão num bar aqui perto... eu tava indo pra lá. Não esquenta”. Levantei-me e fui pro banheiro. Então vi com orgulho meu rosto de sobrevivente, o olhar glorioso do derrotado que despertou vivo em sua trincheira. Quando sai de lá, a garota tinha sumido. Normal, ela fez mais do que deveria. Espera... qual era o nome dela mesmo?

O elemento seguiu mancando de volta para o carro. Seu ímpeto de se encontrar com o amigo havia passado. Dessa vez, não houve nenhum confronto ou discussão com os demais freqüentadores de bares ou casas noturnas das proximidades, apenas olhares curiosos e perplexos diante do estado lamentável de Enrico. De índole narcisista e exibicionista nato, nada daquilo o incomodou. Jamais chegou a se lembrar do nome da garota.