segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Qualquer rumo que não seja eu

Desempregado novamente. Nessas épocas de ócio é difícil se manter distante ou neutro da influência de Enrico. Toda noite ao embarcar eu seu Chevette arruinado eu apenas tento imaginar em que dimensão de horror nós iremos acabar. Oh sim, vai ser chocante, mas ninguém mais consegue ficar surpreso. Nós nos vimos estagnados em nossas fantasias grotescas. Isso não era bom pra ninguém.

Decidimos viajar por alguns dias. “O mais longe possível do oceano”, era nosso único plano traçado. Seguimos rumo ao interior, pelas estradas mais abandonadas e precárias que pudéssemos encontrar. Durante nossa jornada, ficou claro que nós dois estávamos tomando rumos muito diferentes. Enrico estava concentrado em mergulhar mais fundo nos limites da sua sanidade, transformando a sua vida em um manifesto surrealista em tempo real. Ele percebeu que nos últimos tempos não passava de uma imitação barata de si mesmo. Vomitar em locais inapropriados e ofender velhinhas em paróquias pode ser genial aos dezessete, mas é meio patético quando se tem vinte três. Ele precisava encontrar um meio mais cerebral de expressar o absurdo. Quanto a mim, estava cansado de toda aquela merda repetitiva. Você espera que com um estilo de vida desses, o imprevisível seja a única certeza, mas não é verdade. As coisas começam a ficar morosas até mesmo nas mesas de bares, nos puteiros e nos becos. Uma hora você cansa de ser bizarro.

Não que eu não tenha me divertido durante a viagem, roubando cerveja, dançando forró com senhoras de meia idade e mostrando a bunda para os carros que vinham no sentido oposto da estrada. Não que eu me sinta mal ou me arrependa de alguma atrocidade nojenta e sem sentido que eu tenha feito na minha vida. E o caralho que de alguma forma eu vou me tornar um sujeito sério e funcional a partir de agora. Eu apenas não estou satisfeito com alguns momentos de êxtase tentando redimir dias de tédio, solidão e frustração. Existem vazios que não se preenchem com risos histéricos e litros de cachaça.

Por uma semana nós vagamos por cidades minúsculas, saqueando pomares, nadando em açudes e dormindo na sombra de árvores. Em cada bar nós inventávamos uma identidade diferente e uma diferente razão para nossa viagem. Uma hora nós éramos irmãos indo tomar posse de uma fazenda que herdamos, outra éramos missionários indo ajudar criancinhas leprosas. Nós conhecemos pessoas interessantes, estúpidas, esquecíveis, cruéis e gentis. Todas elas pareciam muito mais reais do que nós.

“O que aquele velho gritava?”

“Estava, tipo, pregando”

“O que ele falava?”

“Que o homem não mais pertence à Terra. Que nós demos as costas a Deus, a natureza e tudo mais, que esse não é mais nosso lugar”.

“Pertence aonde então?”

“A Lua”

“A Lua? Hahaha”

“É. O nosso espírito pertence à Lua. Uma rocha morta, cinzenta, sem inconstâncias climáticas, sem catástrofes naturais, sem recursos, sem predadores, sem erros, sem barulho ou surpresas... assim como nós gostaríamos que a Terra fosse. Como nós queremos ser”.

Nós desejamos tanto ser livres, mas também queremos ter controle total sobre nós mesmos. Demorei tempo demais pra perceber esta contradição, e me achei preso em uma atuação forçada do que eu pensava que queria ser. O caos sempre encontra uma forma de quebrar minhas certezas. Transformar que era incomum e estimulante em rotina e tédio, foi apenas mais uma delas. Outra forma de me dizer que eu não tenho o controle.

“Gabriel, a nossa viagem não faz sentido”

“Por quê?”

“Hahaha, nós somos burros cara. Nós queríamos nos afastar do Oceano...”

“E daí?”

“E daí que nós demos as costas pro Atlântico e esquecemos que se continuarmos nessa direção, vamos acabar caindo no Pacifico”.