quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Corrosivo

Eu começo a sentir a mutação no momento em que viro a esquina e troco a Augusta pela Paulista. Um leve zumbido de anfetamina, a vista distorcida do álcool e o fluxo contínuo de pensamentos lisérgicos. Fim do recreio rapazes, é hora de malhar esse velho cérebro com um pouco de tortura e auto-recriminação. Falta uma caralhada de hora ainda pro metrô abrir e minha carteira está forrada com duas notas de 2 e algumas camisinhas velhas. Oh, minha bela fúria, cultivada e mimada em uma linda caixa de vidro! Escapou pelo ralo e desceu corroendo pelo meu peito até o fundo do estômago. Muita paixão, muito vinho, muita juventude... não se vai longe assim, faz mal pra saúde. Esse treco não é forte o bastante. Maldita escória, hippie escroto travestido de mendigo me vendeu. Cuzão homicida, me apunhalaria pelas costas por uns trocados, eu li nos olhos dele. Mas me deixem em paz com meu ódio, é tudo que eu tenho agora. Passo pelo MASP, meu joelhos doem. Minha mente dispara pensamentos autodepreciativos que variam entre os temas maturidade psicológica, carreira e trabalho, vida afetiva, aspirações artísticas e habilidades cotidianas, como dirigir e trocar a roupa de cama. Porra, que porra, que porra é essa então? Eu leio Sartre, Russel e um monte de gente morta, tento preencher minha cabeça fútil, mas e aí? Qualquer menina cheirosa arruína isso em segundos. Que deus tenha piedade da minha alma medíocre e daqueles que me rodeiam sorrindo como hipócritas. O pior de mim veio à tona e não posso fazer nada a respeito. Meu Id escapou da jaula e o Superego está preso no sótão, mãos e pernas atadas, amordaçado com uma meia na boca, chorando silenciosamente enquanto assiste a casa pegar fogo. Vai tomar bem no meio do seu cu picareta Freud, você e seu lixo tóxico. Viver assim é obsceno. Eu já to na Brigadeiro e ainda é cedo. Me sento numa escadaria, faço hora, que diferença faz, a noite já não se importa

Que caralho! O que aconteceu? Merda, dormi aqui. Jesus Cristo, que vacilo. Algum maníaco poderia ter batido minha carteira, se insultado com minha miséria e ter me escalpelado por eu ser um fracasso ainda maior que ele. Não se pode confiar nesses tipos. Como eu pude dormir com toda essa química? Aquilo não passava de lixo, um placebo e eu caí direitinho. Mais essa agora, parabéns Gabriel, você perdeu todas as partidas que jogou essa noite. Andar, eu sou bom nisso. Precisava me ver quando eu tinha 17, podia andar por dias, vivendo apenas de chuva e de visões. É nisso que eu sou bom, andar e beber. E ficar em silêncio. Nunca perdi uma partida de vaca amarela, não senhor, nem que custasse minha vida. Estou no Paraíso, mas que merda de ironia. No ponto de ônibus um tarado perturba uma mocinha. Ela manda ele se foder e sai andando. Ele caminha trás dela. Ela berra “você não vai me seguir, porra”. Ele hesita. Ah, se fodeu compadre, o mundo não perdoa quem hesita. Um segundo de lucidez é o bastante pra arruinar uma noite inteira. Loucura é por definição uma certeza absoluta. Sanidade é a capacidade de duvidar. Duvidar de tudo, até de si mesmo. Mas isso é deprimente. Por isso loucos são tão inspiradores. Veja só Hitler ou Moisés. Gente desesperada se deixa seduzir por certezas Mais uma saraivada de pensamentos autodepreciativos. Imagino Dee Dee Ramone rindo de mim. Moleque mimado, o maior dos seus problemas é ter de pedir 20 reais pro seu velho pra ir passear com teus amigos. Na tua idade eu tinha que vender meu cu pra pagar o aluguel e compra heroína. Oh, sim, Dee, você expôs um ponto interessante, mas veja, isso é que é trágico, minha vida é tão mesquinha que precisa ser preenchida com devaneios e delírios, só que eu às vezes eu esqueço e começo acreditar na porra toda. Ai eu acabo numa situação como essa, furioso, humilhado e desejando uma morte iminente. Dee Dee diz que eu o deixo com vontade de vomitar e me abandona. Encosto na porta do Ana Rosa e espero pelo homem. Logo ele vem e eu escorrego escadaria abaixo. Vagão, escadas, ônibus, calçada, casa, rápido assim, sem distrações ou ruídos. Me abrigo debaixo das cobertas e duas lágrimas cáusticas percorrem meu rosto. Fim de luta, o desafiante está na lona, senhoras e senhores, que massacre tivemos aqui. Cambaleou como um animal torturado e não ofereceu resistência alguma. Anjos sussurrarão aos ouvidos de poetas que escreverão sobre essa noite de patética agonia. Deus tenha piedade de todos vocês, seus putos. Não há nada que vocês possam me oferecer agora, eu já fiz minha cama e estou pronto pra dormir. A mutação termina aqui.