quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Fome

Há mais fome no espírito que qualquer ritual pode saciar. O ar é ruim, hostil, um peso vazio dentro de cada um. Os olhos açoitados pelas telas brilhantes multicolores, peças publicitárias e autovigilância. Um único organismo opressor, parasita de si mesmo, apodrecendo.

Há uma nova droga nas ruas que deixa os usuários catatônicos por dias. Depois eles retornam sem lembranças da viagem. Os laboratórios não sabem explicar o que é. Ouvi dizer que há uma nova religião nos subterrâneos e esse químico é utilizado em seus rituais. Os usuários continuam usando e não sabem explicar porquê.

Se você tiver o preparo certo, se estive purificado, irá se lembrar da viagem. Os não iniciados se perdem em um labirinto de estupidez e imundice mental, por isso retornam sem nenhum ganho. É preciso uma limpeza para ver o caminho se iluminar, rumo a Ante-sala da Verdade.

Um traficante me leva pelos subterrâneos até a alcova do profeta. Há dois salões; em um, dezenas meditam, no outro, dezenas esperam. Os rituais de preparo são coletivos: 5 dias. A viagem é solitária. Mais 5 dias. Nós aguardamos as instruções do profeta.

O profeta nos reúne no salão, portas trancadas e sem janelas, exceto por uma clarabóia no alto da abóbada, a sete metros do chão. Ele nos mostra os Cinco Círculos dos Excessos.

Primeiro Dia – O Círculo da Gula: nos lhe é dado um enorme banquete com carnes, frutas, pães, doces, vinho, cerveja... Nossas mãos e bocas ficam untadas de gordura e mel. Comemos por 24 horas.

Segundo Dia: O Círculo da Música: tocamos tambores, cantamos, berramos e dançamos uma música selvagem e primitiva, abastecidos apenas por água, álcool e erva. Festejamos por 24 horas.

Terceiro dia: O Círculo do Sangue e Fogo: quebramos ídolos de cera e vidro, queimamos livros santos, rasgamos nossas roupas e nos flagelamos, tingindo o chão de cinzas, cacos e sangue. Destruímos por 24 horas.

Quarto dia: O Círculo do Sexo: fornicamos como animas sobre o chão imundo, realizando todos os atos possíveis, todas as formas de satisfação reprimidas por séculos de hipocrisia e perversão. Fodemos por 24 horas.

Quinto dia: O Círculo da Privação: sentamos separados, sem falar, sem comer, sem beber e sem se mexer por todo o dia. Estamos imundos e o ar está fétido pelos excessos dos dias anteriores. Nada fazemos por 24 horas.

Ao fim dos Círculos dos Excessos, nos banhamos e somos levados ao outro salão. Recebemos vasilhames com um líquido prateado. Speculum é nome da droga que nos leva ao inicio da viagem. Estou sozinho agora.


O céu é o violeta elétrico. É como um depósito de lixo, com montanhas de carcaças e dejetos por todos os lados. Mas o que está empilhado são todas as minhas lembranças, desejos, fantasias sexuais, amores perdidos e totens da minha ganância. É um festim para a libido, orgulho e sentidos. Mãos suaves da paixão me tocam e seduzem, um inimigo desprezível se posta vulnerável, pronto para ser aniquilado. Sem o preparo devido me perderia entre esses horrores e tentações. Ignoro os ruídos da minha existência fútil e sigo o caminho que se abre diante dos meus olhos. Meus pés descalços sem ferem a cada passo, esmagando detritos.

Ao fim do caminho, uma arvore negra, quase uma sombra. Seus galhos têm espinhos e formam uma escada. Escalo, sangrando minhas mãos e meu rosto, que roça nas folhas ásperas a toda hora. A cada metro percorrido, tudo se torna mais escuro. Até que me vejo diante de uma porta.

A Ante-sala da Verdade se mostra a mim como um quarto de motel vagabundo. A tevê está ligada, fora de sintonia, os lençóis estão imundos. O papel de parede é amarelado, cheio de fungos. A luz do banheiro está acessa. Entro e observo meu reflexo no espelho.

Obedeço ao instinto, e dou um murro. O vidro trinca e meu reflexo se altera. Continua parecido comigo, mas adquire uma presença mais forte, como se houvesse crescido. Os cabelos são completamente negros e os lábios vermelho sangue. Não há olhos, apenas duas órbitas negras e vazias.

“Talvez você tenha vindo à procura de seus deuses. Pois eles não mais aqui se encontram. Estão mortos, todos eles, todos os espíritos, todos os anjos, panteões de imortais aniquilados por vocês e suas vidas mesquinhas. Até mesmo as Musas, decompostas vivas pouco a pouco, nada além de carcaças cujo fedor parece inspirá-los a produzir canções pérfidas de obediência. Só resta a mim agora, agonizando, a espera de alguns exploradores para espalhar a notícia. Vocês vêm em busca da verdade, da iluminação, da paz de espírito... quanta bobagem. De que valem as crenças, os ritos, se vocês vivem como vermes, se envenenado dia após dia em prazeres enganosos e em ódio silencioso? Os seus enormes templos de mármores, seus livros sagrados de regras, seus instintos reprimidos do despertar ao desfalecer, tudo em nome de reis, generais e bispos, pastores sádicos de um gado faminto. Fome espiritual, porque suas vidas não lhe alimentam. Entregam-se a rituais em busca de justificação e alívio. Nenhum ritual seria necessário se vivessem a vida de tal forma que seus espíritos sempre estivessem a flor da pele. Mas ele está atrofiado, enjaulado em uma existência covarde. O medo das trevas os fez ficar próximo à luz e adorar o fogo, ao invés de aprender a enxergar no escuro”.

O reflexo desaparece e o espelho se torna vazio. Desperto e observo a luz do luar entrando no salão pela clarabóia. Não tenho mais nada a dizer.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

S&M é coisa de gente rica

Enrico fechou a grade do elevador antigo, nos trancando na jaula rumo ao subsolo. Me trouxe a esse casarão velho e não me disse o porquê.

Entramos no porão iluminado por velas. Um calabouço de paredes de pedra, chão de madeira e tapetes persas. No salão havia um grupo de pessoas em trajes de gala e máscaras. Enrico e eu paramos a margem e permanecemos sob as sombras. “Olha só que clichê”, ele riu observando a cena. “Hollywood e literatura ruim acabam mesmo com a imaginação”.

Uma mulher vestida em couro trouxe na coleira uma loira de roupão ao centro do salão, despiu a moça e, com a ajuda de um outro sujeito, a amarrou de pernas abertas sobre uma mesa. “Por que você me trouxe a um clube de sadomasoquismo?” “Porque é ridículo”, respondeu Enrico.

“Eu andei pensando sobre esse tipo de coisa, como sadomasoquismo poderia representar a essência da sociedade, aspectos como submissão, manipulação e autoritarismo... mas eu percebi que isso é bosta. Não é nada disso”, dizia Enrico, acompanhado pelos gemidos da moça abusada.

“A verdade é que S e M é coisa de gente rica, só isso. Só quem nunca pegou um ônibus lotado na hora do rush, nunca ficou uma noite sem dormir pensando nas contas a pagar e nunca teve qualquer contato com o caos cotidiano pode ter fetiche sexual pelo sofrimento. Pra eles isso é como viajar para outra dimensão”.

“É isso? Essa é sua teoria? Me trouxe aqui pra isso?”, eu perguntei enquanto os mascarados se revezavam entre chicotear, estapear e masturbar a loira. “Quando você joga videogame e finge que é um super-assassino ou jogador de futebol, sabe? Se você é rico suficiente, pode comprar sua própria simulação de realidade e vivenciá-la em carne e osso. Sadismo talvez seja comum a todas as classes sociais, mas masoquismo? Nesses termos, puramente fetichistas? Um capricho elitista”, discorreu Enrico, me ignorando e acendendo um cigarro.

“Existe uma falsa mecânica ocorrendo”, continuou, “Aparentemente a mocinha amarrada é um mero objeto de uso sexual para os bizarros ai, mas é o contrário. Ela é a estrela do show, o objeto de culto, o centro do Universo. Os tapinhas, as chicotadas, são meras caricias. Nem doem, só deixam marcas temporárias, falsas cicatrizes”.

“Eu quero dizer, acha que ela quer mesmo sofrer? Se alguém entrar ai e matar o gatinho de estimação dela, você acha que ela vai ter um orgasmo? É um teatro patético, é um escárnio com o sofrimento de verdade. É gente rica rindo da gente, pra variar”.

“E quanto a religiosos que praticam autoflagelação? Não tem relação com isso ai? E não são sempre ricos...” eu questiono.

“É diferente. Autoflagelação é direcionar a frustração espiritual na carne. Você ambiciona a santidade, mas não passa de um saco de merda e hormônios. Existe vaidade nisso, é claro, mas o propósito é diferente. O que se sente como purificação é apenas fúria acalmada”.

Agora os mascarados começaram a dor choques na moça com um cilindro de plástico, parecido com aquelas raquetes de matar mosquito. A expressão de Enrico se deformou em desdém. “Meu deus, que falta de senso estético. Velas, couro e... um brinquedo de plástico da 25 de março? Que lixo”.

Então um velhote de máscara surgiu ao nosso lado. Achei que ele ia nos botar para fora ou nos algemar e jogar naquela roda de babacas, mas o que ele fez foi mais inacreditável. “Senhor, vou ter que pedir que apague o cigarro”, disse apontando para o cartaz da lei antifumo pendurado na parede. Enrico gargalhou incrédulo. “Beleza”, ele disse, apagando o cigarro na bochecha do sujeito, que ganiu de dor. “Perdão querido, achei que você também curtia”.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Estética do Linchamento

A tradição histórica de sacrifício humano persiste sob a categoria dos linchamentos. O linchamento consiste em selecionar alguém que tenha quebrado algum valor ou norma social sagrada, portando um paria, um ser que perdeu direito a qualquer tratamento humano, e executá-lo da forma mais cruel o possível em defesa destes valores vigentes.

Isso é importante, pois a culpa horrenda do sujeito absolve e justifica as ações dos linchadores. De tempos em tempos, essas normas são reimaginadas, assim como as desculpas para satisfazer o instinto assassino do cidadão comum.

O linchamento aqui analisado ocorre em um vilarejo de ruas de paralelepípedo e o acusado é Raul S, um funcionário de um sebo. O seu suposto crime foi ter assassinado o amigo imaginário do pequeno Thiago, um menino de nariz escorrido de 8 anos, dono de uma permanente expressão desgraçada que desperta piedade e irritação.

Se de fato Raul realmente assassinou Orco, a representação simbólica das ansiedades sexuais prematuras do garotinho, ou se tudo se trata de um terrível engano, não é relevante. Uma multidão de linchadores não é conhecida por seu julgamento racional. O gosto de sangue surge irresistível em suas línguas e o sacrifício é armado, êxtase em rostos transtornados e brados moralistas.

Raul sabe destes detalhes e decidiu que não perderia seu tempo jurando inocência ou clamando por piedade. Quando a multidão se aglomerou na porta da sua casa, pronta para invadir e arrancá-lo a força para uma boa e velha sessão de espancamento e chuva de cuspe seguida de morte, cujo método ainda não havia sido definido, notou fumaça e chamas vindo do interior da casa. Dois sujeitos abriram a porta e deram de cara com um inferno. O vendedor de livros tinha posto fogo na própria casa.

Ninguém nunca achou o corpo dele, e muitos especulam que talvez ele esteja vivo, assassinando fantasias narcisistas de cidadãos honestos. Quanto ao pequeno Thiago, ele cresceu para se tornar um marido preguiçoso e abusivo. Ele nunca foi linchado por isso.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ninguém lê poesia no século XXI

Ignoro a hora do rush
Caminho 6 quarteirões
Isolado em silêncio simulado
O vento açoita a pele
Espalhando pela mente
Versos inúteis
Para sempre (felizmente) perdidos
No portão da fábrica
Operários sorriem das capas xerocadas
Uma trepada pirateada
Uma xota e seus royalties não recebidos

Sonho com três escravos mortos
Não entendo o que tentam me dizer
Sussurram algo incerto
Algo que pus a perder
Nada disso faz diferença
As pessoas não vão ouvir
O engenho não vai parar
A manhã chega e
Os mesmos degraus esperam
Ninguém lê poesia no século XXI
Ao menos não uma tão ruim.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

A Espera da Febre

Em um vôo cego
Vou como um inseto
Em sua direção
Seu calor me cala
Ela me abraça
Com um sorriso de rejeição

Sentado no parapeito
Incerto de onde está o chão
Um velho devaneio
A vista branca
Precede a colisão

A espera da febre
A espera da febre
Quantas horas até o senão?

Envolvido em um cheiro horrendo
De uma repugnante redenção
O sangue na ponta dos dedos
A porta aberta pra qualquer vilão

Avisto minha fuga
Da verdade absoluta
O amor de qualquer puta
Lubrifica meu coração

A espera da febre
A espera da febre
Quantas horas até o senão?

Semeando um campo árido
Te amei calado
E cada movimento
Era uma confissão

Carta de um tarot marcado
Jaz enforcado
O jogo desfeito
Em suas mãos

A espera da febre
A espera da febre
Quantas horas até o senão?

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ressurreição Parte III

Hoje Jorge Hércules é um legitimo homem de negócios e protetor legal do patrimônio de Enrico Roccato. Mas ele já tinha sido um soldado, um policial e um leão-de-chacára e jamais havia perdido seu olhar vigilante. “Eu vi os dois cornos. Os esquisitões estavam no velório e no enterro. Viram o corpo. Acho que deu tudo certo”.

Enrico ouviu, mas deu mais atenção ao pote de sorvete que devorava. Estávamos sentados em caixotes nesse galpão no Brás. Éramos nós três, os caixotes e um furgão. Isso até a porta do banheiro se abrir. Marco Roccato caminhou de braços abertos, usando a bandeira do Juventus como uma túnica.

“Toque minhas chagas, meu filho”, ele declamou. Enrico levantou os olhos, com falsa reprovação. Eu cuspi todo o meu sorvete. “Esse ai tá sempre rindo, puta merda”, disse o ressuscitado apontando pra mim. “Gabriel, eu tava um defunto bonito?”, respondi que ele aparentava mais saudável no caixão do que o filho dele. “Ah, esse ai tem alergia ao Sol. Você também tá precisando, puta merda. Eu não queria ser a puta que vocês pagam pra comer. Na hora que a bunda de vocês aparece deve ser triste”.

Enrico raspou o fundo do pote. “Nem acreditei que você não fudeu com tudo. Tinha certeza que você ia dar risada, soltar um peido ou fazer alguma merda”. O velho riu do moço. “Não filho, nada disso. Já fudi com minha vida toda, ia fuder com a minha morte?”.

O Sr. Roccato havia empreendido um teatro e enterrado 80 quilos de pedra para que a anulação de sua existência perdoasse suas dívidas e dissipasse seus perseguidores. Dezenas de agiotas, policiais corruptos, banqueiros, cafetões e contrabandistas sorriram a doce derrota juntos. O maior de todos os pilantras tinha ido pro saco. Nunca pagaria um centavo. É a vida.

“Sabe filho, queria que todos tivessem a oportunidade de fazer isso o que eu estou fazendo. Faria bem pra sanidade das pessoas morrer e virar outra pessoa, bem longe. Com certeza evitaria enfartos e suicídios”.

“Quando você quiser a gente vai, Marco”, avisou Jorge, encostado na porta traseira do furgão. Marco assentiu e olhou pro seu pirralho com uma expressão estranha. Enrico pareceu intimidado com o olhar e disse meio hesitante. “A mamãe apareceu lá”. Marco sorriu. “Então foi pra te ver. Pra ela, eu já morri faz tempo”.

Enrico sorriu, o pai sorriu de volta. “Ela falou que se mudou da casa. Disse pra eu aparecer”.

“Você devia ir mesmo. Tá muito velho pra ficar com birra da mãe”.

Marco Roccato não vez nenhum discurso de despedida. Não deu nenhuma lição de moral, não fez um balanço da sua vida errática, não pediu absolvição ao filho. Falou casualmente de seu milaborante plano de fuga via navio cargueiro para a Itália e sobre formas de comunicação secreta via email com nomes falsos e mensagens cifradas.

Me deu um abraço e falou “até que enfim engordou filho da puta, tu parecia um frango, aposto que tá comendo mais mulher agora”. Deu um abraço no Enrico e ia entrando no furgão. Então parou.

“Ah, já ia indo embora de túnica” então riu olhando pra bandeira grená. “Puta merda, que time nós fomo escolher. Não ganhamo mais nada. Toma essa tranqueira ai” e a jogou sobre Enrico, cobrindo seu rosto. Depois que o furgão partiu, ele continuou olhando para aquele pano por um tempo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ressurreição Parte II

A carcaça de Marco Roccato estava sobre a mesa. O caixão era dos mais vagabundos. Estava com seus óculos escuros de grau, sua camisa florida aberta, uma bandeira do Juventus da Mooca de cobertor. Quase sorria o filho da puta. Os convidados do festim fúnebre observavam o corpo com curiosidade e cochichavam e riam baixinho pelos cantos. Todos tinham uma história engraçada/escrota pra lembrar do velho Marco, aquele canalha sem vergonha que devia dinheiro pra metade da sala.

Não tinha padre naquele fuzuê todo, então o primogênito e agora Rei Enrico do clã Roccato, já devidamente coroado e batizado com doses do uísque favorito de sete entre dez homens de meia idade, realizou um discurso em honra a vida e glória do seu papai. Vestido de negro, mais pálido que o lazarento ali morto, usando um par de óculos verdes translúcidos igual que nem seu progenitor usava.

O discurso que se seguiu será aqui relatado:

- Marco Roccato nunca fez absolutamente nada que o desagradasse. Nunca entrou numa loja de construção para escolher piso. Nunca limpou uma calha. Nunca preencheu um formulário da receita federal. Nunca pediu desculpas apenas por educação. Nunca aceitou ordens que julgasse estúpidas. Nunca assistiu a uma peça de teatro para agradar a namorada. Nunca foi gentil com uma mulher sem estar mal intencionado.

Por esse modo de vida, vocês o consideravam um escroto, um figura e um canalha. Ele era tudo que vocês desprezam e tudo que querem ser. Era livre, um sociopata, um bêbado vagabundo que nunca levou um segundo da vida a sério. E isso é uma ofensa para maioria das pessoas, que querem ser levadas a sério o tempo todo.

O conceito de diversão dele envolvia cachaça, putaria e explosões. As crianças estavam sempre por perto dele, por que ele sempre tinha os melhores rojões e fazia uso deles com freqüência. Na visão do meu pai um menino começa a morrer por dentro quando perde o interesse por explosões. Ai eles se tornam homens sérios, carcaças ambulantes, lixo tóxico escravos do ideal projetado pelo Império Intergaláctico do Vaticano Corporativista do Senador Pol Pot.

Quando eu era um pivete, meu pai era meu herói. Eu achava ele o cara mais engraçado do mundo. Ele me levava pra ver jogos na Rua Javari, me ensinava palavrões em italiano e estimulou meu hábito de subir em telhados para rir das pessoas que ficam no chão com medo de cair. Depois com os anos me dei conta que ele era um péssimo marido, um parceiro de negócios tenebroso, um talarico imundo, um ser humano que não valia a confiança de ninguém.

A vida desse heróico merda, encerrada de maneira adequada com um enfarto numa privada suja em um banheiro fedorento a 12 milhões de quilômetros do ser humano mais próximo, me ensinou coisas, tanto nos seus erros e acertos.

A lição é: a vida é uma piada curta que não vale uma noite de sono perdido. Mas em meio a isso, não pise sobre ninguém, não se tranque e nem de as costas aos seus parceiros. Rir sozinho da piada é o final mais triste.

Ninguém se manifestou após essa proclamação. Logo retornaram aos risos e fuxicos. Na porta do salão uma mulher velha, estranhamente familiar, olhava a cena Enrico caixão Marco. Enrico suspirou e caminhou até ela. Não sei o que conversaram. Sabe lá o que dizem mãe e filho um ao outro após cinco anos sem se ver. Houve um gesto de carinho desajeitado, e ela partiu, sem se aproximar do cadáver. Sempre haverá tempo para se visitar os mortos.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ressurreição Parte I

“A humanidade é uma merda de raça que prefere reclamar do trânsito ao invés de dançar pelada debaixo da chuva”, - Enrico Roccato do alto de uma sacada, diante do pátio da Matriz, onde fiéis erguiam suas velas e cantavam suas canções. Era sexta-feira santa.

Nós tinhas um hábito freqüente de olhar as coisas de cima pra baixo, num misto de arrogância boçal juvenil e estranhamento alienígena. Sentinelas alados, anjos da discórdia, ou qualquer merda pretensiosa dessas. No caso, observávamos uma procissão, uma base da Policia Militar e um ponto de ônibus, como se tudo fizesse parte da dimensão paralela B.I.Z.A.R.R.A da qual jamais entenderíamos ou faríamos parte.

Mas logo avistamos um membro na nossa raça de elite no meio daquela babaquice. Um velho bêbado que tinha saído do bar e estava fazendo graça pra duas gostosas no ponto de ônibus. Fazia caretas, sorria abobado, dava uma dançadinha, entre outras diversas técnicas do Grande Manual de Palhaçadas. Uma delas ria e era censurada pela outra. Não convém encorajar gente assim.

Então o ônibus delas chega, elas se levantam e dão o sinal. Aí a que estava rindo diz “tchau vovô” com escárnio/simpatia e o velho clown saí dali vitorioso com aquela migalha de atenção. A dimensão B.I.Z.A.R.R.A perdia um pedacinho.

Enrico ri, mas seu alvo é outro. “Olha só aqueles putos!” e aponta pra procissão que rumou para o meio da avenida e parou o trânsito da saída do supermercado, os motoristas putos diante daquela demonstração de fé bem no meio do caminho, onde já se viu, vão rezar pra lá. E era difícil dizer quem era mais absurdo, os que erguiam suas velas pro fantasma da Páscoa passada, os que confiavam na tecnologia da buzina para interromper transes religiosos ou os dois bobos que riam do alto da sacada, com a certeza de serem um caso a parte de todas essas pataquadas da existência humana.

A multidão se dissipa, os carros seguem rumo aputaquepariu do desenrolar cotidiano perpétuo, dois moleques matam suas latas de cerveja numa sacada. Era tudo comum e absurdo, era há tanto tempo assim que o tempo nem parecia tempo, só uma pintura num painel, e nós éramos espíritos que a habitavam, que nem num filme lá do Orson Welles.

Nada se repete e o absurdo era que isso fazia tudo sempre igual. E você via aquela base dos coxinhas, como se fosse possível fazer mais do que vigiar o Caos, e como viver o dia a dia é seguro e racional, até que você coloca 15 mil dias seguidos na mesma merda em perspectiva e então, meu deus, é hora de acender uma vela prum judeu fudido que morreu igual a outros 10 bilhões de coitados que nem tem três feriados dedicados ao nascimento, morte e ficção.

Enrico amassou a latinha, sorriu pra estátua do João Baptista não decapitado e falou “vamo embora, vamo lá organizar essa porra de funeral”.

terça-feira, 1 de março de 2011

O Último Bordel

Ainda estava lá, de pé entre um estacionamento e uma barbearia, um totem sagrado, último pedaço de inferno vivo naquele paraíso anti-séptico e mesquinho. Essa rua costumava ser nuvem vermelha carregada de cachaça e putaria. A gente a percorria como uma matilha de vira-latas, uivando e espreitando, escorregando pra dentro, escadaria abaixo, e sempre vinha aquele mesmo cheiro. Cheiro de puteiro, isso ninguém esquece. Mas aqueles eram os velhos tempos, antes da velhice e da especulação imobiliária. A nossa selva tinha minguado num jardim, as putas e os bêbados escoados sarjeta abaixo.

Mas ainda estava lá, ele, o mais belo e imundo de todos. Sem o néon azul, meio envergonhado, disfarçado de sei lá o que, o laçador não laça ninguém, só fica a espera. Aqui eu entrei pela primeira vez, 32 anos antes. Aqui eu entrei, pela primeira vez. Eu e mais quatro temerosos cabaços, forçando a vista na penumbra da putaria. Cinco pivetes arremessados a pia batismal. E um delas não emergiu nunca mais.

Ela pede um drink, eu digo pega lá, hoje homem feito que não nega nada, mas nos velhos tempos, hahaha, não gastava nada e ainda te ximbava. Ninguém atravessa a cascata de néon e retorna impune, ouvi alguma vez em algum lugar, e era verdade. O pior de você vem à tona, era como se o lugar todo fosse uma máscara. Ela volta com uma caipirinha, eu fico na cerveja. Os procedimentos são os mesmos. Uma hora deixa de ser batalha e vira teatro.

32 anos enclausurado. Um bunker mesquinho a prova de tempo e mágoa. Por que eu tive medo. Quatro saíram e seguiram a vida. Bem ou mal, pau no cu deles, chegaram em algum lugar. Eu pensei “antes em lugar nenhum do que no lugar errado”. E perdi tudo que não tive. A paisagem era um teto embolorado e meu reflexo patético em espelhos de todos os quartos de mil inferninhos da grande São Paulo. Algumas trepada boas, outras ruins, mulheres de nomes falsos, às vezes verdadeiros. Não conheci nenhuma delas. Não esperava envelhecer diante desses espelhos.

Quarto 4, o quarto primordial e agora derradeiro. Mesma decoração, lençol, toalhas e camisinhas sobre a mesa. Menina nova, agora quase todas me parecem assim, faz tudo como deve ser feito. Quantos corpos, quantos olhos, quantas gotas de suor antes dela? A paixão é uma fôrma onde despejamos nossos sonhos e medos, e como é frustrante quando a outra parte não tem a forma que escolhemos. Por isso foram 32 anos quebrando fôrmas? Olho o céu embolorado, o corpo jovem que se afasta. E no espelho, o encontro incrédulo de velhas retinas.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Macho Alfa

Deitado na cama do quarto observando as mudanças de foco da minha visão, conforme abria e fechava um dos olhos, abatido, pensante, absorto nas pateticamente trágicas questões que fazem os jovens sentirem o peso da mortalidade, quando um chute violento escancarou a porta. Enrico adentrou o quarto e me olhou gravemente. – “Enfermeira! Temos uma emergência aqui!”. – antes que eu pudesse me levantar e dizer qualquer coisa, uma moça vestida de enfermeira, trajes tão obscenos que fariam a Associação das Enfermeiras processarem Enrico na hora e dizer que aquilo era um desrespeito que a classe não iria tolerar, entrou no quarto empurrando uma maca com uma maleta em cima. Enrico começou a medir minha temperatura com a palma da mão na testa. – “Parece um caso de inanição devido à abstinência sexual, alcoólica, espiritual e monetária. Pode ser fatal! Precisamos começar a cura imediatamente! Enfermeira! – então a enfermeira de decote abismal e saia de proporções chauvinistas tirou da maleta um bong acoplado a uma máscara de inalação e entregou ao Dr. Enrico. Sempre com um sorriso lascivo no rosto, ela pegou um isqueiro e acendeu o troço, que Enrico prontamente enfiou na minha cara. A porra era forte e eu não pude sequer pensar em fazer ou dizer algo durante a situação toda. – “Ele parece estar reagindo... agora é hora de realizar a sucção. Enfermeira!”. – ela levou o seu sorriso até minha virilha e abriu a braguilha. Pôs pra fora meu pau duro, que assim estava desde que reparei que tinha uma enfermeira gostosa em meu quarto, e começou o procedimento. Por um momento Enrico fez uma cara perplexa, grunhiu puta merda, pegou um par de luvas cirúrgicas da maleta e lamentou “porra, como sou distraído” enquanto vestia a importante peça de higiene médica. Então voltei a reparar na mudança de foco dos meus olhos, dessa vez involuntária, enquanto o Doutor retirava um recipiente metálico da maleta. – “Enfermeira, a carga hormonal descarregada?" – ela cuspiu e sorriu deliciosamente. O cirurgião chefe analisou o conteúdo, fez um gesto de aprovação, abriu a janela e arremessou o recipiente como um frisbee. – “Certo, parece ter um quadro estável agora. Apenas tome essa pílula, e poderemos prosseguir com a segunda parte do tratamento”. – eu não tenho idéia do que era aquilo, mas confiei em meu médico e engoli a medicação.

Fui levado de maca para a sala e colocado de frente para televisão. Enquanto Enrico colocava um dvd, a Enfermeira Gostosa preparava um cateter com mais algum elemento estranho a ser injetado em meu corpo. Senti a picada no momento que a exibição começou. Era um documentário sobre a natureza, com imagens de grupos de leões, leopardos, chimpanzés e todos as criaturinhas selvagens que um dia navegaram com Noé. Um narrador com sotaque britânico dizia coisas que nas legendas se liam assim:

“Os machos de uma sociedade animal podem ser divididos hierarquicamente em três níveis: alfa, beta e ômega”.

“O macho alfa ganha o direito de ser o primeiro a comer e o primeiro a acasalar. Ele atinge esta posição por meio de superioridade física. Em algumas espécies, eles são os únicos animais do grupo que podem ter contato sexual com as fêmeas”.

“O macho beta é aquele que irá assumir o posto de liderança caso o alfa venha a morrer”.

“O termo macho ômega é usado para se referir à casta mais baixa da hierarquia social. Um ômega é subordinado a todos os outros membros do grupo. Normalmente, o macho ômega é o último a ter permissão para comer”.

“As qualidades que levam o macho à posição de poder indicam às fêmeas características genéticas superiores aos demais machos. Isso dará ao macho alfa a preferência no momento do acasalamento”.

Durante aquela exibição de rituais de humilhação, violência e sexo, eu senti o soro dançar desagradavelmente em mim. Senti também a pílula eclodir em minha cabeça. E tudo isso acompanhado de uma queimação ácida que subia do meu estomago em direção ao peito. Então eu me tornei uma carcaça em ebulição hormonal, vazio de pensamentos e emoções, apenas conectado ao instinto de encerrar a dor e vomitar tudo aquilo que não fazia parte de mim. Com os olhos novamente sem foco, notei a maca se movimentando. A luz solar me cegou por um momento e então um movimento brusco me jogou de pé. Quando dei por mim, estava na beira da sacada, encarando um chão incerto quilômetros abaixo, o braço de Enrico ao redor do meu pescoço me impedindo de desabar. Então eu vomitei, com agonia e prazer, como se minhas entranhas ejaculassem, como se um veneno fosse destilado, como se um demônio fosse extraído a fórceps de dentro de mim. Litros de gorfo imundo e fedorento prédio abaixo, tingindo com o pior de mim algum limbo de concreto. Terminei tudo numa tossida seca, Enrico dando um tapinha nas minhas costas dizendo “boa, garoto, isso mesmo” e me recolocando na maca. Balbuciei: “Cadê a enfermeira... como é nome dela?”, ao que Enrico respondeu - “Ela não tem nome. É só uma enfermeira gostosa”. Acho que eu já deveria saber disso.