segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ressurreição Parte III

Hoje Jorge Hércules é um legitimo homem de negócios e protetor legal do patrimônio de Enrico Roccato. Mas ele já tinha sido um soldado, um policial e um leão-de-chacára e jamais havia perdido seu olhar vigilante. “Eu vi os dois cornos. Os esquisitões estavam no velório e no enterro. Viram o corpo. Acho que deu tudo certo”.

Enrico ouviu, mas deu mais atenção ao pote de sorvete que devorava. Estávamos sentados em caixotes nesse galpão no Brás. Éramos nós três, os caixotes e um furgão. Isso até a porta do banheiro se abrir. Marco Roccato caminhou de braços abertos, usando a bandeira do Juventus como uma túnica.

“Toque minhas chagas, meu filho”, ele declamou. Enrico levantou os olhos, com falsa reprovação. Eu cuspi todo o meu sorvete. “Esse ai tá sempre rindo, puta merda”, disse o ressuscitado apontando pra mim. “Gabriel, eu tava um defunto bonito?”, respondi que ele aparentava mais saudável no caixão do que o filho dele. “Ah, esse ai tem alergia ao Sol. Você também tá precisando, puta merda. Eu não queria ser a puta que vocês pagam pra comer. Na hora que a bunda de vocês aparece deve ser triste”.

Enrico raspou o fundo do pote. “Nem acreditei que você não fudeu com tudo. Tinha certeza que você ia dar risada, soltar um peido ou fazer alguma merda”. O velho riu do moço. “Não filho, nada disso. Já fudi com minha vida toda, ia fuder com a minha morte?”.

O Sr. Roccato havia empreendido um teatro e enterrado 80 quilos de pedra para que a anulação de sua existência perdoasse suas dívidas e dissipasse seus perseguidores. Dezenas de agiotas, policiais corruptos, banqueiros, cafetões e contrabandistas sorriram a doce derrota juntos. O maior de todos os pilantras tinha ido pro saco. Nunca pagaria um centavo. É a vida.

“Sabe filho, queria que todos tivessem a oportunidade de fazer isso o que eu estou fazendo. Faria bem pra sanidade das pessoas morrer e virar outra pessoa, bem longe. Com certeza evitaria enfartos e suicídios”.

“Quando você quiser a gente vai, Marco”, avisou Jorge, encostado na porta traseira do furgão. Marco assentiu e olhou pro seu pirralho com uma expressão estranha. Enrico pareceu intimidado com o olhar e disse meio hesitante. “A mamãe apareceu lá”. Marco sorriu. “Então foi pra te ver. Pra ela, eu já morri faz tempo”.

Enrico sorriu, o pai sorriu de volta. “Ela falou que se mudou da casa. Disse pra eu aparecer”.

“Você devia ir mesmo. Tá muito velho pra ficar com birra da mãe”.

Marco Roccato não vez nenhum discurso de despedida. Não deu nenhuma lição de moral, não fez um balanço da sua vida errática, não pediu absolvição ao filho. Falou casualmente de seu milaborante plano de fuga via navio cargueiro para a Itália e sobre formas de comunicação secreta via email com nomes falsos e mensagens cifradas.

Me deu um abraço e falou “até que enfim engordou filho da puta, tu parecia um frango, aposto que tá comendo mais mulher agora”. Deu um abraço no Enrico e ia entrando no furgão. Então parou.

“Ah, já ia indo embora de túnica” então riu olhando pra bandeira grená. “Puta merda, que time nós fomo escolher. Não ganhamo mais nada. Toma essa tranqueira ai” e a jogou sobre Enrico, cobrindo seu rosto. Depois que o furgão partiu, ele continuou olhando para aquele pano por um tempo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ressurreição Parte II

A carcaça de Marco Roccato estava sobre a mesa. O caixão era dos mais vagabundos. Estava com seus óculos escuros de grau, sua camisa florida aberta, uma bandeira do Juventus da Mooca de cobertor. Quase sorria o filho da puta. Os convidados do festim fúnebre observavam o corpo com curiosidade e cochichavam e riam baixinho pelos cantos. Todos tinham uma história engraçada/escrota pra lembrar do velho Marco, aquele canalha sem vergonha que devia dinheiro pra metade da sala.

Não tinha padre naquele fuzuê todo, então o primogênito e agora Rei Enrico do clã Roccato, já devidamente coroado e batizado com doses do uísque favorito de sete entre dez homens de meia idade, realizou um discurso em honra a vida e glória do seu papai. Vestido de negro, mais pálido que o lazarento ali morto, usando um par de óculos verdes translúcidos igual que nem seu progenitor usava.

O discurso que se seguiu será aqui relatado:

- Marco Roccato nunca fez absolutamente nada que o desagradasse. Nunca entrou numa loja de construção para escolher piso. Nunca limpou uma calha. Nunca preencheu um formulário da receita federal. Nunca pediu desculpas apenas por educação. Nunca aceitou ordens que julgasse estúpidas. Nunca assistiu a uma peça de teatro para agradar a namorada. Nunca foi gentil com uma mulher sem estar mal intencionado.

Por esse modo de vida, vocês o consideravam um escroto, um figura e um canalha. Ele era tudo que vocês desprezam e tudo que querem ser. Era livre, um sociopata, um bêbado vagabundo que nunca levou um segundo da vida a sério. E isso é uma ofensa para maioria das pessoas, que querem ser levadas a sério o tempo todo.

O conceito de diversão dele envolvia cachaça, putaria e explosões. As crianças estavam sempre por perto dele, por que ele sempre tinha os melhores rojões e fazia uso deles com freqüência. Na visão do meu pai um menino começa a morrer por dentro quando perde o interesse por explosões. Ai eles se tornam homens sérios, carcaças ambulantes, lixo tóxico escravos do ideal projetado pelo Império Intergaláctico do Vaticano Corporativista do Senador Pol Pot.

Quando eu era um pivete, meu pai era meu herói. Eu achava ele o cara mais engraçado do mundo. Ele me levava pra ver jogos na Rua Javari, me ensinava palavrões em italiano e estimulou meu hábito de subir em telhados para rir das pessoas que ficam no chão com medo de cair. Depois com os anos me dei conta que ele era um péssimo marido, um parceiro de negócios tenebroso, um talarico imundo, um ser humano que não valia a confiança de ninguém.

A vida desse heróico merda, encerrada de maneira adequada com um enfarto numa privada suja em um banheiro fedorento a 12 milhões de quilômetros do ser humano mais próximo, me ensinou coisas, tanto nos seus erros e acertos.

A lição é: a vida é uma piada curta que não vale uma noite de sono perdido. Mas em meio a isso, não pise sobre ninguém, não se tranque e nem de as costas aos seus parceiros. Rir sozinho da piada é o final mais triste.

Ninguém se manifestou após essa proclamação. Logo retornaram aos risos e fuxicos. Na porta do salão uma mulher velha, estranhamente familiar, olhava a cena Enrico caixão Marco. Enrico suspirou e caminhou até ela. Não sei o que conversaram. Sabe lá o que dizem mãe e filho um ao outro após cinco anos sem se ver. Houve um gesto de carinho desajeitado, e ela partiu, sem se aproximar do cadáver. Sempre haverá tempo para se visitar os mortos.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Ressurreição Parte I

“A humanidade é uma merda de raça que prefere reclamar do trânsito ao invés de dançar pelada debaixo da chuva”, - Enrico Roccato do alto de uma sacada, diante do pátio da Matriz, onde fiéis erguiam suas velas e cantavam suas canções. Era sexta-feira santa.

Nós tinhas um hábito freqüente de olhar as coisas de cima pra baixo, num misto de arrogância boçal juvenil e estranhamento alienígena. Sentinelas alados, anjos da discórdia, ou qualquer merda pretensiosa dessas. No caso, observávamos uma procissão, uma base da Policia Militar e um ponto de ônibus, como se tudo fizesse parte da dimensão paralela B.I.Z.A.R.R.A da qual jamais entenderíamos ou faríamos parte.

Mas logo avistamos um membro na nossa raça de elite no meio daquela babaquice. Um velho bêbado que tinha saído do bar e estava fazendo graça pra duas gostosas no ponto de ônibus. Fazia caretas, sorria abobado, dava uma dançadinha, entre outras diversas técnicas do Grande Manual de Palhaçadas. Uma delas ria e era censurada pela outra. Não convém encorajar gente assim.

Então o ônibus delas chega, elas se levantam e dão o sinal. Aí a que estava rindo diz “tchau vovô” com escárnio/simpatia e o velho clown saí dali vitorioso com aquela migalha de atenção. A dimensão B.I.Z.A.R.R.A perdia um pedacinho.

Enrico ri, mas seu alvo é outro. “Olha só aqueles putos!” e aponta pra procissão que rumou para o meio da avenida e parou o trânsito da saída do supermercado, os motoristas putos diante daquela demonstração de fé bem no meio do caminho, onde já se viu, vão rezar pra lá. E era difícil dizer quem era mais absurdo, os que erguiam suas velas pro fantasma da Páscoa passada, os que confiavam na tecnologia da buzina para interromper transes religiosos ou os dois bobos que riam do alto da sacada, com a certeza de serem um caso a parte de todas essas pataquadas da existência humana.

A multidão se dissipa, os carros seguem rumo aputaquepariu do desenrolar cotidiano perpétuo, dois moleques matam suas latas de cerveja numa sacada. Era tudo comum e absurdo, era há tanto tempo assim que o tempo nem parecia tempo, só uma pintura num painel, e nós éramos espíritos que a habitavam, que nem num filme lá do Orson Welles.

Nada se repete e o absurdo era que isso fazia tudo sempre igual. E você via aquela base dos coxinhas, como se fosse possível fazer mais do que vigiar o Caos, e como viver o dia a dia é seguro e racional, até que você coloca 15 mil dias seguidos na mesma merda em perspectiva e então, meu deus, é hora de acender uma vela prum judeu fudido que morreu igual a outros 10 bilhões de coitados que nem tem três feriados dedicados ao nascimento, morte e ficção.

Enrico amassou a latinha, sorriu pra estátua do João Baptista não decapitado e falou “vamo embora, vamo lá organizar essa porra de funeral”.