sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Sob a ação do fogo

Fixando seus olhos nas chamas, o Poeta contemplava com satisfação resignada as folhas de papel se contorcendo e morrendo sob a ação do fogo. Aquela fogueira em um latão velho era o seu altar, onde o sacrifício supremo era feito. Pilhas e pilhas de sua obra máxima queimavam, e conforme as labaredas aumentavam, ele sentia que dentro dele algo se apagava. Era uma alivio.

Tinha sido um acidente. Não havia luz elétrica, então havia velas acesas pela casa toda. Algo lhe atormentava por dias, uma torturante memória que se repetia sem cessar, um erro imperdoável, um remorso que não se calava, a vontade absurda de tentar refazer sua ação em algum lugar no passado e a sufocante agonia de saber que não haveria redenção para seu crime. Tentando apaziguar a angustia em seu peito, ele escreveu a mão incontáveis linhas sobre o seu erro, refazendo a dolorosa cena, sem ocultar nenhuma humilhação ou culpa. Seus pulsos gemiam no espasmo que era aquele auto-flagelo. Ele leu mais de uma vez aquela carta sufocante, mas não houve alivio, apenas uma breve sensação de dormência, uma agonia letárgica que combinada com a fraca iluminação, tornaram um esforço tremendo manter seus olhos abertos. Ele adormeceu sobre a mesa, e ao despertar, esbarrou seu braço no apoio da vela, que caiu sobre suas folhas e causou um pequeno incêndio. O Poeta resolveu tudo com a ajuda de um cobertor velho, e com certo pesar observou as cinzas que se espalhavam sobre a mesa.

Algo aconteceu. A Musa passou por ele, como se nada tivesse ocorrido. Nenhum olhar de censura, nenhum riso de escárnio, muito menos mágoa entre eles. O Poeta sentiu a angústia morrer em seu peito e aquela lembrança se dissipar com um sonho desbotado e sem sentido. Ele sabia agora, tinha feito uma descoberta fascinante, que logo o consumiu como nenhum outro vicio já havia feito antes. Cada vergonha, cada memória triste, cada segundo perturbador de sua vida era transcrito para depois ser incinerado. Por dias ele se sentiu poderoso, invencível, um alquimista que podia manipular o próprio destino. Ele podia até cometer os piores pecados sem ter que se preocupar com as conseqüências. Tudo viraria pó. Sem lembranças, sem vitimas, sem remorso.

Seu reflexo no espelho lhe dizia que algo estava errado. Seu rosto havia perdido a cor, seus olhos não tinham mais vida. Seu corpo era um mero fantasma, translúcido e enfraquecido. Dentro dele, um vazio imensurável, um abismo que jamais seria preenchido, uma desesperança tão profunda que o único desejo que restara era o de desaparecer. A noite, não mais sonhava. Eram apenas grandes intervalos escuros entre o adormecer e o despertar. Seus amigos não o reconheciam, ele era uma memória perdida no tempo. A Musa o abandonara, e seus poemas eram vazios, desprovidos de alma e sentido. Até que um dia ele não mais pode escrever. Na fúria de apagar suas fraquezas, e moldar se um ser perfeito e indestrutível, ele percebeu, ele havia destruído seu próprio âmago, sua ânsia de viver e de servir bem a quem amava. Não havia mais nele o ímpeto criativo, nem a vontade de reconstruir o mundo a sua maneira. Tudo era cinza, vazio e irreal. Desprezava a tudo e não pertencia a nada. Só havia vaidade, luxuria e cobiça. Seu ego inflamado o conduziu a esta criatura triste e solitária. E no brilho final produzido por sua mente, ele soube o que fazer.

Levaram dias. Ele não comeu, nem dormiu, apenas escreveu. Cada lembrança, cada glória, cada instante ainda vivo em sua cabeça. Seus sorrisos, seus beijos, suas brincadeiras na infância, suas descobertas, suas mentiras. Pilhas de papeis se acumulavam sobre a mesa. Quando terminou, colocou tudo em uma grande caixa de papelão. Em um terreno baldio, ele fez uma fogueira num velho latão. Quando as folhas começaram a se queimar, ele sentiu um doloroso alivio. A lenta morte do seu ego produzia um estranho formigamento em seu corpo e uma névoa fria tomava conta de seus pensamentos. A cada memória queimada, sua vista se embranquecia mais. Quando a última página se consumiu, ele estava livre, desconectado do mundo para sempre, como sempre havia desejado intimamente. Sua existência seria ignorada, sua mãe nunca o havia parido, seu pai nunca o concebido, ninguém o amado, nem o desprezado. Ele era apenas pó levado pelo vento.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

A Jaula

Ela me espera em agonia
Revela a minha real ferida
Desejo ter a alma livre
Mas a dor e o medo ainda existem

O espelho não reflete a verdade
O destino não obedece a minha vontade
E me abandona aqui

Ainda corre em mim o seu veneno
Guardo a cicatriz do seu beijo
Aprisionado em mim, agora eu vejo
A dor de fugir do que eu desejo

Talvez o esforço seja em vão
E o meu corpo seja a minha prisão
Sinto esmorecer pouco a pouco
Feito refém do seu conforto

O controle se reserva a ela
E ao meu redor a realidade se altera
E me abandona aqui

Por uma passagem estreita eu chego ao fim
A alma desfeita dentro de mim
O que eu fiz não tem perdão
Me abandone aqui sem o seu perdão

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Estrada

Era um jeito estranho de encerrar um funeral. A 220 por hora, em um Chevette marrom despedaçado, cheiro de mofo, fuligem e vodca no ar. Essa rodovia é conhecida como a estrada da morte, e ver Enrico dirigir com uma garrafa de Smirnoff entre os joelhos me deixou levemente tenso. Não fazia mais do que duas horas desde haviamos deixado à funerária. A voz no telefone soou sóbria demais para ele, “Tenho que ir num velório, quer ir comigo?”. Foi estranho, era de uma amiga da família dele, chamada Susana. “Foi chefe do meu pai, ele era segurança do bar dela”. Todo mundo parecia conhecer Enrico, e o fitavam com um ar paternal, típico de quem o havia conhecido na infância e o visto crescer. Ele se recusou a ver o corpo no caixão. Fui ao banheiro, e quando voltei, ele havia sumido. Um sujeito com cara de boxeador me pediu para esperar. Meia hora depois, Enrico aparece com aquele museu que por milagre ainda rodava. Fiquei com medo de perguntar onde ele tinha arrumado aquilo. “Um amigo emprestou”, sem maiores detalhes não me convenceu. Então um sujeito bêbado, transtornado, sentado em um carro cuja única forma de servir bem a humanidade seria apodrecendo em um pátio imundo qualquer, onde ratos e mendigos disputam abrigo entre a ferrugem, propõe uma viagem de 6 horas para o sul do estado. O que você faz?

Paramos em um posto no meio do nada. Fui mijar e quando voltei encontrei Enrico fumando com uma garota. Ela era muito bonita, e Enrico tentava uma sutil aproximação, tão sutil quanto era possível para ele. De qualquer forma, enquanto os dois estavam no banco traseiro do carro, eu comia no restaurante e pensava na minha inerte vida sexual. Enrico me disse que eu exagerava na idealização das mulheres e via todas elas ou como putas, ou como santas. Segundo ele, esse meu machismo enrustido por de trás da minha máscara de timidez apática era a razão da minha falta de habilidade com as garotas. “Todo mundo tem que ter seus complexos”, eu disse, aceitando a teoria rapidamente, para não ter que digeri-la da maneira apropriada. Um caminhoneiro aparece avisando de um acidente grave. Um carro incendiou e a pista estava cheirando a carne queimada. Vodca quente e o pão com queijo derretido se revoltaram no meu estomago. Abraço um vaso imundo, lavo o rosto, empato uma foda e saio daquele limbo.

Grande revelação. Enrico disse que a sua falecida amiga tinha sido uma mãe pra ele. “Quando eu brigava com aquela puta (Enrico se refere a sua mãe invariavelmente sob essa terminologia) eu ia me esconder no bar dela. Ela me ouvia, me tratava como gente. Merda, as pessoas boas sempre se fodem...” Silêncio que precede mais um monologo. No painel percebo uma luz vermelha acesa, avisando de alguma falha mecânica á muito ignorada. “Meu pai adorava ela, uma das razões por que ela largou a vaca foi por que ela tinha ciúmes da amizade dos dois, mas meu pai nunca pegaria ela...” Por que? Por que o peito maternal que abrigou meu amigo em sua infância, era silicone puro. Seu rosto e corpo eram resultados de cirurgias e hormônios, e entre suas pernas a verdade repousava. “Susana era um homem... biologicamente falando”.

Alguns de seus desafetos ironizaram sua morte, dizendo que tinha sido câncer nos testículos, mas isso era uma grande calunia. “Foi no pâncreas, e depois se espalhou no organismo. Porra, não bebia, não fumava, merda...” Se recusou a fazer quimioterapia, morreu 3 meses depois de constatada a doença. “A pessoa mais decente que eu já conheci, seca e morre durante 3 meses, vomitando e cagando sangue. Que porra de mundo é esse?”. Enrico costumava ser cínico. Provavelmente diria em resposta a si mesmo algo como “Câncer não escolhe suas vitimas por um processo de seleção moral. Acontece por pré-disposição genética e efeitos do ambiente”, mas ele estava muito perturbado. A vodca acabou, mas no porta-malas tinha mais.

Aquela cidade não podia existir. Parecia uma imagem de guerra de um país exótico e distante, crianças semi-nuas correndo entre os bananais. Só tinha bananeiras, casebres e miséria, em todos os cantos. O carro parou em frente a melhor casa da região, o que não significa grande coisa. Em uma cadeira da praia repousa o grande bêbado. Era aquilo que acontece conosco no final? Os transgressores, ébrios, sonhadores, todos terminavam derrotados, destruídos fisicamente e abatidos pela sensação de desperdício? Pai e filho se encaram e não dizem nada. As lagrimas daquele velho me comovem e me repulsam ao mesmo tempo. As crianças me observam com tímida curiosidade. Enrico se vira para mim. “Vamos embora”, ele quis ordenar, mas apenas suplicou, sem voz. Nego com um gesto, precisamos dormir. Aquela casa suja teria que nos abrigar.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Exílio

Marco estava sentado sob o Sol fraco de outono, no jardim de sua casa, cercado pelas crianças da região. Elas brincavam, corriam e berravam umas com as outras, mas não ousavam incomodar seu anfitrião. Marco ria, contava e ouvia histórias, bebia um pouco de sua vodca e cantava canções em italiano. Estava naquele fim de mundo há alguns anos já, cercado de crianças miseráveis, agricultores e bananeiras. Só tinha banana naquela merda de terra, para onde você olhasse. 54 anos de vida, ambições e sonhos se reduziam a um velho de pele queimada, camisa desabotoada, óculos de sol vagabundos e uma garrafa de vodca da pior qualidade.

Nascido na Itália, vagabundeava pelo Brasil desde os 17. Se envolveu em golpes, prostituição, desmanches, alambiques clandestinos, cassinos, trafico internacional de muamba, drogas e armas, roubo de carga, empresas fantasmas, estelionato, buffets infantis, táxis, proxenetas, torniquetes improvisados, camisinhas vencidas, anticoncepcionais falsificados, desova de químicos em mananciais, amuletos da sorte, bingos, seqüestro de cadáveres e especulação imobiliária. Casou-se há 25 anos com uma operária do Brás chamada Estela. Ela era linda, loira e de olhos azuis, mas bebia muito, até mais do que ele mesmo. Tiveram um filho, Enrico. Quando o moleque tinha 9, Marco se mandou. Nunca chegou a perder o contato com o filho, mas um não ligava muito pro outro.

Falido e ameaçado por meio mundo, se refugiou nesse vale, que mais parece um cu atolado de bananas. Um alqueire de terra não vale nada e uma tonelada de banana menos ainda. Mas é possível sobreviver e comprar um pouco de vodca. Obviamente, Marco não mexe um dedo, os vizinhos é que retiram as frutas, carregam o caminhão e vendem o produto. Em troca, ele paga uma mixaria e deixe toda aquela molecada brincar na sua casa.

Ele coça uma picada de pernilongo em seu calcanhar pálido e sente algo de errado. Uma vibração estranha, um mau pressentimento, uma nuvem de negatividade se aproximar. Logo tudo se reduz ao ronco de um carro velho se aproximando na estrada. Um Chevete marrom despedaçado para em frente a sua casa e um silêncio insano se faz quando seu motor se desliga. Lá de dentro brotam dois sujeitos, pálidos e sonolentos. Semblantes cerrados, devido ao Sol rasteiro nos olhos. Um parecia perdido e curioso, e olhava ao seu redor, vagaroso e confuso. O outro parecia mortalmente sério, sabia onde estava e quem devia procurar. Seus olhos se encontraram com as lentes empoeiradas de Marco, que viu nos olhos do filho a fúria pesarosa de alguém que não queria estar aqui, mas não teve escolha. E logo ficou claro que a presença de Enrico se devia únicamente a um anúncio fúnebre. Os dois jovens se postaram em frente ao velho, e mutuamente sentiram o cheiro de vodca que os três carregavam. Pai e filho tinham o mesmo hábito, pensou Gabriel, inebriado. E como dois mensageiros infaustos, eles ali ficaram, sem dizer uma palavra. Provavelmente a mãe dele, pensou Marco, mas não, não era isso, ele sabia. Então o olhar incendiário de Enrico baixou triste para o chão, do jeito que só uma pessoa seria capaz de fazer, logo percebeu seu pai. E em meio às crianças caladas e intimidadas por aqueles dois estranhos, Marco colocou as mãos sob suas lentes sujas e tentou segurar suas lágrimas. E aquele que menos merecia, estava morto.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Ela Vem Como Uma Tempestade

Ela vem como uma tempestade
Destruindo os contornos da minha ilusão
Seu sopro gélido é minha única verdade
Arruinando a final esperança de redenção

Ela vem como uma tempestade

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Efeito Néon

Desci a Augusta feito um sonâmbulo, porra quente nas minhas pernas, fruto de uma bolinada com uma colegial de sorriso tímido e mãos ágeis que me prensou contra um muro escuro de uma travessa qualquer, presenteou-me com sua saliva com teor de cannabis e com uma punheta de 6 minutos. Uma mistura de euforia alcoólica e efeitos colaterais do orgasmo tiraram o foco da minha vista e adulteraram meu senso de direção, mas de algum modo cheguei aonde devia chegar.

Morto, assim Gabriel parecia estar quando o encontrei deitado de costas a margem da pista de dança. Me aproximei e notei em seu semblante uma já característica expressão angustiada, como de um profeta mudo diante da extinção de sua civilização, condenado ao peso de seu dom inútil e incapaz de fazer algo mais do que assistir ao apocalipse de sua própria era. Olhos abatidos, fixos no canto mais escuro da casa. Tentei localizar algo ali, mas não havia nada, apenas trevas. Chutei-o entre as costelas e perguntei se ele estava bem. Ele moveu a cabeça uma distância insignificante, quase imperceptível, apenas o suficiente para me encarar e fazer um gesto afirmativo. O pus de pé sem dificuldades e caminhamos vagarosamente para fora dali.

Sentamos em frente a um boteco, lado a lado, sem dizer uma palavra. Gabriel continuava a fitar algum acontecimento passado, futuro ou fictício, e mantinha se distante da minha presença. Fingi que não ligava, como sempre faço, e fiquei observando a movimentação das boates, dos bares e das putas. Um carro de policia espantou uma roda de maconheiros, entre eles a garota com quem tinha me entretido há alguns instantes. Ela me pareceu bem sem graça a distância. Porra de Augusta, o clichê máximo de todos os clichês ambulantes de São Paulo. Os boêmios cheios de pose, os falsos poetas, punks dos jardins e skinheads de pele parda. Porteiros de boate encaram tudo com desinteresse e as putas parecem ser as únicas a se camuflar. Passarela do exibicionismo de todos os orgulhos bizarros, fetiches forçados e da vaidade reprimida nas demais ruas. Nada é real e a última coisa que importa é ser autêntico. Desconfio até mesmo de pensamentos quando estou aqui, como se estivesse em um universo paralelo cujo efeito é semelhante a uma droga alucinógena que me faz acreditar que eu seja o que fantasio ser. Ao meu lado, Gabriel suspira, sufocado pela máscara que escolheu usar hoje a noite.

Subindo rua, do lado oposto da calçada, um casal de mãos dadas escarrou em nosso rosto com sua mera presença. A realidade naquele andar sincronizado, no sorriso abobado, no entrelaçar dos dedos e na essência de todo aquele afeto causou um turbulento despertar em mim e em meu amigo. A rua pareceu se desintegrar sob nossos pés junto com todas as ilusões ali criadas. Um vórtice engoliu todo o cenário fantasmagórico de libido e néon que milhares de sonhadores ébrios haviam criado ao longo de décadas. Fiquei nu do meu disfarce de pervertido, alucinado, selvagem e inconseqüente, do meu niilismo narcisista, do meu ego ferido pelo abandono. Gabriel se livrou da indumentária poética trágica, da melancolia febril e charmosa, do olhar épico de Che Guevara, do amante rejeitado e do suicida adorável. Estávamos ambos reduzidos a nossa verdadeira essência, dois moleques estúpidos, entediados que preenchem suas vidas com tormentos que não possuem, com amores que não desejam, com cicatrizes aonde nunca houveram feridas, buscando uma cura para a própria existência alienada fútil, sem nunca olhar para fora de si mesmos e enxergar o que realmente se passa no mundo. Quando o casal dobrou a esquina e desapareceu, nossos olhares se encontraram surpresos, vivos, quase infantis. Sem dizer nenhuma palavra, caminhamos em direção da Paulista. Sobre nós o Sol despertava.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Beladona

Me dê seu beijo e seu segredo
Cauterize minha ferida
Me dê seu beijo e seu veneno
Tome posse da minha vida
Deságüe em minha língua sua doce toxina
Invada meus lábios com uma morte mais suave

Os seus lábios me alimentam
Em minhas veias serpenteiam
Amor, você me fez completo

Ainda espero seu presente
Sua carne profana e fatal
Que seu ódio me esquente
Ao seu toque, dádiva final
Preencha minhas veias com um amor que me incendeia
Puna minhas mentiras com uma última caricia

Em nosso beijo a promessa
O desejo dilacera
Amor, você me fez completo

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Desejo

Penetra em meu quarto um invasor invisível e se posta ao meu lado. Admira meu sono nu de noite quente, agitado e ansioso. Me conforta com seus lábios quentes que percorrem meu corpo, cada centímetro exposto, por toda minha carne, numa caricia terna como um sussurro. Indefeso e impassível, estremeço no prazer inesperado do amante sem nome e sem corpo que me envolve, me desnorteia e me desperta. A porta está aberta e eu estou só. O Desejo febril partiu tão silencioso quanto entrou.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Estranho

Há um estranho caminhando no acostamento. Imperceptível figura esguia, silenciosa e errante, como um ectoplasma cinzento envolvido na poeira e na fumaça da rodovia, trafegando livremente de nossa percepção e de nossos vãos julgamentos. Admirando as mazelas da cidade com suas órbitas negras e vazias, perdido em seu próprio labirinto traçado por ruas envenenadas pelo lixo e pela miséria, saboreando aromas familiares e há tanto tempo negados, comida estragada de vendedores ambulantes, poluição tóxica dos escapamentos, urina, suor, dejetos acumulados e decompostos nas sarjetas, maconha barata, cigarros sem filtro, a lama das enchentes e o ar inebriante dos bares de esquina. Nada escapa ao seu olhar impiedoso, nenhum indigente ébrio, nenhum migrante nordestino, rejeitado pela própria terra e devassado por essa outra, nenhum travesti com suas navalhas, nenhum policial especializado em conduzir humanos como gado, nenhum engravatado, engalfinhado com seus contratos, seu pó e suas putas, e nem mesmo os anônimos que se escondem por de trás de sua máscara de mediocridade e de sonhos baratos de casa, carro, emprego e família. No sagrado silêncio da periferia, ele assisti as armas explodirem nas mãos de quem atira, e o sangue quente e juvenil alimentar as entranhas dos mercadores da pólvora. Em seu quarto no motel, medita sobre sua motivação, seu passado fragmentado, sua existência inconfidente. Entre aquelas paredes nada importa, o mofo no teto, as manchas escuras de esperma velho no assoalho, os lençóis inundados por uma chuva de fluidos, os filmes pornográficos, a estática do radio quebrado. As respostas se vêem através da janela, naquele organismo disforme, gigante e acéfalo que se expande de favela em favela, engordado com sacrifícios humanos que alimentam seu câncer, exibindo os corpos em valas comuns e em fotos preto-e-branco, como troféus de sua própria infâmia. Na beira da calçada um estranho caminha, lança-nos um ultimo olhar inválido e sorri diante de nossa essência. E segue sozinho em sua interminável estrada.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Amor na Cabeça

Um beijo para a gloria, um desejo em meu peito
As ruas contam a história em um compasso imperfeito
Nada do que você diga irá apagar o meu anseio
Curar essas feridas é o que eu preciso no momento

Bata com força para me acordar
Beije meus olhos e me faça sonhar
Eu grito seu nome pela avenida
Seu sabor em meus lábios resiste ainda

Não busque o controle, não tente entender
Resista insone, não confie em ninguém

Desespero simulado, lágrimas incompreendidas
Nunca estive ao seu lado e nem dei o que você queria
Como posso ser um homem desperdiçando os meus dias?
As vozes que me respondem jamais entenderiam

Busque um motivo para me deixar
Encontre o ritmo e comece a dançar
Na escuridão do quarto você sabe o que sente
Fique ao meu lado e me arraste para frente

Não busque o controle, não tente entender
Resista insone, não confie em ninguém

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Os Lobos da Escória

O que nós fazíamos ali afinal? O que realmente nos motiva a agir assim noite após noite, nessa incansável celebração hedonista de nossa juventude sem propósito?
Era nisso em que eu pensava enquanto assistia Enrico dançar ao som de Iggy Pop com uma garrafa de vodka na mão, sobre a lajem da minha casa. Era uma performance perturbadora, principalmente se considerarmos o seu nível de intoxicação e o perigo iminente de uma queda fatal. Mas eu não estava muito mais sóbrio e ria feito um retardado a maior parte do tempo. Era uma terça feira de madrugada e esse era nosso ritual noturno há algumas semanas, subir no telhado com um monte de bebidas, duas cadeiras de praia e um rádio. Isso depois de nossa ronda habitual por botecos, becos, puteiros e qualquer lugar inconveniente que nós podíamos encontrar naquela porra de cidade medíocre em que vivíamos.

Conheci Enrico num bar, mas não pergunte como. Tudo que eu me lembro é de ter acabado com ele em uma mesa discutindo sobre niilismo clássico, William Burroughs, os diferentes modos de afinar uma guitarra e The Doors. Deus, Enrico odeia Jim Morrison e isso foi um grande choque pra mim. No final da noite, nós apostamos uma corrida por uma avenida e Enrico escalou a estrutura de um outdoor. Eu gritei que ele ia se machucar, e no auge da loucura ele respondeu num urro selvagem “Eu não sou humano, sou uma lagartixa!”. Não entendi por que porra ele falou aquilo, mas me mijei de rir. Enrico nega até a morte que tenha dito algo assim.

Então era isso, nós queríamos ser sujos, arrogantes, destrutivos e toda essa bobagem de sempre. Forçávamos limites, competíamos no álcool, vagabundeávamos sem pudor. Tentávamos desesperadamente chamar a atenção de sei lá quem. Bem, talvez eu soubesse quem Enrico queria impressionar.

Toda as sextas nós íamos a um bar perto da universidade. Tinha uma garota que Enrico conhecia desde o ginásio que sempre aparecia lá e conversava com a gente. Era uma verdadeira esnobe, completamente alienada e superficial. Saquei isso na hora e nunca liguei muito pra ela. Mas Enrico a confrontava o tempo todo, se enervava com as suas provocações e a humilhava sem que ela notasse. Nós voltávamos para casa e ele não parava de falar como ele não a suportava. Deus, como ele a amava.

Ele estava cantando “Dum Dum Boys”, imitando os movimentos de Iggy, forçando os lábios num bico e dando murros no próprio peito. Então “Tiny Girls” começou a tocar e ele se aquietou. Sentou se de costas para a beira da lajem e começou a cantar baixinho. Tinha os olhos alucinadamente distantes e aquele olhar me fez compreender algumas coisas. Eu era um filhinho de mamãe entediado que decidiu agir como um poeta maldito auto-destrutivo, só para ter algum tipo de diversão juvenil e algumas histórias para contar no futuro. Mas no fim do dia eu tinha minha cama, minha janta quente e meus pais pagando meus estudos. Enrico não tinha escolha, aquilo era ele, até o fundo de sua essência. Todo aquele narcisismo fingido era sua defesa contra o mundo, contra o abandono e contra si mesmo. Ele nunca admitiria estar apaixonado por aquela menina, era difícil demais para alguém como ele. Ele não podia confiar em ninguém ou se deixar envolver, ele só podia contar consigo mesmo, não importava o que ele sentia. Mas não podia esconder aquele olhar de mim e eu nunca pensei que alguém tão desprezado pudesse ter tanto amor dentro de si.

A música terminou, assim como a transe de Enrico. Ele olhou para mim e por um segundo pareceu se sentir acuado, mas logo abriu um sorriso e retomou o controle.
“Por que esse olhar de James Dean, Gabriel? Não me venha com essa pose de iluminado pra cima de mim, você é um merda igual a mim e todos os outros dessa porra de mundo”.
Sentou se ao meu lado e me passou a garrafa. O rádio tocava “Mass Production” que me pareceu bem mais depressiva do que o normal. Mas segundo Enrico, eu acho quase tudo deprimente. Deve ser isso

terça-feira, 21 de agosto de 2007

As Pontes do Éden

Pertence à noite o semblante de um rosto vazio
Em meio às sombras repousa o amante ferido
O calor escapa e as marcas voltam a se abrir
Esperança traída na agonia de sofrer sem agir.

Seu olhar se torna insuportável para mim
O vazio em meus lábios continua a ferir
Dias de tédio, incontáveis desatinos
Caminhos incertos que a afastam de mim

Se você soubesse como a madrugada é curta
Não me deixaria esperando por horas
Se você soubesse como a madrugada é curta
Não adormeceria quando a noite conforta

Ela é a imagem que me segue em meus delírios
Ela é a verdade que me rege e guia os meus sentidos
Ela é a canção que sussurra em meus ouvidos
Ela é a solidão que tortura e tece os meus gemidos

Se você soubesse como a madrugada é curta
Não me deixaria esperando por horas
Se você soubesse como a madrugada é curta
Não adormeceria quando a noite conforta

Como você pergunta se o que eu sinto é verdadeiro?
Para aliviar a culpa devo sangrar pelos seus anseios?
Eu castigo o meu corpo na insônia e na fadiga
Deliro como um insano neste amor de fantasia

domingo, 19 de agosto de 2007

Energia Negativa

A porta bate com violência. “Que clichê me tornei!” pensou Gabriel, estupidamente deprimido por natureza. Atirou-se sobre a cama e buscou reunir todos os pensamentos negativos que vinha colecionando ao longo da vida e decidir qual deles estava o matando.
Ele tinha dezesseis anos quando se apaixonou pela primeira vez e ainda não tinha dezessete quando pulou daquela janela do segundo andar. Clavícula quebrada e horror na face de seus pais. “Tudo bem agora, foi uma estupidez...”.
Andava pelas ruas escuras e pelos becos onde as pessoas atiravam seu lixo. Roubava discos de vinis do seu avô, surdo há anos, e os vendia para um sebo no centro. Brincava com as crianças mais novas da vizinhança, cheirava cola em construções vazias e ia de bicicleta até a boca comprar bagulhos para os garotos barra pesada do seu bairro, em troca de algum dinheiro. Sentia desde pequeno que havia algo errado com ele, algo quebrado e doentio em seu interior. Talvez fosse um gene defeituoso, ou um desequilíbrio hormonal. A psicóloga tinha dito que ele era normal. “Mas por que estou sempre tão longe?” ele pensou decepcionado.
As luzes da pista o incomodavam. Aquela confusão de músicas, pessoas e bebidas o desnortearam e ele tentou fugir dali. No canto, uma garota chorava sozinha. Ele quis dizer alguma coisa, mas ninguém nunca havia lhe dito nada. Por que iria se importar agora?
Impressionava-se com a própria fragilidade. Se fazia de vitima o tempo todo, se afastava do grupo e se sentava sozinho, com medo de virar um estorvo. Seus amigos não percebiam, achavam que ele só estava bêbado demais para conversar.
Em uma noite quente, Gabriel se sentou na beira do telhado e se fez uma promessa. Encarou o horizonte e achou a vida grande demais para ele. Desceu as escadas pensando em viajar para um lugar que ninguém o conhecesse e viver como outra pessoa, abandonar a si mesmo para trás. Não hoje, mas um dia, em breve. Bateu a porta do quarto e teve vontade de chorar. Ele era um garoto inofensivo e todos gostavam dele por isso. Então ele se deu conta de que ao viver sem nunca ter machucado ninguém, ele não tinha feito diferença alguma. Adormeceu sem paz e por um instante pareceu apenas um menino.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Assim Começa o Inverno...

Há dias que desperto invisível
Flutuando, vejo a vida fugir
Meu corpo inteiro está insensível
O gosto do veneno faz a vista fulgir

A névoa se torna vidro
E revela entre suspiros
Os seus lábios me tocam no frio
Em meio ao caos a tensão nos uniu

E o dia torna-se negro
Ao meu redor vozes se erguem
À distância eu te contemplo
E assim começa o inverno

Percebendo a deserção do espírito
Busco no vazio algo para me apoiar
Recebendo a benção do destino
Afundo sozinho e nada pode evitar

Seu perfume adormece a dor
Me conduz, consumindo meu corpo
Sua voz sussurra perdida
Sinto o toque de suas mãos frias

E o dia torna-se negro
Ao meu redor vozes se erguem
À distância eu te contemplo
E assim começa o inverno

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Falsa Catarse

Afogando-me no meu plasma matinal, acordo um pouco atordoado pela ressaca. Ontem foi sábado, ou talvez sexta, ou talvez nunca tenha sido. Meu corpo parece um pedaço morto de carne, desconectado da minha cabeça e fora do alcance de qualquer impulso cerebral que o faça se mover de forma voluntária. Demoro a perceber a asquerosidade do meu quarto, o chão inundado em uma mistura de fluidos e alimentos não digeridos e o cheiro acre que me impele a me arrastar para o quintal.

Sentado no jardim, costas apoiadas no muro, cego pelo sol e abatido pelo mal estar, começo a sentir um vazio enorme dentro de mim. Enumero os motivos para me sentir assim. Talvez seja repulsa de me encontrar em tal estado, talvez seja agonia de me ver abandonado naquele pátio imundo ou talvez seja a constatação de que eu tenha perdido qualquer interesse em viver e que minha existência não era mais do que emoções enganosas e instantes vazios. Tudo se resumia a delírio e degradação, euforia e desalento, orgasmo e desprezo. Não haviam refúgios, momentos de calmaria ou um abraço morno de um amigo. Eu ia do céu ao fundo do abismo em segundos e repetia tudo alucinadamente. Eu era o artista que após ser ovacionado por milhares de pessoas se via sozinho no baixar das cortinas. Foi então que notei meu cachorro destroçar um pedaço de carne e conclui que aquela fraqueza era causada apenas pela fome.

Após comer um cacho de bananas e beber uma caixa de leite, me senti um pouco melhor. Comecei a deprimente tarefa de limpar a sujeira que havia feito em meu quarto. Notei com repugnância que havia deixado um rastro daquele asco no momento em que rastejei pelo cômodo. Eu finalmente havia me tornado um verme, após tantas seções auto-destrutivas. A limpeza demorou mais do que eu imaginava, em parte por ter subestimado a densidade daquela imundice toda e também por eu passar a maior parte do tempo cheirando os produtos de limpeza. E com um pedaço de pano encharcado com químicas desconhecidas cobrindo meu rosto, vi como uma aparição aquela olhar final de rejeição, aquele que havia me condenado a esta patética encarnação de narcisismo e autocomiseração a qual jamais consegui me libertar. E com os olhos ardendo em transe, voltei a desfalecer, e não posso afirmar com certeza se voltei a despertar.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Carnal

Porta trancada por dentro, o ritual irá começar
Palavras não descrevem o momento, os olhos começam a girar
Agulhas atravessam a carne, a revivendo em sangue
Um sorriso de dor cobre sua face, satisfeito mas nunca o bastante

Algo no escuro silencia meus lábios

Deitado com as mão atadas, desperta um prazer esquecido
Resistindo até onde suporta, revela segredos sombrios
Pressão que vem e o sufoca, o calor o leva ao delírio
Mas o alivio que o flagelo provoca não consegue preencher seu vazio

Algo no escuro silencia meus lábios

Ainda sinto devorar o espírito
Tentando esquecer, buscando o prazer
Mas a dor não repele e o pavor se repete
Lágrimas secas não acalmam a tristeza

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Narcolepsia

Nunca desperto afinal. Nem quando meus olhos se abrem no meio da tarde e me descubro estirado sobre o sofá da minha sala, encharcado de suor. Nem quando escapo da escuridão e as luzes da pista ferem minha íris, e me encontro abandonado na mesa do bar, possuído por uma confusão de sons, vultos e identidades. E muito menos quando acordo no meio da noite após horas de trevas sem sonhos, lacerado por dores de cabeça e abatido por uma fraqueza que não consigo explicar. Eu sempre estou nesse limbo letárgico, caminhando com olhos semi-cerrados, sem conseguir distinguir a realidade dos meus devaneios.
Há algumas noites, abri meus olhos no escuro e senti algo quente entre meus braços. Era meu amor. Acariciei seus cabelos, me perguntando como ela havia aparecido ali. A beijei, senti seu perfume e fechei os olhos novamente. Estava extremamente feliz quando voltei a adormecer. Algumas horas depois, despertei sozinho, no chão frio do meu banheiro, com um corte em minha testa. Me sentei e me senti vazio, totalmente descrente de qualquer coisa. Em minha vida transcorrida entre comas e delírios, as melhores coisas se perderam, me reduzindo a uma folha em branco, sem passado, sem paixão. E o momento mais perfeito da minha vida não passou de uma alucinação, cruel e dolorida.
Nunca desperto afinal, nem mesmo quando meus sonhos já se perderam.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Esperando o Amanhecer

Adormecendo sempre entre as muralhas que me cercam
Sinto a tênue navalha da solidão me retorcer
Abandono os meus instintos e silencio minha espera
No sepulcro desolado onde escolhi morrer

Esperando o amanhecer... esperando o amanhecer?

Vagando em abstinência, descartando os meu amigos
Encontro novas formas de torturar meu corpo
Afogado na incerteza de condenar o meu destino
Admiro em minha pele o desvanecer dos sonhos

Esperando o amanhecer... esperando o amanhecer?

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Geração Crepúsculo

Eu estava sentado na calçada, encostado em uma árvore, esperando pelo ônibus e tentando subverter os ciclos oníricos da minha mente. Estava realmente interessado em destruir meu próprio ego e substituí-lo pelos mais simples instintos. O ego não passa de dogmas, estigmas sociais, preconceitos, pudores, fantasias sexuais reprimidas, desejos frustrados e toneladas de narcisismo. E tudo isso me parecia muito fútil naquela manhã em particular.
Na noite anterior eu havia conhecido um sujeito num bar. Bebemos uma garrafa de vodca e conversamos por toda a madrugada. Ele era um fascista enrustido, escondido por trás de sua barba mal feita, da cabeça de Che estampada em sua camisa, de suas tatuagens e de todas as referencias que ele fez a cultura popular do século XX. Apesar de abusar dos clichês, ele era interessante.
Ele me falou que nós éramos a geração abençoada. Nós estávamos pagando por milênios de abusos da humanidade e havíamos nascidos na alvorada do apocalipse.
Nós temos a AIDS, cataclismas ecológicos, guerras intermináveis, violência urbana e miséria global. Quando nós nascemos, perto da queda do muro, tudo já estava feito. A bomba já havia explodido, a floresta já queimava, as corporações já dominavam o mundo e a esperança já estava morta.
Ele não resistiu ao clichê de dar uma longa e desanimadora baforada em seu cigarro, olhou nos meus olhos e disse. “Nós somos o clímax da história”.
“Porra!” Eu exclamei, motivado pelos meus níveis etílicos. Aquele papo era para me impressionar? Ele queria lecionar o garotinho estúpido que ele imaginou que eu fosse ou só queria me enrabar? Seja o que fosse, disse que ia ao banheiro, roubei o resto da vodca e escorreguei para fora daquela espelunca.
Estava me concentrando em esquecer uma garota quando a vi mais uma vez. Ela apareceu na janela do metrô, zunindo por mim, sem me ver. É um daqueles momentos tão improváveis que você finge que não aconteceu para depois não ter que ficar se explicando. Entrei em um vagão qualquer e voltei ao trabalhoso processo de me desfazer de qualquer desejo, esperança e afeto relacionados aquela moça. Era como remover um tumor cerebral com uma colher, você faz uma sujeira dos infernos e simplesmente não funciona. Eu ficava me dizendo coisas como, “Ela é apenas uma fantasia de redenção encarnada em uma atraente fêmea humana de 18 anos, loira e de mini-saia.” ou “Paixões e impulsos sexuais sãos apenas uma série de reações químicas e hormonais desencadeadas por nosso sistema nervoso. Na verdade, toda nossa vida não passa disso. Tudo que você já sonhou, pensou, fez e comeu, foi apenas motivado por urgências fisiológicas.”
Eu fiquei pensando nessas bostas por todo o caminho, mas não adiantava. Ao sentar naquela árvore, cheguei à conclusão de que se eu realmente fosse assistir ao apocalipse, que fosse com ela ao meu lado. E ao tomar conhecimento que fui capaz de conceber tamanha pieguice, pensei seriamente em me jogar debaixo do ônibus que se aproximava.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Cidade das Crianças

Gostaria que você estivesse aqui. Para ver o que eu me tornei e o que eu ando fazendo. Você deve saber que eu não sou mais o garotinho que invadia seu quarto nas manhãs de domingo, arrancava seu jornal e gargalhava sem nenhum motivo especifico. Eu cresci e agora já tenho idade e tamanho suficiente para fingir que sou adulto, embora eu tenha quase certeza que não tenho a capacidade de me tornar um algum dia. Assim como você não teve. Acredito que essa seja nossa virtude em comum, pelo menos assim eu desejo.
Acho que você gostaria de me ver, ingressando na sua profissão, lendo seus livros e vendo os filmes que você gostava. Acho que nós iríamos sair para beber e teríamos conversas absurdas e engraçadas. Seria divertido.
Seria legal também você ouvir minhas canções, ler meus textos e escutar sobre meus amores de fim-de-semana. Brincar com meus gatos, peregrinar pelos parques e ajudar o meu pai a me ensinar a dirigir. Seria legal que você estivesse aqui para tudo e todos pensam exatamente isso há inimagináveis nove anos.
Eu sei que você nunca vai ler isso, nunca vai voltar e nunca vai saber da imensa saudade que eu sinto. Você nunca vai sentir mais nada. Mas eu penso que ás vezes nós temos de cometer pequenas loucuras, tal como escrever essa carta, para não ficarmos completamente insanos. A ultima coisa que queria dizer é que venho me esforçado bastante para ser alguém parecido como você, coisa que toda pessoa minimamente decente também deveria fazer.
Abraços e boa sorte no infinito

terça-feira, 5 de junho de 2007

Em Solo Estrangeiro

O ar lhe causa náuseas
Sufocado pelo próprio odor
Desconhecendo as causas
Não questiona a própria dor
Algo emerge e o afeta
A neblina vem ao seu encontro
O olhar se perde, a expressão se altera
Já esquecida a razão do esforço

Toda noite ela repousa em meus sonhos

Escorre o sangue do meu corpo sobre as pedras
A maré leva o que restou nas veias
Quebrando a transe, arruinando a espera
O seu rosto se desfaz feito areia

Um corpo tênue atravessa ruas sem cor
Uma flâmula manchada ele assiste ascender
A noite quente é só mais desconforto
Um tremula raiva ele sente crescer
Em seus sonhos sempre a mesma praia
O som do mar o faz esquecer
Perdem se os contornos, a lembrança é vaga
Ao despertar sente o coração aquecer

Toda noite ela repousa em meus sonhos

sábado, 26 de maio de 2007

O Ballet dos Malditos

Música de cabaré tocando alto, como se a única coisa que importasse fosse escutar o que aquele homem desesperado tinha a dizer sobre seu amor perdido. Vinho doce e barato escorrendo de seus lábios, manchando os punhos da camisa e reduzindo o mundo a uma dança espectral e vertiginosa.
Sim, ele dançava, como numa convulsão, um gesto involuntário de alegria e abandono. Abraçava a si mesmo com delicada ternura, e seus olhos se mantinham fechados, como se visualizasse a beleza de seu próprio desespero e pudesse apreciar o lirismo daquela cena patética.
E ao final da música abre os olhos e presenteia o universo com seu sorriso deliciosamente insano. Torturando os hipócritas que riam e tentavam negar o próprio absurdo de suas essências, aquele acrobata ébrio era a única verdade naquele salão. E com um perfeito domínio de cena e conhecedor do senso de fascinação que despertava em todos, fez uma final reverência, se ergueu olhando para o infinito e desabou descordado no chão. Sob as luzes vermelhas da pista, o bailarino havia encerrado seu espetáculo. E o silêncio que se sucedeu à sua queda foi inesquecível.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Espasmos...

Pupilas dilatadas, carne trêmula, lábios rubros e suor quente. Eu estou no abismo.

Silêncio ensurdecedor, feridas ardentes, o ar é seco e as paredes sangram. Um indefinível gosto toma posse da minha língua, um sonho sem cores se projeta no teto e o chão frio faz minhas costas adormecerem. Sinto medo de sentir prazer.

Coração pulsante golpeia meus ouvidos, recuperando fôlego em um esforço continuo. O contato entre nossas peles origina um arrepio gélido e impiedoso. No escuro vejo o seu sorriso.

Mãos que se contorcem e não encontram saída. Murmúrios que são ordens que não fazem nenhum sentindo. Desejos entram em colapso em uma sucessão de aneurismas. Um rápido espasmo dilacera meu ímpeto ante o final gemido. A névoa me cega e me faz ver.

Eterno despertar, despertar dolorido. Meu corpo é uma emenda de cicatrizes e delírios. Vazio, vazio e vazio que eu preencho com dor e deleite nesse incesto diário. Intenso rubor se alastra por meu rosto, imperiosa flor me domina com seu incenso e uma fúria cega me aquece nessas madrugadas de tormenta. Faminto e desnudo ainda espero por seu beijo.

domingo, 20 de maio de 2007

O Garoto Que Não Podia Esquecer

Olhando através de seus olhos eu continuo mentindo. Estuprando a minha memória, eu me flagelo esperando uma recompensa. A sua atenção talvez. Um sorriso que seja.
Sentando sobre essa pilha de vaidade, cada pose e cada gesto parecem ser coreografados, repetidos, roubados de alguém muito mais interessante do que eu. E cada vez que você me ignora eu sinto meu mundo esmorecer.
Eu insisto nesse esforço fútil de ganhar seu afeto e interpreto inúmeros papéis, buscando o meu próprio nome. Mas diante do seu deboche, do seu sorriso cínico, eu sou abençoado apenas com desprezo. Talvez não seja sua intenção, mas sinto que cuspiram em meu rosto.
E cada demonstração de rejeição, cada palavra de escárnio, todos os seus olhares gélidos, tudo fica gravado em minha memória como uma cicatriz. Eu me esqueço facilmente dos momentos de euforia, mas o desalento não se desvanece tão fácil. Eu fico a noite toda acordado, revendo as mesmas cenas, me torturando com meu próprio fracasso.
Você me encheu com um sentimento de auto piedade tão nojento que sinto repulsa de mim mesmo. Me reduziu a um clichê tão patético que o simples fato de eu existir se tornou duvidoso. Depois de você tudo que restou foram noites em claro, escrevendo cartas estúpidas que ninguém jamais vai ler, e esse sentimento de desapego, que cultivo com entusiasmado narcisismo.
Olhando através de seus olhos eu não vejo nada. Seus olhos nunca olharam para mim. Seu sorriso nunca se abriu por mim. Sua respiração nunca prendeu por mim. O seu blefe foi tão perfeito que aceitei seu desprezo como uma dádiva.
E no meio dos meus sonhos eu ouço o seu chamado, eu desisto desse outono cheio de lágrimas. Nada do que você for pode ser tão intenso quanto o vazio que eu sinto em não te ter. Nenhum beijo seu pode ser doce suficiente para fazer o amargo da lembrança desaparecer. Que desperdício foi sangrar por alguém como você.
Eu perdoou seus insultos, sua graça, eu ignoro seu desdém. Eu absolvo minha falha em adorar você. A sua imagem está gasta, desbotada, perdida em minha mente. Eu nem ligo se você acha que eu fui a coisa mais irrelevante que cruzou a sua rota. Mas a mentira que você me devolveu e me ofereceu tão cruelmente, isso eu nunca vou esquecer.

domingo, 13 de maio de 2007

Noite Após Noite

Na escuridão dos dias, quando nada tem sentindo
Quando a loucura ímpia me aquece com seus espinhos
Eu me sinto deslocado com meus pecados impunes
A imagino ao meu lado e sinto falta do seu perfume
Na perfeição do seu sorriso, na doçura de seus lábios
Eu desperto por um motivo e desfaleço anestesiado
Eu me corto toda noite só pra me ver sangrar
Eu me corto toda noite e ninguém parece se importar

Na dor do silencio eu posso ver
Destilando o veneno, esmorecendo com prazer
Refém dos caprichos e das lagrimas intimas
Adormeço sobre os lírios e desperto sem vida

Desistindo dos meus sonhos eu aceito este pacto cruel
Açoitando o meu corpo, vendo por tão pouco o meu céu
Suicídios sucessivos, a cada noite ela é mais bela
Se aproximando em um vacilo, eu mutilo suas pétalas
Noite após noite eu a encontro no silêncio escuro
Ridicularizando meu esforço com seu sibilo tão confuso
Outonos se desperdiçam em elegias tão banais
Palavras não te diriam como meu ímpeto se desfaz

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Torniquete

Estou pronto pra sentir
Seus contornos vão fluir
Me derrube, me beije aqui
Seu perfume me fez agir

Seus desejos me fascinam
Veja os desenhos que o sangue cria
No escuro um demônio brinca
Me sinto sujo, seu corpo brilha

Venha vagar ao meu lado
Venha e adormeça comigo
Sinta a dor em meus lábios
Me veja beijar o vazio

Sem enganos, sem mentiras
Eu te amo, você respira
Sem parar, sem fingir
Deixe sangrar sem ferir

Tira de couro, um torniquete
Faça um sonho ruir a mente
Cruze os dedos, gire os punhos
Seu segredo está seguro

domingo, 22 de abril de 2007

O Incrível Homem Que Foi Esquecido

Desperto pelo barulho de marteladas na parede de meu quarto, senti um indescritível gosto amargo em minha boca, que encarei como um mau presságio naquela manhã de sexta feira. Ao abrir a porta, descobri ser meu pai o responsável por aquela merda. Ele estava arrumando o batente de minha porta, que precisava de reparos havia meses. Amaldiçoei-o com o olhar, por ele ter escolhido os meus minutos finais de sono para começar o conserto, mas ele sequer me notou. Continuou com seu barulho infernal enquanto eu descia para a cozinha.
Sobre a mesa repousava um copo de café com leite, frio como o desprezo que senti por minha mãe por ter me deixado só aquilo para comer antes da escola. Bebi com desgosto num único gole, e aquela água suja desceu gelada pela minha garganta e se juntou ao gosto amargo que ainda não havia se dissipado. Senti ódio, limpei minha boca com uma toalhinha nojenta e fui embora.
Consegui um lugar para sentar no ônibus, encostei minha cabeça na janela e fiquei pensando em algumas musicas e no que tinha para fazer na escola naquele dia. Estava sonolento e sentindo-me desconfortável. Na verdade eu queria mesmo era tomar um banho. Tinha tomado antes de dormir, mas acordei todo suado, estava me sentindo repugnante. Enquanto acariciava meus lábios rachados, uma garota da minha classe entrou no ônibus. Fiquei esperando ela me cumprimentar, mas ela passou direto por mim e foi para o fundo do corredor. Fiquei puto com aquela vaca na hora. Ela era uma bonitinha esnobe, eu sabia, mas nunca tinha feito aquilo antes. Como se eu desse a mínima, ela podia ficar com os beijinhos na buchecha pra ela. Foda se.
Na classe, eu me sentei na ultima carteira, bem no canto da sala, para que eu pudesse me recostar nas duas paredes conforme passasse o dia. Meus amigos não paravam de falar merda, principalmente sobre futebol e garotas, e eu não estava com espírito para aquilo. Um dos idiotas mostrou um machucado que tinha feito num acidente de moto que me virou o estomago. Era uma ferida do tamanho de uma buceta bem no meio da batata da perna. Fiquei com náuseas o resto do dia por causa daquele estúpido. Na hora do intervalo fiquei sentado na escada enquanto meus amigos conversavam de pé a minha frente. Estava totalmente deslocado e comecei a me sentir mal, uma tontura e minha vista começou a embaçar. Subindo as escadas de volta a aula, eu cai sobre um garoto que me seguro assustado. Ele perguntou se eu estava bem, mas antes que eu respondesse, ele me deixou sentado, e foi com todos os outros lá pra cima. Fiquei totalmente sozinho, com a cabeça enfiada entre as pernas. Me senti um pouco melhor fisicamente, mas estava com saco cheio demais para voltar para a sala. Resolvi ir embora. Achei que o zelador ia me encher para me liberar, ficar perguntando de que turma eu era ou algo assim, mas ele nem se deu ao trabalho. Olhou como se me atravessasse, como se eu nem estivesse passando. Achei ótimo e fui embora sem problemas. No ponto de ônibus, duas garotas começaram a falar um monte de putarias uma pra outra, rindo alto, como se eu não estivesse ali. Elas subiram em um ônibus qualquer, que não era o meu, e pela janela eu as vi rindo, olhando para minha direção. Como se eu me importasse com aquela merda toda.
Por fim meu ônibus chegou, dei sinal, mas o cretino não parou. Xinguei o filha da puta bem alto e esperei mais cinco minutos por outro. A mesma merda, passou direto por mim. Fiquei fudido demais e fui embora andando mesmo. Fui me sentindo um miserável o caminho todo, pensando que porra de manhã tinha sido aquela. A beira da avenida observava os carros passarem e senti uma irresistível atração por aquelas rodas que giravam em velocidade. Pareceu-me por um segundo que embaixo de um automóvel seria um lugar extremamente confortável para se estar, era só se jogar ali no transito e repousar. Afastei esse pensamento estúpido da minha cabeça com um susto e segui para casa. Me sentia um fantasma, um corpo sem vida, uma vida sem dono. Senti-me completamente desconectado de todo resto do mundo, marginalizado por tudo e detestei a todos por isso. Meu estomago ruía na fome e no horror daquelas chagas, e a sensação de abandono atingiu seu clímax em um suspiro que pareceu durar uma eternidade. Disse a mim mesmo enquanto entrava em minha casa, que eu era um fresco, um mentiroso narcisista que gostava de se martirizar. Provavelmente aquele espetáculo patético era só um jeito de chamar a atenção de todos. Mas ao sentar em minha cama, aquela sensação ruim não me deixava. Sem nenhuma surpresa ou admiração, assisti meus braços se tornarem cada vez mais pálidos, até desaparecerem por completo. Minhas pernas e meu tronco murcharem sob minhas roupas e se extinguirem. Em meu ultimo pensamento, antes que minha cabeça desvanecesse, finalmente compreendi aquele gosto amargo. Sobre a cama, restaram apenas meus trapos, como uma fantasmagórica evidência de minha curta existência. Até minha mãe entrar no quarto, dobrar tudo e os guardar no armário, sem aparentar nenhuma comoção. Lá fora faz um belo dia, ela pensou ao sair.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Os Imortais

Na escuridão do seu olhar eu vi meu desespero
Um sonho despedaçar e o amor virar desprezo
As suas mãos me tocam, mas nunca me alcançam
Um coração se cala e uma voz me chama
Eu estou aqui por você, mas não vejo um motivo
Não há nada a se temer, não há nada a ser esquecido

Espere pela tormenta e beije alguém que te odeia
Deseje uma musica lenta e dance a noite inteira
Não há mais damas na pista de contra mão
Não há mais nada à vista além de tensão
Eu não tenho armas e não me importo em perder
A luz estará salva ao amanhecer

Nós somos os reféns de um assassino perfeito
Carregados de desdém cuspimos em seu peito
Mas ninguém nos espera na outra margem
Carregamos as seqüelas e caímos em combate
Nossas almas se consomem demandando por sangue
Todas as falhas eclodem e sinos tocam distantes

Meu triste amor o que foi que a atingiu?
Seu sangue sem cor, sua lucidez senil
O que nós perdemos na mudança da lua
Celebrando o lamento inebriado das ruas?
Quando foi que a esperança se tornou uma lembrança
De um dia sem trevas e de uma noite de insônia?

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Enrico, A Lagartixa Niilista – Desperdício de Vinho

Subindo a rua com uma garrafa de vinho vagabundo nas mãos, Enrico se encontra peculiarmente embriagado. Ele limpa os lábios úmidos e engole sem prazer a bebida amarga. Sorri sozinho e se deleita com a sensação de levitar sobre a calçada, acima de toda imundice da cidade. Em frente à igreja evangélica ele encontra um velho amigo, Ciro, um sujeito pequeno e estranho, com os dedos escuros e pupilas dilatadas, típico de um fumador de erva, sempre carregando um caderno velho e sem capa, onde anota seus poemas herméticos sobre tudo que ele pensa a respeito da vida. Enrico o acha bem engraçado e insignificante. Ele sorri e presenteia Enrico com seu hálito de cachaça. Recusa um gole de vinho e convida o amigo para ir ao bordel. Enrico gargalha e se diz sem dinheiro. Ciro diz que só quer se divertir um pouco por lá, sem fazer nenhum uso muito profundo das profissionais lá estabelecidas. Enrico gargalha mais uma vez e os dois seguem em uma marcha ébria para o puteiro. Enrico tenta organizar seus pensamentos, mas eles são rápidos demais e fogem por todos os cantos de sua mente, como fogos de artifícios que por engano foram detonados dentro de um recinto. É realmente uma pena, pensa Enrico, pois esse era um bom momento para um pouco de cinismo. Fica para mais tarde. Na casa de tolerância, eles se sentam em uma mesa escura e observam as garotas passarem. Uma morena de vestido negro senta no colo de Ciro e começa a sussurrar qualquer vulgaridade, que em sua mente limitada de prostituta de cabaré de 10 paus, acredita ser algo realmente erótico e excitante. Enrico engole a sua horrenda cerveja choca de latinha e sente um enorme desdém por Ciro, por sua expressão transformada frente ao assédio da garota e pela excitação incontida em seu sorriso. Sem nenhuma surpresa assiste aos dois subirem para o quarto, onde Ciro quebrará sua tola promessa de bêbado. Uma dor de cabeça decorrente do vinho barato começa a romper sobre a pobre lagartixa e isso aumenta ainda mais seu desprezo por todo aquele ambiente. Ele assiste um homem patético gastar centenas em questão de minutos, pagando tequilas para uma prostituta velha e feia. Duas garotas disputarem um mesmo cliente aos tapas e serem separadas pelos seguranças. Três adolescentes, com certeza virgens, observando de longe a performance de uma striper, encostados no balcão, rindo por trás de suas cervejas e de suas frágeis inocências, tímidos demais para se aproximarem. A cada uma dessas visões, a cada face sórdida daquele buraco sujo, a cada sofrível gole de cerveja, a sua repugnância aumentava. Nenhuma garota tinha coragem de se aproximar dele, pareciam notar um grau acentuado de agressividade naquela estranha criatura esquelética, sentado num canto sombrio e olhando fixamente para qualquer lugar que não era ali. O mau humor de Enrico o fazia fuzilar com pensamentos toda criatura infeliz, odiosa e estúpida que se refugiava naquele inferninho, em busca de companhia, emoção, prazer e todas as outras necessidades básicas humanas a eles negadas. E sua repugnância atingiu o auge ao notar ele, ali sentado em meio aquela imundice, fazendo parte daquilo tudo. Ele quis fugir dali, desintegrar naquele mesmo instante e reaparecer a milênios de distancia dali. Sem esperar por Ciro, ele deu um ultimo gole e foi embora, com a cabeça latejante e um gosto amargo na boca.

Após uma rápida passagem na farmácia e utilizar sem nenhuma prescrição ou moderação uma cartela de uma popular marca de analgésicos, engolidos com um único gole de suco de laranja, Enrico se sentiu psicologicamente mais disposto e resolveu não desistir da noite. Rumou para o bar mais próximo e pediu uma dose de caipirinha que escorregou deliciosamente por sua garganta a caminho de uma agitada madrugada em seu estomago. Com agradável surpresa notou duas belas garotas sentadas em uma mesa, tomando cerveja e rindo, parecendo totalmente deslocada naquele ambiente decadente. É claro, dava pra notar a quilômetros de distancia que elas estavam completamente chapadas. Enrico se juntou a elas, que se mostraram bem receptivas a ele. Elas eram simpáticas e de conversa fácil, riam de qualquer idiotice sem sentido que ele dissesse e bebiam num ritmo assustador. Porém, algo se abateu sobre Enrico. Foi completamente inexplicável e instantâneo. Um olhar trocado entre as duas, uma risada em um tom forçado, talvez algo leviano que foi dito, ele nunca soube ao certo. Mas algum tipo de paranóia foi despertada dentro dele e ele sentia que estava sendo mal tratado por aquelas meninas. Era uma certeza absoluta de que elas riam dele e o humilhavam, estavam ali apenas para brincar com a sua cara, se aproveitarem dele como se ele fosse algum coitado ou um idiota. Conforme essa certeza crescia, um enorme desconforto invadiu seu corpo e uma fúria contra aqueles rostos belos e ébrios se fez avassaladora. Com uma expressão assustadoramente vazia, Enrico se levantou e deixou o bar, sem dizer uma palavra de despedida. Enquanto andava pelas ruas, sem saber para onde ir, aquela raiva angustiante ainda borbulhava dentro dele e ele desejava encontrar uma forma urgente de externá-la. Ele queria socar algo que não sabia o que era, algo inalcançável e impenetrável que se punha em seu caminho. Ele queria bater nessa barreira invisível até seus punhos sangrarem, seus pulsos quebrarem e seu espírito estivesse em paz. Toda aquela noite parecia simbolizar cada um de seus fracassos e cada falha em seu caráter estava exposta de maneira irreversível, estava tatuado em sua alma. A madrugada estava perdida e nada poderia ser feito agora, a não ser ansiar por uma nova chance, uma noite onde ele pudesse beber, se divertir e voltar para casa com boas historias engraçadas para se lembrar, ao invés de uma seqüência patética de eventos que com muito esforço serão esquecidos. Em frente a sua casa, Enrico observa uma estranha movimentação em um bueiro. Aproxima-se e sorri frente à cena selvagem e dramática que ali se desenrola. Uma grande quantidade de formigas ataca uma indefesa barata e a come viva. Por um instante aquilo pareceu extremamente agradável para Enrico e ali entre aqueles animais rastejantes e imundos ele se sentiu confortável. Pela primeira vez na noite, estava em paz.

sábado, 7 de abril de 2007

O Vale

Eu sigo embriagado na fantasia
As ruas encurtam e o vento me guia
Como um cego, atravesso o vale
Ignoro os rostos que desejo tocar
Passos incertos revelam detalhes
Provo o gosto e sinto meu corpo falhar

Eu a coloquei em meu sangue e esperei sentir o seu bem
Seus toques agora distantes, eu ainda me sinto refém

Encontro o meu conforto na brisa do sonhar
Nenhum de nossos encontros precisa do luar
Sozinho, encaro o brilho dourado
O deserto se estende e eu continuo a vagar
Perdido entre escombros do passado
Nego o presente recusando a acordar

Quando eu caminhar com a cabeça erguida
Sem esconder o olhar e minhas feridas
Enquanto a névoa envolve o meu futuro
Fujo pela noite e não acredito em saídas
Enquanto eu me rendo á delírios diurnos
Deleito-me em desejos e anestesio a vida

Ela aquece a madrugada
Espero a chuva que vai chegar
Vivo as horas que estão guardadas
Vivo a gloria daquele olhar

Ela viaja através de mim

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Sonho de Éter

Lentas dilacerações formigando na pele. Uma leve levitação sobre as barreiras que me reprimem. Eu sou alguém que nunca existiu, um personagem que se esconde nas profundezas das minhas entranhas. O espelho reflete um ser completamente estranho a mim. Deuses e Deusas testemunham minha ascensão, toco os céus com um beijo e desperto sozinho, longe de qualquer compreensão, ouvindo apenas os ecos de alguns risos. Há um anjo caído sobre a cama e ele está marcado sob o signo da miséria. Em silêncio ele me diz palavras verdadeiras demais para se acreditar. Os seus lábios sangrentos e seu olhar vazio jamais se movem, apenas confessam. Eu estou aqui, mas jamais estive, sou apenas um delírio alheio, parte de alguma fantasia perversa de um sonhador solitário. Minha carne e meu ego ficaram lá fora, hipnotizados pelas luzes do trânsito, comunicando se através de murmúrios e olhares cheios de tédio juvenil. A névoa que me cerca não quer me abandonar e por mais que eu tente, todas as minhas fugas continuam a falhar. Eu percebo você me observando enquanto me julga distraído. Noto seu interesse mover se como um pêndulo, do fascínio ao desdém em questão de momentos. Eu ofereci minha carne em seu sacrifício, expus meus temores, desfigurei meus delírios e te presenteie com inimaginável afeto. Em troca você esbofeteou meu rosto com a frieza do seu olhar, feriu-me com seu cruel desinteresse e me abandonou no mais devastador e escuro silêncio. Agora você retorna a mim, sorrindo em pesado remorso. “Remorso do que?” pergunto eu sorrindo de volta, ante a sua desnecessária comoção. Seu instinto estava certo ao me agredir tão covardemente e admirável foi o modo como você pisoteou sobre minhas pretensões. Você se libertou de uma insana fantasia, aonde por certo eu iria te fazer sangrar. Você fugiu de uma jaula de insanidade e sujeira e de forma ilesa atravessou este vale infértil onde eu tentei te abater e finalmente se refugiou fora do meu alcance. Sob a sombra de uma árvore morta eu te vejo brincar no seu belo jardim e me sinto feliz por você estar tão longe de mim. Sou apenas uma criatura pálida que vaga por ruas pavimentadas sobre o próprio medo. Mais um entre tantos sonhos esquecidos. Não tente me abraçar com promessas doces e ternas. Não tente imaginar os caminhos que percorre minha mente. Na existe amor maior que meu desprezo. Ouça o Anjo e seu sábio silêncio. Não se apaixone pela vertigem.

sábado, 24 de março de 2007

Ritos de Primavera

Suei sozinho no calor da alcova
Hesitei ferido frente ao lapso da memória
E o meu álibi é minha sina
Em meio às flores que me deslocam
Traído pelo ardor da ferida
Encontrei nas dores os meus dogmas

E apenas o luar se importa comigo
Na primavera que se arrasta sem ritos

Expirei sem força no fundo do pântano
A espera foi longa em meio aos sândalos
E meu corpo é feito de espinhos
Conduzindo uma dança cheia de cortes
O gosto do amor será esquecido
Sangrando na lança no leito de morte

E apenas o luar se importa comigo
Na primavera que se arrasta sem ritos

quinta-feira, 22 de março de 2007

O Som da Serpente

"Jorge recebeu um dom divino. Jorge eleva os mártires e é um instrumento de Deus. Quer ser um bom homem e quer ser um poeta. Jorge tem uma navalha manchada de sangue. Cada estocada um história, cada morte um verso maior do antes. Ele passa a tarde inteira engraxando seus coturnos em seu quarto de hotel. Jorge tem que morar em quartos de hotéis, por motivos práticos. Trabalha a noite como vigia de um prédio público. Dificilmente faz alguma coisa, mas gosta de ficar acordado a noite toda. A noite é mais agradável do que o dia, a cabeça pensa melhor. Desde a infância ele ouve sons que ninguém mais é capaz de escutar. Por que ele é um predador e não se deixa ser enganado. O som de um chocalho, o som de uma serpente, os ruídos se intercalam e o deixam doente. O som fica mais alto, zumbindo na cabeça. Então começam os risos, os risos que zombam de Jorge. Jorge nunca fica calmo quando ouve os risos."

Uma paranóia épica, uma paranóia de sangue, uma chuva de éter enxaguando seu rosto.

"Jorge está nas ruas e não encontra um ponto de apoio. As suas mãos estão tremulas e ele não consegue controlar o seu corpo. As vozes estão mentindo, as vozes que falam em seus sonhos. A boca está seca e ele não se lembra do que fazer adiante. Jorge está na zona, mas não se interessa por putas. Nenhuma vadia suja o acalma, elas enganam e fazem os risos aumentarem. Deus não vem por elas, só a Serpente. Jorge precisa de alguém limpo, talvez sagrado. Na saída da igreja, Jorge reconhece a pessoa certa. A segue pela cidade, sem nunca se mostrar suspeito ou estranho. Jorge se aproxima e fala de seus medos e de suas dores. O homem sorri enquanto o acaricia e diz palavras de consolo. Jorge se anima e agradece em um tom singelo. O homem se vira, decidido a voltar para casa. Sente uma dor dilacerante nas costa, cai no asfalto e está morto. Jorge limpa a lamina e com os dedos escreve seus versos. Os versos são importantes para que Ele venha. Observa o corpo do pastor, imóvel e cada vez mais pálido. As retinas dilatadas, Jorge gosta de olhar para elas, todas às vezes. Os risos se calam toda vez que ele se perde nos olhos de um mártir, pois ele vê Deus e Ele o acalma e lhe diz que ele está fazendo tudo certo. Jorge sabe como calar os risos e derrotar a Serpente. Deus lhe deu o dom do silêncio."

Uma paranóia cega, uma paranóia incessante, uma chuva de pedras açoitando seu corpo.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Arena

Enjaulado entre meus medos
Exposto ao escuro e ao calor
Tateando e perdendo o apego
E ainda me atormenta o seu amor

Escalar abismos eu tento
Esperando pela manhã
Sonhando com aquele momento
E ainda me atormenta a sua paixão

Em busca do tempo perdido
Fugindo com todo pavor
Um vento que arrasa comigo
E ainda me atormenta o seu amor

sexta-feira, 16 de março de 2007

O Homem de Palha

O grito morre na garganta, o sonho se torna um borrão. As linhas do meu rosto contam uma história longa, e eu não tenho tempo para lembrar. Quem tenta desaparecer, um dia pode se encontrar estendido num vácuo de pavor. Me comove uma lágrima que uma vez ninguém derramou. O corpo está ali e o fantasma se perdeu de novo.
Olhos se desmancham ante a visão do meu esforço. Lentamente entorpecido, encontro um caminho sem retorno. Será que alguém se lembra daqueles momentos de calor? Eu pergunto aos anjos a esmero, mas apenas a chuva me responde. Eu deveria ter escrito a verdade que se esperneia há tanto tempo. Envolto em mentiras, eu não preciso mais dormir. Refém do spleen, envaidecido por seus escombros, o homem de palha remenda mais alguns retalhos.

terça-feira, 13 de março de 2007

Despedaçado

Ela dança sob a luz do luar
Eu a sigo à beira do abismo
Os seus cabelos me fazem sangrar
E meu sangue desperta instintos

Por ruas estreitas ela faz sua viagem
E resgata lembranças perdidas
Ela sabe que vendi a verdade
E a expõe em minhas feridas

Em meio a tormenta sou em quem rasteja
Ela é a amante perfeita quando está na minha cabeça

Ela não dá ouvidos as minhas palavras
O que eu digo não faz sentido
Sou pego em meio a trapaça
E a vergonha será meu castigo

Eu faço o esforço e não tenho mais corpo
Eu quero quebrar meu espírito e lhe dar esse vazio

Ela ri enquanto me afogo
Sempre me alcança quando estou fugindo
Se aproxima e se torna meus olhos
E me oferece seus lábios macios

segunda-feira, 12 de março de 2007

Cães

O hálito quente envolve meu pescoço em sincronia com o rosnar selvagem que atinge meus tímpanos. Cheiro de carne podre, água choca e crueldade. Meu passo acelera instintivamente antes que eu possa averiguar minha posição de presa. O coração acelera e meus olhos giram na direção do atacante. Cães. Uma dúzia deles, uma matilha de assassinos latindo e me acuando entre o trânsito intenso da avenida e suas mandíbulas fétidas. Um portão entre nós, distraidamente havia me aproximado demais. O cretino do dobermann, o maior de todos, havia se erguido sobre suas patas traseiras, se esgueirado entre as grades e tentado me beijar. Refeito do susto, os observo com fúria e desprezo. Cães imundos. Estou com fome e mal humorado. Poderia rosnar de volta, mas meu senso de ridículo me impede. Gosto de cães, mas só até tentarem rasgar minha jugular. Deveria sentir pena deles, maltratados, ferozes e subnutridos, mas meu pescoço impregnado com o odor da saliva me impede. Enquanto me afasto, eles ainda latem, me insultam, exigem meu sangue. Estou faminto e exausto sob o Sol. Estou cansado desses Cães.

domingo, 11 de março de 2007

Enrico, A Lagartixa Niilista. – Manhã sem Vodka

Enrico está satisfeito. Ele acabou de compor uma música no seu esfacelado violão após passar a madrugada toda trabalhando nela. É mais uma pretensiosa peça de absurdo, com uma letra escatológica/erótica e acordes dissonantes postos cuidadosamente fora de qualquer harmonia com a linha de baixo. “Não poderia ser melhor”; ele conclui com um sorriso disforme. Enquanto punha o violão de lado, ele decidiu celebrar sua canção, mas a garrafa de vodka estava vazia. O sol já havia nascido e timidamente invadia a sala. Enrico sentiu uma urgência em sair dali e resolveu dar uma volta pelo bairro. Vestiu sua calça jeans surrada e sua camiseta branca ridiculamente amassada e deixou sua casa. O dia estava fresco e ensolarado e Enrico se surpreendeu ao notar seu tranqüilo estado de espírito. A calmaria o tinha apanhado e ele sentia que podia conviver com isso. Era cedo demais e o mercado ainda estava fechado. Os mendigos ainda estavam de pé e outras criaturas da noite ainda se abrigavam. Uma sem teto se agachou em frente ao mercado falido do centro, abaixou as calças e começou a urinar. Os outros mendigos riam e apontavam. Enrico passou por ela, altivo e impassível. Ele não podia se importar menos. Deslizando pelas ruas se sentindo invisível, ele observava os demais com algum escárnio. O sujeito parado em frente à banca, o frentista desdentado, o coroa de terno e gravata dentro da Mercedes e as universitárias sorridentes a caminho das aulas, todos eles eram uma grande piada cósmica, vermes nadando em uma sopa efervescente de tragédia e desprezo em busca de alguma grande redenção final. Um erro atômico, é isso o que a humanidade é, pensava a lagartixa em sua alcova mental. É mais fácil encontrar Deus em uma viagem de ópio do que em qualquer igreja e o mundo seria muito mais pacifico se todos seguissem essa sugestão, ele presumiu.
Em frente ao posto de saúde, dois seguranças lançam olhares suspeitos sobre Enrico. Ele sorri serenamente, sentindo se feliz por ser considerado uma ameaça por alguém, ainda que por apenas alguns segundos. Cortando caminho pelo parque ele observa as pessoas correndo e fazendo exercícios. Homens e mulheres de meia idade, tentando enganar o tempo e aprimorar seus corpos, em alguma fútil fantasia de juventude eterna, sob a sombra de uma vida desperdiçada pelo temor da morte. A lagartixa se arrasta e ri a esse pensamento. Para ele a autodestruição é uma dádiva aproveitada por poucos. Consuma seu corpo e mente ao máximo que puder e talvez ao fim você tenha aprendido alguma coisa. Essa é a sua doutrina, quando ele se permite ter alguma. Subitamente, a fome desperta em seu estomago. Ele não se lembra quando foi a ultima vez em que se alimentou, mas tinha quase certeza de que tinha sido uma daquelas sopas instantâneas. Ele se recosta em um poste feito um michê e decide ir comer algo na padaria. Em frente à velha fábrica ele vê uma perua de calças apertadas. O seu cabelo loiro é perfumado e aumenta a fome dentro dele. Algum instinto foi despertado. Ela entra na padaria e ele a segue. Três pães de queijo e um suco de laranja, para tirar o gosto amargo de vodka de seus lábios rachados. Termina o seu lanche e começa a caminhar para casa. Na esquina ele cruza com a perua de novo. Ela deve ter uns 40 anos e está bem cuidada. Enrico pensa nela nua e gosta do que vê. Ela o nota a observando e devolve um olhar assustado e vira o rosto enquanto se afasta. Enrico sorri e imagina que em suas roupas, em seus modos e no vazio de sua expressão deve mesmo parecer assustador. O fantasma pálido desse medíocre bairro industrial. Em casa ele liga a Tv. Assiste por alguns segundo cenas de um protesto político na capital. O sangue e o fogo o fascinam, mas ele desdenha as causas daquilo tudo. Dor e suor em vão, ele pensa enquanto desliga a caixa mágica e se despe. Arrumando seu sofá cama ele sussurra versos de alguma canção maldita que inspira imagens de perversão. Escala as paredes e desliza para cama, inquieto e ansioso como uma criança. Preciso de mais vodka hoje a noite é o seu ultimo pensamento antes de dormir.

segunda-feira, 5 de março de 2007

A Voz

Sinta a dor, sinta o frio
Até o calor virou vazio
Eu perco tempo em questões perdidas
Eu nego e quero mais feridas

Eu não consigo ficar desperto
A noite se perde e eu a sinto perto
Há muito tempo apenas o sono me alivia
A luz me fere e não me guia

Eu acordei com a voz dela
Ela me chama e me vê sozinho

Eu sonho toda noite, todo dia
Eu nunca soube como ela fazia
Segredos e mensagens, a vida não fascina
Me detenho a margem dessa chacina

Esta manhã eu a quero ouvir
Me distraindo do que está por vir
O silêncio sempre foi um precioso amigo
Mas sem seu sibilo, eu me fadigo

Eu acordei com a voz dela
Ela me chama e me vê sozinho

sábado, 3 de março de 2007

O Beijo da Sarjeta

Minha vista dança na transe alcoólica e nas risadas incontidas. Meu corpo estremece com o toque quente da noite e da brisa. Eu não ando, flutuo pelas ruas, em um vôo que transcende o tempo, ultrapassa a loucura e ri da própria existência. Me sinto orgulhoso e invencível em meio a este delírio ébrio, sintoma da pirofagia. As amarras estão frouxas, a vergonha foi varrida. Uma voz no fundo da minha cabeça se ergue acusadoramente contra mim, tentando me arrastar de volta a sobriedade. Tarde demais, estou vencido e estou feliz assim. Caio no asfalto, me sinto completo, me sinto amado. O beijo da sarjeta é o amor mais perfeito que já senti.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Luz de Vênus

Sob a luz de Vênus
A lua sussurra segredos
Vejo a sua face pálida brilhar
Marcas que a noite não pode ocultar
Vejo suas lagrimas recusarem secar
Deixando minhas falhas refletirem no olhar

Sob a luz de Vênus
A chuva desperta o medo
Ouço sua luta frente ao desejo
Sua musica soa doce desespero
Ouço sua suplica espalhar com o vento
Esperando desfrutar deste céu em vermelho

Sob a luz de Vênus
As ruas exalam veneno
Veja a tempestade cair sobre a dor
Devaneios que me invadem e vem me compor
Veja a verdade arruinar o que sou
Sobras de uma tarde onde houve consolo

As ondas fervem e aquecem meus sonhos
As sombras crescem e ferem meus olhos
Noites de febre e segue a vã busca
Meus lábios secos não te encontram nunca

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Homem morto caminhando

Queima como ácido. Corta como navalha. Cada passo é o ultimo e cada suspiro é doloroso. Me movo em um andar improvável, desconjutando e triste. Olhos baixos e sem vida, um corpo incolor.
Ninguém observa, mas todos vêem, o rosto tenso e os ombros rígidos demonstram conhecimento mútuo. Uma canção começa a tocar na minha cabeça, eu tento me distrair. Minha vista perde o foco e eu fujo do flagelo. Cada centímetro do meu ser se enche de repulsa contra a própria covardia. As pernas trêmulas parecem me avisar que não tenho controle, nem mesmo sobre mim.
Alcanço o fim do corredor e o alivio é superado pela frustração. Nenhuma resposta, nenhuma redenção. Só o rubor em meu rosto.

Noites de insônia

Não consigo ficar na cama. Está muito quente, estou coberto de suor e me sinto agitado. Minha cabeça não para de gritar e não entendo nada do que ela diz. Deve ser efeito colateral da atrofia existencial em que me afundei nos últimos tempos, desperdiçando as noites e dormindo durante o dia. Começo a andar pelo quarto, de um lado para o outro, duelando com o tédio e tentando cansar meu espírito. Toco na guitarra desligada, morta e abandonada num canto do cômodo. Não gosto do que ouço, não consigo tocar nada. Silêncio maçante, madrugada invalida. O gosto da cerveja barata ainda não saiu da boca. Gosto amargo e sem propósito. Nunca gostei de cerveja.
Sento na frente da merda do computador. Agora sim, o tempo é desperdiçado de maneira tão cretina que beira a perfeição. Horas se perfilam e marcham como condenadas, enquanto queimo minhas retinas diante do monitor. Uma vez eu incendiei um computador. Foi uma idiotice...
Finalmente, um bloco de papel e uma caneta. Escrevo compulsivamente com minha caligrafia incompreensível mensagens tão vagas que nem mesmo eu vou poder decifrá-las depois. Pudor maior que o mundo. Melhor me refugiar no caos de pensamentos desordenados, vomitados uns sobre os outros na folha de papel. Assim permaneço incógnito, apesar de exposto. Está lá, mas nunca esteve.
Minha mão começa doer e abandono a caneta, encharcada de suor. Leio o texto. Parece-me uma sucessão de incoerências pretensiosas embrulhadas num pacote desprezível de mentiras, cacófatos mal dispostos, prosa floreada de insultos e uma insegurança patética. Mas parece ilustrar bem o que se passa na minha mente, em meio a essa demência noturna. O quarto está fedendo a inseticida, mas eu ainda ouço zumbidos. Minha carne está cheia de feridas causadas por insetos e meus livros são consumidos por traças. Entro em um estado de catatonia letárgica, mas permaneço desperto. Despejando tudo naquela confissão escrita, me senti vazio. Arranquei um pedaço de mim, só para o ver apodrecer no fundo da gaveta. Foi tudo em vão.
Me arrasto para a cama ao som dos pássaros. Amanheceu e aqui no meu porão úmido a luz do Sol não chega. Me sinto um clichê enquanto me afundo no travesseiro. Me sinto indigno de qualquer pensamento profundo que repousa naquela folha idiota que escrevi, se é que há algum. Escorrego para um sonho qualquer, uma viagem espiritual, uma fantasia erótica ou um pesadelo escatológico traumático. Não me importa, amanhã vou despertar e tudo vai ser o mesmo.