terça-feira, 29 de julho de 2008

Sobre Benzedeiras e Insônia

Sentado na cama do meu quarto
Eu contemplo as manchas de mofo
Da parede e pratico um exercício
De higiene mental.
Enumero os prós e contras das
Minhas futuras pretensões
E me pergunto sobre a utilidade
Das rezas de uma benzedeira que
Busquei para curar meus freqüentes
Ataques de ansiedade. Ao julgar
Pela minha insônia, tempo perdido.

As janelas e a porta estão fechadas
Há tempo demais, e um odor desagradável
Começa a inundar o recinto. Minha camisa
Ainda está encharcada pelo suor de meu
Último pesadelo. Admiro o brilho dos meus
Coturnos recém engraxados e acaricio
As feridas recentes em meu joelho. O corte
Tem um peculiar formato em V e suponho
Que devo ter caído em algum momento
Enquanto embriagado. Foram muitos
Momentos assim nos últimos dias.

Percebo uma folha amarelada caída
Próxima a minha cama. Nela está
Escrito a mão um poema auto-depreciativo
Que não me lembro de ter rabiscado.
Entretanto a letra é claramente a minha.
Leio com indiferença sentimental, mas me agrada
O ritmo das palavras. É só o que importa, um
Poema é apenas uma emoção morta e mumificada.

Gatos começam a miar a minha porta
Despertando uma estranha noção de isolamento
Em mim, trancado neste quarto. Um pernilongo
Começa a zumbir próximo ao meu ouvido.
Mantenho me parado e decido oferecer ao
Inseto uma escolha. Abro a janela e o Sol
Da manhã fere meus olhos. Observo e espero
Se o pernilongo irá partir ou tentará me picar.
Ele escolhe a minha carne, espero a picada e
Esmago a criatura sem prazer ou remorso.
Observo a mancha de sangue, do sangue que já
Foi meu e penso sobre verdades inconvenientes,
Lembranças incômodas que retornam mais fortes
Toda vez que tento evitá-las. Penso que eu também
Tive uma escolha e decidi ser esmagado, com meus
Lábios encharcados de sangue. Agarrado ao meu

Anseio Insaciável, trancado aqui, penso sobre
Benzedeiras e insônia, antes de caminhar para
Fora em busca de vento fresco e da placidez
Do meu quintal.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Lixo

Estou no alto de uma colina, observando a imensidão de um vale. Um depósito de lixo absurdamente vasto. A obra-prima da civilização humana, o mar onde os excessos desembocam, uma hemorragia na Terra causada por 10 mil anos de depravação e loucura. O céu tem uma coloração rubra crepuscular, e em meio aos detritos eu noto que há pessoas caminhando. Desço a colina aos tropeços, pisando sobre seringas, comida estragada, plástico retorcido... as soluções definitivas do passado, os brinquedos preferidos de outrora. Adornos do orgulho distorcido e ansioso, imperiosos e descartáveis. Vejo pessoas vasculhando o lixo, lambendo as sobras, sustentadas pelo o excremento do mundo que os rejeitou. Seres humanos... descartáveis. Escorrego sobre o lixo, meus joelhos sangram. Uma criança chora e a outra olha para um ponto indefinido, com o desalento de quem teve que aceitar o absurdo da existência cedo demais estampado em seu rosto. Mães e irmãs investigam os detritos em busca de comida, sucatas aproveitáveis, trinta segundos de paz. Nos olhos o sentido mais primitivo de auto-preservação, sem traços de vergonha ou ego ferido. O orgulho é uma mera invenção de uma civilização fetichista de que elas não fazem parte. Sinto um arrepio percorrer toda a minha coluna. Um frio intenso, interno, me envolve de assalto. Ouço um sussurro, meu nome... Olho para o lado e vejo o Estranho. Ele é muito alto, muito magro, veste farrapos negros, os cabelos são sujos e seus olhos... seus olhos são vazios, apenas duas órbitas obscuras. E esses olhos se encontram com os meus e mostram a verdade. Meus fracassos pessoais e os fracassos da humanidade, uma única visão, turva, distorcida, mas clara e lacerante. Em seus olhos meus ideais natimortos, as boas intenções inúteis, minha vaidade devassa, uma coleção de paixões febris e efêmeras, minha busca infantil e descompromissada por uma resposta que não existe... minhas mãos sujas de sangue inocente de populações massacradas, vidas mutiladas pela minha estupidez diária de fechar os olhos e não dar um fim a isso tudo. Eu suplico ao Estranho que pare, mas ele não me abandonará, não antes que eu compreenda o fracasso e invalidez deste longo e criminoso processo de civilização, da torturante verdade por trás da experiência humana. Não há conforto, não há redenção. A ingenuidade é um pecado sem perdão. Eu sou o culpado, eu sou a inanição, eu sou a indiferença, eu sou a certeza da derrota. Sou eu quem se ajoelha sobre as carcaças e reza pela própria alma, sem perceber a brutalidade deste ato. E diante da miséria do meu espírito, o Estranho me liberta e eu faço esforço em busca de ar. Sinto nojo de mim, me sinto indigno de deitar sobre o lixo.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O Canto da Castidade – Ato Único

O TOLO
Eu era um rapaz saudável
E casto. Vivia em uma bolha
E mamãe me amava. Até que
Em um outono conheci os
Seus lábios. Agora desmaio em
Banheiros de locais depravados.

CORO
O amor o deixou insano!

O TOLO
Não mesmo!

O CORO
O amor o deixou insano!

O TOLO
Eu não lembro!

A MOÇA
Eu era uma dama virginal
E delicada. Quando um homem
Surgia, eu logo corava. Até que
Em uma primavera eu conheci
Esse fardo. Agora desperto em
Tavernas e não sei quem está em meus braços.

CORO
O amor a alucinou!

A MOÇA
Isso não é amor!

CORO
O amor a alucinou!

A MOÇA
Não, por favor!

O TOLO
O absinto me enerva e só faço
Bobagens. Pego doenças venéreas
E faço promessas desagradáveis...

A MOÇA
Não me recordo dos seus galanteios,
Temo por sua aparência e te amaldiçôo
Se grávida. Não quero saber de
Promessas, a mim você não é
Mais que um pedaço de carne.

O TOLO
Quantas sutilezas! Pouco me importa
Como me trata! Entre você e “aquelas”
A diferença é que você é de graça!

CORO
O amor os deixou insanos!

A MOÇA
Ah, esqueça!

O CORO
O amor os deixou insanos!

O TOLO
Oh, não!

O CORO
O amor os deixou insanos!

A MOÇA
Por que não me deixa!

O CORO
O amor os deixou insanos!

O TOLO
Não, dessa vez não!

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Projeto Manhattan

No centro do fracasso da sua utopia,
Escravos escrevem poemas
Em cemitérios de alegorias
Meu coração envenenado
Pulsa firme apesar dos edemas
Apesar das mentiras

Escrevo o nome dela em minha carne
Feridas são flores escarlates
Que dou para provar meu amor

Carcaças podres de um futuro abisso
Acumulam-se no deserto venéfico
Sobre a gênese de uma tribo
Meu corpo incinerado
Pelo fogo bélico
Ainda é vivo

Guardo uma mecha de seu cabelo perfumado
Um amuleto em meu peito despedaçado
Que guardo para conservar seu calor

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Samsara

“Quando foi que as expectativas ficaram tão baixas?”, eu perguntei, acariciando a areia morna. “São ciclos, Gabriel, ciclos”, me respondeu Enrico, enquanto cavava. “No momento, após uma grande seqüência de fracassos, nós estamos num ponto bem baixo. Mas logo, teremos novas coisas em vista no horizonte, novos anseios, entende? Então, a porra da roda gigante da vida começará a girar, e nós voltaremos a estar no topo e... voltaremos a descer miseravelmente. Bom, mas pelo menos vamos nos divertir no caminho”. Tomei um gole da mistura quente de pinga com guaraná e meditei sobre aquelas palavras, sem dar muita atenção à areia que invariavelmente me atingia. “Pronto”, suspirou Enrico. “Me dá o gato”. Levantei-me e peguei o pequeno cadáver. O coloquei dentro da cova e Enrico o cobriu. Era tarde da noite, estávamos perto da luz de uma fogueira onde um bando de hippies se reunia. O som do violão fazia parte agora de nossos ritos fúnebres. Enrico colocou uma grande pedra sobre a cova, limpou a garganta e começou o discurso. “Diarréia. Você veio ao nosso acampamento como um gato cinza, sarnento e doentio. Vi em seus olhos sujos um pedido de piedade. Nós lhe demos água, comida e atenção. Aí você vomitou no chinelo de Gabriel, o que alegrou muito o nosso dia. E foi assim que você ganhou o seu nome, Diarréia. Quando retornamos da praia, você estava morto”. Tomei mais um gole e passei a garrafa plástica para o nosso orador. “Acredito que você tenha sido um bom gato e tenha aproveitado bem a sua vida livre e simples aqui na praia. Subindo em árvores, fugindo de cães, sendo alimentado por turistas e pescadores... essas coisas de gato. Você poderia ter sido um animal gordo, mimado e castrado da cidade, mas teve o destino de viver como um selvagem, como seus ancestrais e eu te saúdo por isso. A você Diarréia!”, brindou Enrico. Aquilo me pareceu apropriado. “Fale alguma coisa você, vocês tinham uma relação estreita”, me pediu Enrico. Sem questionar comecei. “Diarréia... nós podíamos ser de espécies diferentes, mas nós tínhamos muito mais em comum do que parecia. Você, assim como a areia que te envolve, a pedra de sua tumba, o mar e todos nós que aqui vivemos, somos todos parte do mesmo todo...” Eu sentia minha boca ficar mais mole a cada palavra que eu dizia e a cada gole que eu tomava. Não me responsabilizo por mais nada que vem a seguir. “No inicio dos tempos, toda a matéria prima do universo estava condensada em um único átomo, que se expandiu sem parar, criando o cosmos como hoje ele é. Tudo que existe, portanto, está ligado quimicamente, pois todos nós fomos um só na origem. Somos feitos do mesmo pó que formou as estrelas, planetas e coisas infinitamente maiores do que eu e você...”, parei para tomar fôlego e notei que Enrico fitava gravemente o oceano. “Nós, animais estúpidos desta terra, não percebemos a singularidade de nossa existência, essa nossa ligação. Estamos cegos por nossas vaidades, nossa ganância e nosso orgulho. Buscamos respostas nos lugares errados e só damos continuidade a um ciclo interminável de miséria. Você também nunca percebeu isso, pois sempre foi um escravo da própria fome, e sua única preocupação era se manter vivo por mais um dia. Eu não sou diferente. A minha vida inteira persegui bobagens, pistas falsas e caminhos enganosos que me afastaram do que realmente é importante. Eu vivo frustrado, assim como você vivia faminto, pois nada é capaz de satisfazer, nada disso...”, nesse momento noto que o violão silenciou e alguns hippies escutam com atenção o meu discurso. “... nada pode nos fazer sentir menos sós, pois somos apenas fragmentos daquele átomo primordial, eternamente separados após a grande explosão. Só quando entendermos que nossa individualidade é uma mera ilusão, que nossa cobiça leva apenas a um ciclo interminável de fracassos, decepções e angustias, é que poderemos ver com clareza, juntar as peças de desse enorme quebra-cabeça e novamente voltar a ser um apenas”. Terminei de falar e senti uma leve tontura. A praia parecia tomada por uma névoa e minha cabeça parecia dominada por um zumbido. “Nossa cara, que viagem!”, disse um dos hippies, e os outros concordaram e iniciaram uma discussão filosófica sobre energias cósmicas e místicas. Eu não tinha tentado ser profundo ou profético, eu era apenas um bêbado sensibilizado pela morte de um gato vadio. Além disso, tinha visto recentemente um documentário sobre o Big Bang que tinha me deixado um pouco impressionado. Enrico acenou com a garrafa, olhou para as estrelas e gargalhou. Olhei para a tumba de Diarréia e depois para os meus pés. Conclui que toda vez que olhasse para um par de chinelos, iria sorrir e lembrar dele.