sábado, 12 de abril de 2008

Embustes

Cruzando ruas obscuras, iluminadas pelo néon vermelho e vulgar dos prostíbulos, eu não encontro nada além de algumas horas de anestesia. Daqui algumas horas, no escuro gélido do meu quarto, o fluxo de consciência irá renascer na minha mente ébria e dúvidas cruciais mais uma vez irão me abalar. Durmo envolvido em meus próprios braços, não por falta de calor humano, mas por que assim é mais fácil ouvir meu coração bater. “Estou aqui”, eu digo a mim mesmo, e logo a sentença se torna uma questão. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito neste dia. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito nesta vida. Nas ruas as pessoas caminham tão solitárias quanto eu, todas elas. Em cada intimo um grito desesperado sibila durante a noite, clamando por respostas que nunca virão ou pelo silêncio das perguntas impiedosas...

Eram nove da manhã de uma quinta e Enrico estava completamente bêbado. Andava bêbado e drogado quase o tempo todo desde que recebera sua herança. O auge tinha chegado cedo demais para ele. Seu problema crônico de falta de dinheiro sempre o manteve sóbrio pelo menos quatro dias por semana. Agora parecia um dandy decadente, com barriga de cerveja e olhos vermelhos. O raciocínio estava lento, e às vezes ele se tornava incomunicável. Ele tinha toda munição que precisava para seu projeto de autodestruição.

Quando eu era criança, costuma construir túneis com caixas de papelão. Colocava meu capacete de soldado, pegava minha metralhadora de plástico vermelho e fingia que estava em um bunker, enquanto o mundo lá fora era destruído por uma guerra atômica. Ficava deitado lá por horas, encarando as paredes de papelão e ouvindo os sons do meu quintal. Pensava sobre tudo lá dentro e a cada vez que deixava o abrigo sentia-me menos conectado com o mundo.

Estávamos caminhando no parque quando vimos um garoto de uns nove anos tentando enterrar outro menino bem menor, que gritava e chorava enquanto terra atingia seu rosto. Corremos em direção a eles e eu gritei: “É bom mexer com quem é pequeno, não é?” O garoto me encarou assustado, mas não se mexeu. Então Enrico começou a pular e emitir estranhos ruídos, numa imitação grotesca de um primata. Quando ele mostrou os dentes e ameaçou dar um bote, o moleque saiu correndo desesperado. Enquanto ajudava o menino menor a se levantar, percebi que ele estava tão assustado quanto eu.

A luz do Sol começa a invadir meu quarto. Sem propósitos, sem paixões, a vida é uma sucessão de imagens opacas. Pior do que fracassar é caminhar sem rumo, pior do que ser ansioso é não ter esperança. Abro a janela, observo as cores da manhã. O mundo respira sem mim. O mundo vive apesar de nós. Olho para as casas da minha vizinhança e penso nos milhares adormecidos. Quantos os sonhos serão lembrados e quantas palavras terão sentido? De que nos servem esses pensamentos se ninguém pode ouvi-los? A vida afinal, se passa aqui fora ou dentro de nossos espíritos?

Encontrei Enrico caído no boxe do banheiro, banhado pelo próprio vômito. Ele estava acordado, mas desorientado. Coloquei-o de pé e lavei o seu rosto. Ele se sentou no vaso e ficou encarando a parede. O cobri com uma toalha. “O que você está fazendo?”, perguntei com voz estridente. Ele continuou a olhar, para onde quer que ele estivesse olhando. “Não sei viver assim”, ele falou gravemente. Era obvio que os dias de desperdício de Enrico não eram uma escolha, apenas uma confusão diante da nova vida. Ele não precisava mais roubar restos de cerveja, viver de empréstimos e dormir em um quarto mofado. Ele tinha tudo e não sabia o que fazer com aquilo. “Pare de ficar chapado o tempo todo e arrume alguma coisa para fazer”, eu quis dizer, mas isso seria insensível, não é? Eu diria aquilo mais tarde.

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