quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Passagens de uma noite sem fim

So you can stick your little pins in that voodoo doll/ I'm very sorry, baby, doesn't look like me at all/ I'm standing by the window where the light is strong/ Ah they don't let a woman kill you/ Not in the Tower of Song” cantava Enrico na máquina de videokê do bar. O boteco não tinha músicas de Leonard Cohen, então ele cantava a letra sobre a melodia de um forró qualquer. Eu observava tudo com os olhos semicerrados de sono atrás de uma dúzia de garrafas de cerveja vazias. Os pensamentos flutuando como éter através dos versos de Tower of Song...

As pupilas se contraíram até não serem mais do que dois pontinhos negros que encaravam as luzes do corredor. O som das rodas da maca vibrava dentro da cabeça. Um curativo na clavícula quebrada. Alguma droga dançando pelo tubo do soro, penetrando nas veias, adormecendo corpo e mente. Morfina? Talvez. Sem dor, sem lucidez, só ruídos e luz branca.

O pior pesadelo que eu tive: Estava em minha cama em uma tarde de domingo, a luz do dia entrava no quarto através da persiana azul. Eu acordei com o que parecia ser alguém sussurrando uma música. Olhei para o lado da cama e vi três crianças negras sorrindo. Tentei levantar, mas não pude. No pé da cama uma mulher vestida como uma feiticeira voodoo ou algo assim ergueu o braço em minha direção e comecei a levitar até meu rosto ficar sob a palma da mão dela. Comecei a convulsionar enquanto ela gania algo que não me fazia sentido. Acordei com meus próprios grunhidos. Meus músculos estavam doloridos com as tentativas de me mexer. Paralisia do sono é como chama o lance. Tive outras vezes, mas nunca foi tão assustador.

Eu não sei a quem pertencem as pernas que me envolvem. Eu não tenho um foco preciso na iluminação doentia deste quarto abafado. Apenas o cheiro diferencia tudo de um sonho escroto, o cheiro grotesco de mofo, porra, perfume barato, suor e lubrificante, cheiro grotesco e real, asquerosamente impregnado em mim. Por fim meu corpo desfalecido, um saco de merda inerte sobre lençóis imundos. Não se atravessa a cascata de neon e retorna impune. O cheiro te persegue até o inferno.

Se você quer saber, a única coisa que me interessa em viagens lisérgicas são as bad trips. Eu não vou arriscar uma lesão cerebral pra ver coisas bonitas ou reconfortar meu ego com respostas fáceis. Eu consigo isso com TV e pornografia. Eu quero o pesadelo do confronto, uma metralhadora de verdades escarradas em minha cara, as minhas fantasias e sonhos decapitados e expostos em praça pública. Eu não quero respostas, quero mais questões. – O Manual da Iluminação Expressa, de Sebastião Vega, Grão-Orador do Sindicato dos Mendigos.

O melhor sonho que eu tive: Estava caminhando em uma cidade antiga, com ruas de paralelepípedos e prédios em estilo barroco. Era noite. As ruas estavam abarrotadas de gente andando nas duas direções. Eu comecei a me angustiar de estar ali, me sentia sufocado pelos prédios e pela multidão. Comecei a correr. Corri até chegar às muralhas da cidade. Saltei sobre ela e cai num deserto. Continue a correr, subindo por uma duna. Do céu descia um cavaleiro alado, com uma lança apontada pra mim. Saltei na direção dele e com um único golpe o derrubei do cavalo. Continuei subindo em direção ao céu estrelado, subindo cada vez mais rápido até deixar atmosfera e meu corpo se desfazer em centelhas. Nunca vi cores em um sonho iguais a que vi enquanto minhas cinzas se fundiam as estrelas.

Adormecida. O corpo quente dela contra o meu, alguns fios do cabelo perfumado grudados nos meus lábios, meu braço dolorido debaixo do seu torso. Ela desperta e puxa minha mão para envolver o seu seio. A luz fraca seduz meus olhos a se fecharem. Faz frio e só quero adormecer na calmaria. Um pouco mais dela, antes de mais uma fuga pra lugar nenhum.

No quintal da minha casa tem uma pitangueira. Era uma árvore grande, eu costumava subir nela quando criança. O cheiro das folhas ficava impregnado na minha roupa e no meu cabelo e quando eu corria aquele odor se espalhava pela casa. Ainda gosto de sentir esse cheiro. Um dia minha mãe pegou um machado e podou a pitangueira de maneira brutal, só sobrou um toco. Fiquei puto, tinha matado a minha árvore. Ela disse que ia brotar de novo, mas não me parecia possível. Mas depois de uns meses lá estavam alguns galhos novos e algumas folhas. Agora já é de novo uma pequena árvore, com algumas flores surgindo. É estranha a mudança de perspectiva, como eu cresci e ela encolheu. Pensei como seria se eu tivesse a mesma chance, me mutilar até me reduzir a quase nada e depois crescer revitalizado. Acho que seria uma ótima opção pra um momento da vida em que se olha pra frente e não se enxerga nada.

“... psicólogos, sacerdotes e outros supersticiosos que abusam de sua influência sobre as massas hipnotizadas, cometem a atrocidade de tentar enquadrar as mentes dissonantes da realidade proposta pelo poder vigente através de métodos brutais de tortura, justificados por um suposto bem estar social”, discursava Enrico no microfone do videoke quando despertei. Atrás do balcão um garçom de olhos vermelhos prestava atenção em silêncio. Já amanhecia. Não havia mais ninguém no bar além de nós três. “A verdade é que tentar controlar a mente de alguém é como tentar impedir a movimentação dos corpos celestes de uma galáxia. Uma mente não pode ser domada. Na pior das hipóteses pode ser condicionada, danificada ou destruída. Não existe cura, não existe doença, existem peças que não se encaixam no vitral imaginado por aqueles que impõem sua visão sobre as carcaças do grande gado oprimido”. Ele terminou de falar e ficou olhando pra parte alguma. O som da microfonia começou a soar pelo bar. Levantei-me e tirei o microfone da mão dele. Fui até o balcão e perguntei “Quanto a gente deve?”. Olhos vermelhos me encararam vazios de resposta.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Corrosivo

Eu começo a sentir a mutação no momento em que viro a esquina e troco a Augusta pela Paulista. Um leve zumbido de anfetamina, a vista distorcida do álcool e o fluxo contínuo de pensamentos lisérgicos. Fim do recreio rapazes, é hora de malhar esse velho cérebro com um pouco de tortura e auto-recriminação. Falta uma caralhada de hora ainda pro metrô abrir e minha carteira está forrada com duas notas de 2 e algumas camisinhas velhas. Oh, minha bela fúria, cultivada e mimada em uma linda caixa de vidro! Escapou pelo ralo e desceu corroendo pelo meu peito até o fundo do estômago. Muita paixão, muito vinho, muita juventude... não se vai longe assim, faz mal pra saúde. Esse treco não é forte o bastante. Maldita escória, hippie escroto travestido de mendigo me vendeu. Cuzão homicida, me apunhalaria pelas costas por uns trocados, eu li nos olhos dele. Mas me deixem em paz com meu ódio, é tudo que eu tenho agora. Passo pelo MASP, meu joelhos doem. Minha mente dispara pensamentos autodepreciativos que variam entre os temas maturidade psicológica, carreira e trabalho, vida afetiva, aspirações artísticas e habilidades cotidianas, como dirigir e trocar a roupa de cama. Porra, que porra, que porra é essa então? Eu leio Sartre, Russel e um monte de gente morta, tento preencher minha cabeça fútil, mas e aí? Qualquer menina cheirosa arruína isso em segundos. Que deus tenha piedade da minha alma medíocre e daqueles que me rodeiam sorrindo como hipócritas. O pior de mim veio à tona e não posso fazer nada a respeito. Meu Id escapou da jaula e o Superego está preso no sótão, mãos e pernas atadas, amordaçado com uma meia na boca, chorando silenciosamente enquanto assiste a casa pegar fogo. Vai tomar bem no meio do seu cu picareta Freud, você e seu lixo tóxico. Viver assim é obsceno. Eu já to na Brigadeiro e ainda é cedo. Me sento numa escadaria, faço hora, que diferença faz, a noite já não se importa

Que caralho! O que aconteceu? Merda, dormi aqui. Jesus Cristo, que vacilo. Algum maníaco poderia ter batido minha carteira, se insultado com minha miséria e ter me escalpelado por eu ser um fracasso ainda maior que ele. Não se pode confiar nesses tipos. Como eu pude dormir com toda essa química? Aquilo não passava de lixo, um placebo e eu caí direitinho. Mais essa agora, parabéns Gabriel, você perdeu todas as partidas que jogou essa noite. Andar, eu sou bom nisso. Precisava me ver quando eu tinha 17, podia andar por dias, vivendo apenas de chuva e de visões. É nisso que eu sou bom, andar e beber. E ficar em silêncio. Nunca perdi uma partida de vaca amarela, não senhor, nem que custasse minha vida. Estou no Paraíso, mas que merda de ironia. No ponto de ônibus um tarado perturba uma mocinha. Ela manda ele se foder e sai andando. Ele caminha trás dela. Ela berra “você não vai me seguir, porra”. Ele hesita. Ah, se fodeu compadre, o mundo não perdoa quem hesita. Um segundo de lucidez é o bastante pra arruinar uma noite inteira. Loucura é por definição uma certeza absoluta. Sanidade é a capacidade de duvidar. Duvidar de tudo, até de si mesmo. Mas isso é deprimente. Por isso loucos são tão inspiradores. Veja só Hitler ou Moisés. Gente desesperada se deixa seduzir por certezas Mais uma saraivada de pensamentos autodepreciativos. Imagino Dee Dee Ramone rindo de mim. Moleque mimado, o maior dos seus problemas é ter de pedir 20 reais pro seu velho pra ir passear com teus amigos. Na tua idade eu tinha que vender meu cu pra pagar o aluguel e compra heroína. Oh, sim, Dee, você expôs um ponto interessante, mas veja, isso é que é trágico, minha vida é tão mesquinha que precisa ser preenchida com devaneios e delírios, só que eu às vezes eu esqueço e começo acreditar na porra toda. Ai eu acabo numa situação como essa, furioso, humilhado e desejando uma morte iminente. Dee Dee diz que eu o deixo com vontade de vomitar e me abandona. Encosto na porta do Ana Rosa e espero pelo homem. Logo ele vem e eu escorrego escadaria abaixo. Vagão, escadas, ônibus, calçada, casa, rápido assim, sem distrações ou ruídos. Me abrigo debaixo das cobertas e duas lágrimas cáusticas percorrem meu rosto. Fim de luta, o desafiante está na lona, senhoras e senhores, que massacre tivemos aqui. Cambaleou como um animal torturado e não ofereceu resistência alguma. Anjos sussurrarão aos ouvidos de poetas que escreverão sobre essa noite de patética agonia. Deus tenha piedade de todos vocês, seus putos. Não há nada que vocês possam me oferecer agora, eu já fiz minha cama e estou pronto pra dormir. A mutação termina aqui.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Paixão

É como um daqueles cenários de filme, em que eles colocam um carro na frente de uma tela. As imagens vão mudando, criando a ilusão de movimento. Não passa de uma carcaça de metal imóvel o tempo todo. É um modo de enxergar a vida. Você fica ali estático enquanto tudo ao seu redor se transforma. E você não pode fugir dali, não importa quanto o cenário mude você sempre está preso à companhia de si mesmo. E às vezes eu acho isso um tédio.

Um coração partido é uma visão muito mais bonita e romântica do que um ego ferido. É muito mais glorioso acreditar que um poderoso sentimento te paralisou vulnerável, te iludiu e rasgou seu peito em pedaços do que admitir que é tudo vaidade. Ouvir um não, se perguntar o porquê do não, enumerar os motivos do não e ver que a esperança do sim não se sustentava. Sentindo-se patético, diminuído e grotesco, você quer ir embora e percorre todos os cenários, mas não faz diferença, por que você continua ali consigo mesmo.

A vida é caótica demais para ser apreciada como é, por isso criamos uma edição especial em nossa cabeça, como se fosse uma história linear, com propósitos, antagonistas e guias. Uma forma de delírio programado para manter nossa sanidade e percepção de realidade. Ai um dia você acorda... Acorda? Ou talvez siga com seu teatro do absurdo, por que não há muito mais o que se fazer.

Todo dia eu gasto algumas horas me convencendo de que nenhuma das minhas preocupações é importante, de que meus complexos são mesquinhos, que não há nada de excepcional em minha vida e que no fim das contas nada fará diferença. A minha frustração vem do fato que eu não me sinto conectado com nada ou ninguém. Acho que quando alguém se sente infeliz, é normal que projete toda a sua esperança em alguma coisa. Religião, amor, ambição... qualquer coisa que você possa se apegar e sentir que existe um chão sob seus pés. Eu não possuo nada disso. Eu me sinto solto em um vácuo, flutuando a esmo rumo a lugar nenhum. Então eu projeto minha esperança no acaso, que talvez eu encontre a minha paixão de viver em algum ponto obscuro, que ela surja como a gravidade que vai me atrair de volta ao chão.

Mas então eu me contradigo. Se eu projeto minhas esperanças no acaso, não há diferença alguma no que fazem os outros. O meu Deus é o incerto, minha ambição é o amanhã, meu amor o desconhecido. E o chão está o tempo todo ao meu alcance. Mas quem quer fincar seus pés na terra suja quando se pode contemplar o horizonte sempre distante?

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Cães selvagens só usam coleira por uma questão de estilo

Eu estou embolorando nessa porra de apartamento, sentado o dia todo na frente do tele, vendo essas imagens maçantes e essas notícias inúteis. Tem uma criançada barulhenta na vizinhança e essa é única coisa que alegra um pouco os dias. É bom quando ainda são pequenos e selvagens, antes que se tornem uns otários frescos. Não posso acreditar quão rápido foi pra tudo virar uma merda de novo. Depois da grande fissura o mundo virou uma bola de fogo e quase todo mundo morreu. Foi ótimo! Tudo que o planeta precisava era de um apocalipse. Eu era jovem, com espírito em chamas. Nós caminhávamos pela noite, descalços sobre areia tóxica, chutando carcaças e buscando comida. Você só dependia da própria inteligência e da sua navalha pra matar a fome. Sem governo, sem instituições, sem impostos, sem porra nenhuma. Mas só foi questão de tempo e esses vagabundos arruinaram tudo. Logo começaram a se “organizar” e os burocratas tomaram o poder. “Nós precisamos de um método de trabalho”, “a sociedade precisa de instituições e valores sólidos”. Putos! E todos os cretinos trocaram a liberdade pelo que era mais cômodo. Sentados em cubículos, sendo alimentados por sondas nas veias, tubos enfiados no meio do cu, repetindo o mesmo lixo tedioso dia após dia, hora após hora e ainda se dizendo cidadãos produtivos. Nós éramos caçadores, nós éramos deuses, porra! Agora eu vivo nesse mundo de fazendeiros e cordeirinhos. E as merdas que eu tenho que ouvir! “Salvem as baleias”, “Beba com moderação”, “Coma mais vegetais”. Escuta aqui seu viado, sabe quantas gazelas eu tive que degolar pra sobreviver, pra agora tu me aparecer e falar em vegetarianismo? Vá se foder! Agora a matança é imoral? Se não fosse pela matança vocês nem estaria aqui. A humanidade se propagou graças a matança e carnificina, e não através das baboseiras que você prega. Uns anos atrás meu filho me arrumou uma pensão, uma recompensa por eu ser um dos “heróis da reconstrução da civilização”. Putos. Como se eu tivesse alguma coisa haver com essa chatice anti-séptica que o planeta se tornou. Mas pelo menos eles me pagam pra eu ficar aqui fazendo nada. E os empregos que eles inventaram? Superintendente disso, supervisor daquilo, assessores da rola da puta que pariu. E reclamam de tudo. Do governo, do patrão, do salário. E depois eu que sou vagabundo. Olha seus cornos, vocês são o que escolheram ser. Essa merda foi construída em cima da preguiça de vocês, seus lixos, que trocaram a liberdade áspera e brutal da vida por três rações diárias, veículos de transporte automático e alguns minutos semanais de diversão em algum picadeiro. Animaizinhos adestrados. Desci as escadas do meu prédio e dei de cara com um dos moleques rabiscando minha parede. Não fique assustado não. Eu gostei da pintura. Muito melhor do que o muro cinza de bosta que tinha antes. Escreveu um palavrão, não foi? Esse é fraco, depois eu te ensino um dos bons. Garoto, quando eu tinha tua idade nossa diversão era correr pela cratera, escalar as rochas e atear fogo em árvores mortas. Você perdeu uma farra e tanto nascendo na época errada. Não tínhamos prédios, nem cercas, nem esses vigilantes cretinos. Eu me lembro de estar nu sobre uma estrutura de metal tombada, encarando o brilho da atmosfera envenenada e escutando meu coração pulsar depois de uma boa caçada. Agora escuta, vou te mostrar um negócio. Olha só. Pega o elástico e esse treco aqui... arruma uma pedra. Viu? É um estilingue. Tenta você agora. Hahaha, muito bom. Eu dou pra você se você me prometer que vai quebrar umas coisas por aí. Traga um pouco de inferno pra esse mundo escroto. Quem sabe um pouco de barulho faça esse povo entrar em pânico, acelere um pouco a pressão. Talvez se eles ouvirem o coração bater se lembrem por alguns segundos que ainda estão vivos.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Pornô

De pé sobre o palco, de costas para a tela do cinema pornô, Enrico recitava um texto que lia de um caderno, enquanto cenas de uma mulher sendo sodomizada se projetavam em seu rosto. “Dia após dia, a rebelião juvenil e sonhos de liberdade eram trocados por um desejo de comodidade e calmaria. O espírito se fadigou com sua própria tormenta. A frustração com o mundo que não aceitava sua natureza caótica o levou a uma apatia mórbida. O fracasso era inevitável. Frágil demais para romper o padrão. Incapaz de viver dentro da normalidade. Buscava na neblina densa do seu mau humor qualquer luz guia que o salvasse da inaptidão em viver. Um messias, um anjo, um romance. Mas não havia nada para ele”.

“O que ele está lendo?”, perguntou a prostituta sentada na cadeira ao meu lado. “É um autor chamado Gabriel Gabay. Já ouviu falar?”. Ela fez que não com a cabeça. “É um puta dum pretensioso. Algum potencial talvez, mas se perde fácil. Prosa sem ritmo, cheia de adjetivos... na boa, não perca tempo com ele”.

Alheio a seu público, formado por mais duas prostitutas e um cliente que pareciam vagamente curiosos, Enrico continuava sua leitura. “Então abraçou sua mediocridade, anestesiou os sentidos e sua vida se tornou um pedido de desculpas. Ao mundo, aos pais, a todos os olhos. Pela preguiça, pelo descompasso. E as desculpas vieram como prêmios de consolação. Os anos se passaram movidos a Ritalin e Valium. O emprego enfadonho, o casamento, as contas no final do mês. E uma amargura disfarçada que nunca deixava de crescer”.

“Sabe o que me irrita nesse autor?”, eu disse para a mulher. “Essa necessidade doentia de chamar a atenção. É como se ele percebesse que é incapaz de ser reconhecido por suas qualidades, então tenta fazer isso através dos seus defeitos. Talvez esperando que alguém se apaixone por eles e isso o redima de ser o babaca que é. É pura vaidade”. A prostituta me olhou em silêncio por alguns segundos e então disse. “Acho normal querer um pouco de atenção, custe o que custar. As pessoas são mais carentes do que parecem”.

Encoberto por sombras, os olhos baixos de Enrico percorriam a folha “Na hora final de vida olhou pra trás e só viu tédio, rancor e solidão. E tudo isso pra quê? Havia traído a si mesmo a troco de migalhas e agora via que só a dor lhe dava alguma motivação em existir. As derrotas eram estímulos que o fortaleciam. Cego pela frustração abriu mão de tudo que tinha real valor pelos aplausos imaginários de um mundo vão”.

Então seus olhos se ergueram e incandesceram contra a luz do projetor. Abandonando a leitura, Enrico discursou o resto do texto. “Viveu a vida como um filme pornô. Cheia de diálogos vazios, lugares comuns e poses forçadas. Os gritos de prazer exagerados e os gemidos de dor abafados. O reconforto de um orgasmo fácil, uma mente pálida e uma ejaculação sem sentido. E ao final de tudo seu rosto se desvaneceu com o corte final, para sempre esquecido”.

Enrico continuou a fitar o vazio em silêncio enquanto a atriz recebia um jato de porra em sua face. Após alguns instantes o filme acabou e a sala ficou escura. Não houve aplausos.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Altar

Lágrima a lágrima
Até que os olhos estejam adormecidos
Sonhe como se a noite nunca fosse acabar
É tênue o véu que abafa os seus gemidos
Recolha suas mentiras e monte seu altar

Sob névoa a noite se estende
A trilha o leva ao mesmo lugar
Tempestuosa fúria, adore-a, alimente-a
Caia de joelhos e apronte-se pra sangrar

Sem espera
Sem surpresas
A meio caminho de lugar nenhum
Viver mil vidas não faria diferença
Olhe em meus olhos
E veja segredo algum

Faça bom uso da incerteza
Lágrima a lagrima
Até os lábios estiverem selados
Corpo contra corpo, a falácia é desferida
Parva alegria sob um luar desfigurado

Madrugada, as ruas estão vazias
Madrugada, eu não sei o que procurar
Madrugada, a noite é tão fria
A pétala se dissolve sob a língua
Sem diminuir o gosto amargo

Lágrima a lágrima
Até que os olhos estejam adormecidos
Sonhe como se a noite nunca fosse acabar
É tênue o véu que abafa os seus gemidos
Recolha suas mentiras e monte seu altar

domingo, 9 de maio de 2010

Atroz

Eu costumava observar espelhos com olhos fascistas. Era decepcionante ver reflexos que contrariavam minha percepção da realidade. A expectativa de controle sobre a vida gerava apenas frustração. Foi preciso muito tempo para apreender a contemplar o caos e ver beleza nele. Meu rosto e meu corpo sempre foram cobertos de cicatrizes, lacerações e queimaduras desde que possa me lembrar. Não sei de onde elas vieram. Sonhei inúmeras vezes em ter uma face normal, mas ao despertar, minha aparência era sempre tão hedionda quanto antes. Tentei me convencer que poderia ser julgado apenas por minhas ações, mas isso foi apenas uma ilusão. Por mais bem intencionados que fossem os olhos que se encontrassem com os meus, sempre carregavam uma faísca de piedade ou nojo.

Agora que me exibo em um show de atrocidades, me sinto muito mais tranqüilo. Você pode achar isso humilhante, mas para mim a aberração maior era tentar me adequar aos padrões que não eram meus. Me vestir em um terno e caminhar em meio a uma multidão com esperança de ser mais um. Não! Isso é que era atroz. Deixe que me enjaulem, me desnudem e me exibam. Deixe que me observem com horror e gozo, que se ajoelhem e agradeçam ao seu Deus por não padecer das mesmas chagas do que eu. Que chorem e riam. Eu posso transformar o pior de mim em uma dádiva. A atrocidade está nos olhos fascistas que me observam. Eu os recebo com deleite e me sinto livre no belo caos.

Cada cicatriz minha é um passo de distância da humanidade. E pelo que eu conheço dos homens, estou caminhando da direção certa. Piedade é a pior forma de repulsa. Prefiro inspirar o terror. E quando as cortinas caem e as luzes se apagam eu escuto o infinito desordenado de vozes e passos, e entendo que minha solidão não é pior do que as dos demais. Minhas deformações impedem qualquer embuste sobre a aberração de existir.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Queda Sobre Queda


Comédia

Uma fração de segundo após o choque, meus olhos se ergueram do chão trágico para um céu hipotético acima da lajem de concreto. A expressão abatida se desfez em um sorriso de moleque que foi pego em meio à trapaça e algo naquele novo fracasso me deixou satisfeito. Como se eu fosse o centro de um vórtex de nada, o ponto de sustentação de um buraco negro, intocável ao caos que circulava ao redor de mim. Eu era um coadjuvante de filme ruim. O alivio cômico da trama piegas, uma ferramenta para a catarse do protagonista, a caricatura imóvel que repete infinitamente as mesmas frases de efeito, os mesmo embaraçosos clichês. E aquilo não me pareceu ser nem um pouco desagradável.

Tragédia

Olhou para a poça de sangue, viu seu reflexo entre as penas despedaçadas e soube que sua inocência estava perdida. Ele havia caído. Olhou com terror suas asas mutiladas se decompondo rapidamente. Sentiu o frio e o vazio pesando em suas costas e o remorso de um Paraíso perdido. Através de uma lágrima olhou para o céu opressivo e num espasmo de lucidez sentiu algo que desconhecia.

Poesia

Bebidas amargas não trazem consolo
Terra arrasada em meu peito, em meu corpo
Delírios de néon me cercam em espirais
Vazio de sonhos sou uma carcaça a mais
Ignoro o espelho, ignoro o destino
As chagas do desejo e seu estranho sentido

Seu beijo tingiu-me de sangue
Adormeço e me lembro do perfume
Um sonho negro não será o bastante
Seu sabor de desprezo me confunde

Matemática

Talvez exista alguma simetria na vida. Talvez o peso dos meus passos enquanto desço estes degraus seja inversamente proporcional a leveza que senti enquanto os subia, horas atrás. Talvez a realidade esteja me preenchendo pelos mesmos canais que a ilusão o fez, e este processo é o que me causa dor. É possível que a existência seja um gráfico de uma curva, hora ascendente, hora descendente, e que cada queda seja uma mera conseqüência dos vôos que não fui capaz de completar. Gravidade é a força oposta ao sonho.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Árido

“É a sina de um tolo: escolher os solos mais áridos para semear e se sentir culpado quando nada cresce... Não é nada inteligente, meu amigo, nada mesmo”.

Eu sonhava com o deserto. Não me lembro dos detalhes, dos rostos ou das histórias, mas com certeza tinha um deserto. Meus sonhos costumam ser opacos, mas dessa vez foi diferente. A areia resplandecia dourada até o infinito, além do horizonte da minha imaginação. Agora eu encaro o teto do meu quarto. Um fio de luz escapa pela persiana e tinge o recinto numa meia luz agradável aos olhos recém despertos. Penso no que farei pra preencher o dia. Penso no último cheque do seguro desemprego que vai cair amanhã. Penso no futuro enevoado, penso nas mulheres que nunca tive. Porra, o que há de bom em pensar? Eu deveria trocar minha roupa de cama, comer algo nutritivo e enviar currículos. Eu farei isso, eventualmente. Por hora vou me concentrar no tom luminoso das areias daquele deserto. Só por alguns minutos. Depois eu volto ao labor da existência humana, como eu sempre faço. Eu prometo.

“Eu nunca mais quero ouvir uma voz sensata. Vozes sensatas sempre me dizem Não”.

Às vezes eu poderia jurar que se eu não berrasse com toda força, as pessoas ao meu redor não iriam lembrar-se de mim. Por isso hoje ficarei em silêncio, imóvel e fora do campo de visão de todos. Algumas horas esquecido, é só disso que eu preciso. Como se não houvesse nada lá fora. Como se eu não existisse além daqui. Então, quando for o momento certo, eu vou abrir a porta e deixar a luz me invadir. Serei a carne que você pode ver, os murmúrios que você pode ouvir e não mais o vazio que só eu posso sentir.

“Se Eco realmente amasse Narciso, teria o desfigurado”.

Tempo demais em frente aos espelhos que minha imaginação produz, vendo o que eu nunca fui, admirando o que não serei, traçando rugas que não estão lá. Talvez eu pudesse enxergar na íris de outra pessoa o que realmente sou. Eu ficaria verdadeiramente exposto neste reflexo, sem os filtros do orgulho e da autocomiseração. Mas por hora eu só tenho a visão deste deserto, dourado e resplandecente, porém árido e sem vida.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Qualquer rumo que não seja eu

Desempregado novamente. Nessas épocas de ócio é difícil se manter distante ou neutro da influência de Enrico. Toda noite ao embarcar eu seu Chevette arruinado eu apenas tento imaginar em que dimensão de horror nós iremos acabar. Oh sim, vai ser chocante, mas ninguém mais consegue ficar surpreso. Nós nos vimos estagnados em nossas fantasias grotescas. Isso não era bom pra ninguém.

Decidimos viajar por alguns dias. “O mais longe possível do oceano”, era nosso único plano traçado. Seguimos rumo ao interior, pelas estradas mais abandonadas e precárias que pudéssemos encontrar. Durante nossa jornada, ficou claro que nós dois estávamos tomando rumos muito diferentes. Enrico estava concentrado em mergulhar mais fundo nos limites da sua sanidade, transformando a sua vida em um manifesto surrealista em tempo real. Ele percebeu que nos últimos tempos não passava de uma imitação barata de si mesmo. Vomitar em locais inapropriados e ofender velhinhas em paróquias pode ser genial aos dezessete, mas é meio patético quando se tem vinte três. Ele precisava encontrar um meio mais cerebral de expressar o absurdo. Quanto a mim, estava cansado de toda aquela merda repetitiva. Você espera que com um estilo de vida desses, o imprevisível seja a única certeza, mas não é verdade. As coisas começam a ficar morosas até mesmo nas mesas de bares, nos puteiros e nos becos. Uma hora você cansa de ser bizarro.

Não que eu não tenha me divertido durante a viagem, roubando cerveja, dançando forró com senhoras de meia idade e mostrando a bunda para os carros que vinham no sentido oposto da estrada. Não que eu me sinta mal ou me arrependa de alguma atrocidade nojenta e sem sentido que eu tenha feito na minha vida. E o caralho que de alguma forma eu vou me tornar um sujeito sério e funcional a partir de agora. Eu apenas não estou satisfeito com alguns momentos de êxtase tentando redimir dias de tédio, solidão e frustração. Existem vazios que não se preenchem com risos histéricos e litros de cachaça.

Por uma semana nós vagamos por cidades minúsculas, saqueando pomares, nadando em açudes e dormindo na sombra de árvores. Em cada bar nós inventávamos uma identidade diferente e uma diferente razão para nossa viagem. Uma hora nós éramos irmãos indo tomar posse de uma fazenda que herdamos, outra éramos missionários indo ajudar criancinhas leprosas. Nós conhecemos pessoas interessantes, estúpidas, esquecíveis, cruéis e gentis. Todas elas pareciam muito mais reais do que nós.

“O que aquele velho gritava?”

“Estava, tipo, pregando”

“O que ele falava?”

“Que o homem não mais pertence à Terra. Que nós demos as costas a Deus, a natureza e tudo mais, que esse não é mais nosso lugar”.

“Pertence aonde então?”

“A Lua”

“A Lua? Hahaha”

“É. O nosso espírito pertence à Lua. Uma rocha morta, cinzenta, sem inconstâncias climáticas, sem catástrofes naturais, sem recursos, sem predadores, sem erros, sem barulho ou surpresas... assim como nós gostaríamos que a Terra fosse. Como nós queremos ser”.

Nós desejamos tanto ser livres, mas também queremos ter controle total sobre nós mesmos. Demorei tempo demais pra perceber esta contradição, e me achei preso em uma atuação forçada do que eu pensava que queria ser. O caos sempre encontra uma forma de quebrar minhas certezas. Transformar que era incomum e estimulante em rotina e tédio, foi apenas mais uma delas. Outra forma de me dizer que eu não tenho o controle.

“Gabriel, a nossa viagem não faz sentido”

“Por quê?”

“Hahaha, nós somos burros cara. Nós queríamos nos afastar do Oceano...”

“E daí?”

“E daí que nós demos as costas pro Atlântico e esquecemos que se continuarmos nessa direção, vamos acabar caindo no Pacifico”.