domingo, 24 de maio de 2009

Absoluto

Meus olhos violados por sua beleza enfurecida
Sirva-se do silêncio que nos aparta
Despertando do vácuo a minha mente entorpecida
Um beijo trêmulo nos consagra

Eu ofereço o meu fascínio
Se você encontrar uso para minha dor
Santifique meu suplício
Valha-me lágrimas
Seja a navalha contra meu corpo

Suave e febril
Não permita que eu respire
Sua farsa me feriu
Meu ardor não tem limite

O meu sangue ao seu dispor
O meu sangue ao seu dispor
O meu sangue ao seu dispor

Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Ao seu dispor
Ao seu dispor

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Desafino

“Você já pensou que na concepção de uma mente cristã, há um deus entediado olhando para nós o tempo todo, e que nossa missão é entretê-lo?”. Eu não refleti muito sobre aquela teoria, estava concentrado em extrair algum som do meu velho violão. Também não fui capaz de notar que Enrico estudava abismado seu reflexo há alguns minutos. “O que nós podemos fazer a respeito disso? Nós fomos criados para servir ao acaso, a vida inteira uma inútil peregrinação”. Tudo em que eu pensava era na necessidade de trocar as desgastadas cordas de nylon. A afinação estava instável. “A história humana consiste num filme pornográfico repetido incessantemente até que não exista mais ninguém para assistir”. O som dos meus acordes era grotesco. Um ruído sujo, dissonante, sem consistência, lixo sonoro produzido por dedos e ouvidos ineficazes. “Eu não tenho ambição alguma a não ser não fazer parte disso. Todo vez que eu tento fazer parte de alguma coisa eu acabo fodido, machucado e envergonhado. É como se eu traísse minha natureza... Eu não quero mais ter vergonha de quem eu sou.” Eu tentei um dedilhado nas cordas mais agudas e o som se torna mais agradável, ainda que simplório. Eu não presto pra acordes, só domino as notas soltas e as frases repetitivas. “Eu sou o que eu escolhi ser, diante das minhas perspectivas. E se diante da perspectivas dos demais eu sou um lixo... para mim eles também não passam de uns merdas. A diferença é que eu estou sozinho”. Finalmente algo parecido com uma canção ecoa da caixa acústica. Uma bobagem, uma melodia infantil, mas que secretamente me trazia orgulho. “Que porra você tá falando, seu bêbado?” Enrico se desprende do espelho, olha pra mim e sorri. “Que você toca mal pra caralho”.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Oferendas em Chamas

Seja o mundo um campo fúnebre
Feridos sejam os corações infiéis
Seja obscuro tudo que me supre
Atrás das fendas de seus olhos cruéis

Seja o horizonte uma promessa ausente
Carcaças sejam cada homem e mulher
Seja meu corpo uma oferenda ardente
Ao peito gélido de quem eu quiser

terça-feira, 5 de maio de 2009

.22

Foi por causa de um sonho que ele acordou. Um sonho lúcido que revelou o lado sombrio do seu caráter: “Santo Deus!”, ele pensou, “Que péssimo Deus eu seria!”. Ainda embriagado de sono ouviu o barulho da campainha. Eram três da manhã, quem diabo seria? Abriu a porta sem pensar. Três soldados vestindo uniformes negros entraram. Atrás dele um homem severo, de paletó e chapéu anunciou: “Gabriel Gabay, você está preso acusado de desperdiçar 22 anos de uma vida. Entre os delitos, estão listados: Preguiça crônica, ser mimado demais, não se lembrar de aniversários, escrever poesia de baixa qualidade, reclamar sem motivo, se lamuriar pelos cantos, quebrar 12 controles de Playstation, medo do futuro, medo do presente, ingratidão ao passado, não aproveitar tardes de Sol, traição aos próprios ideais, urinação pública, abandonar amigos, pavor a rejeição, narcisismo exarcebado, nunca dar bom dia, incapacidade de se expressar... a lista é interminavél! Mas acima de tudo, você é culpado por seu grave comprometimento com a mediocridade e a não realização de qualquer ato relevante nos campos familiar, amoroso, profissional e artístico”. Gabriel tombou para trás e suas costas se chocaram contra a parede. Ele ficou sem ar e nada conseguiu dizer em sua defesa. “Você permanecerá sob nossa custódia por tempo indeterminado. Sua soltura ocorrerá somente sob as seguintes hipóteses: Primeira, se você começar a agir como um homem. Segunda, quando sua vida estiver completamente desperdiçada e nada puder ser feito a respeito. Você então estará liberado para ser um velho amargo e morrer. Guardas! Realizam a prisão!” O três sujeitos o agarraram pelo braço, o arrastaram para fora e lhe meteram em um camburão preto. Ele bateu a cabeça no chão e começo a sangrar. Ao olhar a sua volta percebeu estar em seu banheiro. Sentou-se no chão, com as mãos sobre o corte e sentiu que as acusações ainda lhe pesavam.