quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Fome

Há mais fome no espírito que qualquer ritual pode saciar. O ar é ruim, hostil, um peso vazio dentro de cada um. Os olhos açoitados pelas telas brilhantes multicolores, peças publicitárias e autovigilância. Um único organismo opressor, parasita de si mesmo, apodrecendo.

Há uma nova droga nas ruas que deixa os usuários catatônicos por dias. Depois eles retornam sem lembranças da viagem. Os laboratórios não sabem explicar o que é. Ouvi dizer que há uma nova religião nos subterrâneos e esse químico é utilizado em seus rituais. Os usuários continuam usando e não sabem explicar porquê.

Se você tiver o preparo certo, se estive purificado, irá se lembrar da viagem. Os não iniciados se perdem em um labirinto de estupidez e imundice mental, por isso retornam sem nenhum ganho. É preciso uma limpeza para ver o caminho se iluminar, rumo a Ante-sala da Verdade.

Um traficante me leva pelos subterrâneos até a alcova do profeta. Há dois salões; em um, dezenas meditam, no outro, dezenas esperam. Os rituais de preparo são coletivos: 5 dias. A viagem é solitária. Mais 5 dias. Nós aguardamos as instruções do profeta.

O profeta nos reúne no salão, portas trancadas e sem janelas, exceto por uma clarabóia no alto da abóbada, a sete metros do chão. Ele nos mostra os Cinco Círculos dos Excessos.

Primeiro Dia – O Círculo da Gula: nos lhe é dado um enorme banquete com carnes, frutas, pães, doces, vinho, cerveja... Nossas mãos e bocas ficam untadas de gordura e mel. Comemos por 24 horas.

Segundo Dia: O Círculo da Música: tocamos tambores, cantamos, berramos e dançamos uma música selvagem e primitiva, abastecidos apenas por água, álcool e erva. Festejamos por 24 horas.

Terceiro dia: O Círculo do Sangue e Fogo: quebramos ídolos de cera e vidro, queimamos livros santos, rasgamos nossas roupas e nos flagelamos, tingindo o chão de cinzas, cacos e sangue. Destruímos por 24 horas.

Quarto dia: O Círculo do Sexo: fornicamos como animas sobre o chão imundo, realizando todos os atos possíveis, todas as formas de satisfação reprimidas por séculos de hipocrisia e perversão. Fodemos por 24 horas.

Quinto dia: O Círculo da Privação: sentamos separados, sem falar, sem comer, sem beber e sem se mexer por todo o dia. Estamos imundos e o ar está fétido pelos excessos dos dias anteriores. Nada fazemos por 24 horas.

Ao fim dos Círculos dos Excessos, nos banhamos e somos levados ao outro salão. Recebemos vasilhames com um líquido prateado. Speculum é nome da droga que nos leva ao inicio da viagem. Estou sozinho agora.


O céu é o violeta elétrico. É como um depósito de lixo, com montanhas de carcaças e dejetos por todos os lados. Mas o que está empilhado são todas as minhas lembranças, desejos, fantasias sexuais, amores perdidos e totens da minha ganância. É um festim para a libido, orgulho e sentidos. Mãos suaves da paixão me tocam e seduzem, um inimigo desprezível se posta vulnerável, pronto para ser aniquilado. Sem o preparo devido me perderia entre esses horrores e tentações. Ignoro os ruídos da minha existência fútil e sigo o caminho que se abre diante dos meus olhos. Meus pés descalços sem ferem a cada passo, esmagando detritos.

Ao fim do caminho, uma arvore negra, quase uma sombra. Seus galhos têm espinhos e formam uma escada. Escalo, sangrando minhas mãos e meu rosto, que roça nas folhas ásperas a toda hora. A cada metro percorrido, tudo se torna mais escuro. Até que me vejo diante de uma porta.

A Ante-sala da Verdade se mostra a mim como um quarto de motel vagabundo. A tevê está ligada, fora de sintonia, os lençóis estão imundos. O papel de parede é amarelado, cheio de fungos. A luz do banheiro está acessa. Entro e observo meu reflexo no espelho.

Obedeço ao instinto, e dou um murro. O vidro trinca e meu reflexo se altera. Continua parecido comigo, mas adquire uma presença mais forte, como se houvesse crescido. Os cabelos são completamente negros e os lábios vermelho sangue. Não há olhos, apenas duas órbitas negras e vazias.

“Talvez você tenha vindo à procura de seus deuses. Pois eles não mais aqui se encontram. Estão mortos, todos eles, todos os espíritos, todos os anjos, panteões de imortais aniquilados por vocês e suas vidas mesquinhas. Até mesmo as Musas, decompostas vivas pouco a pouco, nada além de carcaças cujo fedor parece inspirá-los a produzir canções pérfidas de obediência. Só resta a mim agora, agonizando, a espera de alguns exploradores para espalhar a notícia. Vocês vêm em busca da verdade, da iluminação, da paz de espírito... quanta bobagem. De que valem as crenças, os ritos, se vocês vivem como vermes, se envenenado dia após dia em prazeres enganosos e em ódio silencioso? Os seus enormes templos de mármores, seus livros sagrados de regras, seus instintos reprimidos do despertar ao desfalecer, tudo em nome de reis, generais e bispos, pastores sádicos de um gado faminto. Fome espiritual, porque suas vidas não lhe alimentam. Entregam-se a rituais em busca de justificação e alívio. Nenhum ritual seria necessário se vivessem a vida de tal forma que seus espíritos sempre estivessem a flor da pele. Mas ele está atrofiado, enjaulado em uma existência covarde. O medo das trevas os fez ficar próximo à luz e adorar o fogo, ao invés de aprender a enxergar no escuro”.

O reflexo desaparece e o espelho se torna vazio. Desperto e observo a luz do luar entrando no salão pela clarabóia. Não tenho mais nada a dizer.