Sete e quarenta da manhã. Esqueci de desligar o despertador. Não tenho razões para acordar cedo hoje. Ontem à tarde recebi o comunicado de demissão da corporação. O motivo foi “conduta de trabalho inapropriada, baixa produtividade e falta de motivação”. Um curso de “reeducação de hábitos” foi sugerido. Não sei se o dia amanheceu limpo ou nublado, pois a vista da janela do meu quarto é bloqueada por um muro. Mas posso sentir que está muito frio. Enrolo-me no cobertor e volto a dormir.
Faço minha refeição em frente ao televisor. Assisto uma reportagem sobre uma onda de aparições sacras em diversos pontos das cidades. Santos surgem nas vidraças de arranha-céus, a Virgem Maria brota em uma gigantesca mancha química no asfalto, e o sangue de um mendigo assassinado forma os graciosos contornos de um anjo. Os especialistas dão suas explicações lógicas. Os clérigos falam em sinais. Os fiéis continuam a rezar. Mastigo minha ração e o gosto artificial não me satisfaz.
No banco do metrô escuto duas jovens conversando. Fico impressionado com a tamanha segurança que elas têm ao expor suas certezas banais, suas ambições fúteis e seu estilo de vida promíscuo. Pergunto-me se minhas idéias soam assim tão vulgares aos outros. Provavelmente não, pois eu raramente falo em público. No departamento de relações trabalhistas me informam que minha ficha foi classificada como “não-funcional” e ficará assim até que eu completo o curso de reeducação. Uma unidade de treinamento próxima a minha casa é indicada e os créditos da rescisão contratual são depositados em minha conta. Nas escadarias do prédio um pedinte é expulso por seguranças.
Caminho de volta para casa. Respiro fumaça, absorvo ruídos, cruzo com os demais humanos em suas silenciosas caminhadas rumo ao tempo perdido, sempre sob a vista das torres de vigilância. É mais seguro assim. Meu estomago dói. Não enxergo o horizonte. Sinto claustrofobia. Eu não queria viver aqui, sequer queria me formar. Tinha medo de dizer a minha mãe. Tinha medo de desistir. Procuro um espaço aberto, caminho em direção a periferia. Queria viver longe das muralhas, longe dos telefones e dos planos de carreira. Minha pressão está baixa. Sento-me sobre uma lata de lixo. Vejo um garoto correndo da policia. Ele atravessa a rua, pula uma grade e desaparece. Os policias se entreolham constrangidos. Caminho na direção do inicio da perseguição. Em um muro negro está escrito em vermelho “A vida é um crime”. No chão a lata de spray jaz abandonada. Os policias dizem que eu devo ir para casa, pois está escurecendo e ali é perigoso. Obedeço em silêncio e levo meu espírito não-funcional de volta para as avenidas principais.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário