quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Passagens de uma noite sem fim

So you can stick your little pins in that voodoo doll/ I'm very sorry, baby, doesn't look like me at all/ I'm standing by the window where the light is strong/ Ah they don't let a woman kill you/ Not in the Tower of Song” cantava Enrico na máquina de videokê do bar. O boteco não tinha músicas de Leonard Cohen, então ele cantava a letra sobre a melodia de um forró qualquer. Eu observava tudo com os olhos semicerrados de sono atrás de uma dúzia de garrafas de cerveja vazias. Os pensamentos flutuando como éter através dos versos de Tower of Song...

As pupilas se contraíram até não serem mais do que dois pontinhos negros que encaravam as luzes do corredor. O som das rodas da maca vibrava dentro da cabeça. Um curativo na clavícula quebrada. Alguma droga dançando pelo tubo do soro, penetrando nas veias, adormecendo corpo e mente. Morfina? Talvez. Sem dor, sem lucidez, só ruídos e luz branca.

O pior pesadelo que eu tive: Estava em minha cama em uma tarde de domingo, a luz do dia entrava no quarto através da persiana azul. Eu acordei com o que parecia ser alguém sussurrando uma música. Olhei para o lado da cama e vi três crianças negras sorrindo. Tentei levantar, mas não pude. No pé da cama uma mulher vestida como uma feiticeira voodoo ou algo assim ergueu o braço em minha direção e comecei a levitar até meu rosto ficar sob a palma da mão dela. Comecei a convulsionar enquanto ela gania algo que não me fazia sentido. Acordei com meus próprios grunhidos. Meus músculos estavam doloridos com as tentativas de me mexer. Paralisia do sono é como chama o lance. Tive outras vezes, mas nunca foi tão assustador.

Eu não sei a quem pertencem as pernas que me envolvem. Eu não tenho um foco preciso na iluminação doentia deste quarto abafado. Apenas o cheiro diferencia tudo de um sonho escroto, o cheiro grotesco de mofo, porra, perfume barato, suor e lubrificante, cheiro grotesco e real, asquerosamente impregnado em mim. Por fim meu corpo desfalecido, um saco de merda inerte sobre lençóis imundos. Não se atravessa a cascata de neon e retorna impune. O cheiro te persegue até o inferno.

Se você quer saber, a única coisa que me interessa em viagens lisérgicas são as bad trips. Eu não vou arriscar uma lesão cerebral pra ver coisas bonitas ou reconfortar meu ego com respostas fáceis. Eu consigo isso com TV e pornografia. Eu quero o pesadelo do confronto, uma metralhadora de verdades escarradas em minha cara, as minhas fantasias e sonhos decapitados e expostos em praça pública. Eu não quero respostas, quero mais questões. – O Manual da Iluminação Expressa, de Sebastião Vega, Grão-Orador do Sindicato dos Mendigos.

O melhor sonho que eu tive: Estava caminhando em uma cidade antiga, com ruas de paralelepípedos e prédios em estilo barroco. Era noite. As ruas estavam abarrotadas de gente andando nas duas direções. Eu comecei a me angustiar de estar ali, me sentia sufocado pelos prédios e pela multidão. Comecei a correr. Corri até chegar às muralhas da cidade. Saltei sobre ela e cai num deserto. Continue a correr, subindo por uma duna. Do céu descia um cavaleiro alado, com uma lança apontada pra mim. Saltei na direção dele e com um único golpe o derrubei do cavalo. Continuei subindo em direção ao céu estrelado, subindo cada vez mais rápido até deixar atmosfera e meu corpo se desfazer em centelhas. Nunca vi cores em um sonho iguais a que vi enquanto minhas cinzas se fundiam as estrelas.

Adormecida. O corpo quente dela contra o meu, alguns fios do cabelo perfumado grudados nos meus lábios, meu braço dolorido debaixo do seu torso. Ela desperta e puxa minha mão para envolver o seu seio. A luz fraca seduz meus olhos a se fecharem. Faz frio e só quero adormecer na calmaria. Um pouco mais dela, antes de mais uma fuga pra lugar nenhum.

No quintal da minha casa tem uma pitangueira. Era uma árvore grande, eu costumava subir nela quando criança. O cheiro das folhas ficava impregnado na minha roupa e no meu cabelo e quando eu corria aquele odor se espalhava pela casa. Ainda gosto de sentir esse cheiro. Um dia minha mãe pegou um machado e podou a pitangueira de maneira brutal, só sobrou um toco. Fiquei puto, tinha matado a minha árvore. Ela disse que ia brotar de novo, mas não me parecia possível. Mas depois de uns meses lá estavam alguns galhos novos e algumas folhas. Agora já é de novo uma pequena árvore, com algumas flores surgindo. É estranha a mudança de perspectiva, como eu cresci e ela encolheu. Pensei como seria se eu tivesse a mesma chance, me mutilar até me reduzir a quase nada e depois crescer revitalizado. Acho que seria uma ótima opção pra um momento da vida em que se olha pra frente e não se enxerga nada.

“... psicólogos, sacerdotes e outros supersticiosos que abusam de sua influência sobre as massas hipnotizadas, cometem a atrocidade de tentar enquadrar as mentes dissonantes da realidade proposta pelo poder vigente através de métodos brutais de tortura, justificados por um suposto bem estar social”, discursava Enrico no microfone do videoke quando despertei. Atrás do balcão um garçom de olhos vermelhos prestava atenção em silêncio. Já amanhecia. Não havia mais ninguém no bar além de nós três. “A verdade é que tentar controlar a mente de alguém é como tentar impedir a movimentação dos corpos celestes de uma galáxia. Uma mente não pode ser domada. Na pior das hipóteses pode ser condicionada, danificada ou destruída. Não existe cura, não existe doença, existem peças que não se encaixam no vitral imaginado por aqueles que impõem sua visão sobre as carcaças do grande gado oprimido”. Ele terminou de falar e ficou olhando pra parte alguma. O som da microfonia começou a soar pelo bar. Levantei-me e tirei o microfone da mão dele. Fui até o balcão e perguntei “Quanto a gente deve?”. Olhos vermelhos me encararam vazios de resposta.