quarta-feira, 30 de abril de 2008

Esplendor

A cegueira rege seu perdão
E as crianças conhecem o refrão
Desprezo é o veneno mais barato
Sufocado na agonia do orgasmo

Seu corpo pulsa, a parede vibra
A corporação me usa na chacina
O dia inteiro eu sinto a fúria
Convulsão no gueto e eu tenho culpa

A miséria pesa em seus braços
É sangue que tenho em meus lábios

Nunca confie na piedade
Daqueles que cuspiram em sua face
A cidade transpira em um dia quente
O odor de morte me faz doente

Toda a repulsa, toda a verdade
Está nas ruas, está na carne
Tudo perfeito, além do medo
Atrás do espelho de vidro negro

A miséria pesa em seus braços
É sangue que tenho em meus lábios

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas


“Descreva o seu tédio logo, antes que eu adormeça”, ele disse com a boca torta e seu ar pedante. Que grande idiota.

Dois anjos apareceram em um sonho e anunciaram a grande mudança. Foi com grande decepção que despertou e viu que ainda era o mesmo.

Quando ela tinha 13 anos, gostava de se vestir como uma striper e dançar na frente do espelho. Depois tirava tudo e chorava antes de dormir.

O aluno, incapaz de tocar aquela canção, se enfureceu e destruiu seu violino. Sentiu-se patético quando notou que seu fracasso ainda estava intacto.

“As mulheres preferem homens idiotas”, ele disse a si mesmo a caminho de casa. Não tinha ninguém lá quando ele chegou.

Era um bilhete suicida dos mais intensos. Descrevia minuciosamente seus conflitos, seus impasses e suas falhas. Ficou tão fadigado ao escrever que acabou desistindo de morrer.

Um amigo confiou um segredo a outro. No final não havia mais segredos ou amigos. Até eu fiquei sabendo.

Era um daqueles questionários de revista. Os sintomas de ansiedade são:

1. fadiga,
2. insônia,
3. falta de ar ou sensação de sufoco,
4. picadas nas mãos e nos pés,
5. confusão,
6. instabilidade ou sensações de desmaio,
7. dores no peito e palpitações,
8. suores, arrepios,
9. boca seca,
10. tremores incontroláveis,
11. tensão muscular,
12. necessidade urgente de defecar e urinar,
13. dificuldade em engolir,
14. sensação de nó na garganta,
15. dificuldade para relaxar,
16. dificuldade em dormir.

“Merda! Só 50%! Já foi uma grande decepção saber que eu não era autista!”.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Quimera

Gabriel está na avenida
12 notas em seu bolso
2 ligações não atendidas
E uma marca em seu pescoço
Ignorando as ameaças
E os pedidos de socorro
Começa a madrugada
E a caçada ao tesouro

Eu não espero me encontrar
Eu não espero encontrar com Deus
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

Uma caixa de cigarros
Munição para noite inteira
Abandonados ao acaso
7 casas de incerteza
Se enrosca em seu cabelo
E diz: “Aqui não é o seu lugar”
E diz qual é seu preço
Mas seu perfume é tão vulgar

Eu não vim aqui para me explicar
Eu não vim aqui para me render
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

Bolinando alguém na pista
Entre fumaça, música e couro
Ferindo o que resta da vista
Acariciando o que resta do corpo
A noite agora está acabada
Não há tempo para outro furto
Não há tempo para mais nada
Não há passado, não há futuro

Eu não preciso implorar
Eu não preciso entender
Eu só quero escutar
O que as mulheres têm a me dizer

sábado, 12 de abril de 2008

Embustes

Cruzando ruas obscuras, iluminadas pelo néon vermelho e vulgar dos prostíbulos, eu não encontro nada além de algumas horas de anestesia. Daqui algumas horas, no escuro gélido do meu quarto, o fluxo de consciência irá renascer na minha mente ébria e dúvidas cruciais mais uma vez irão me abalar. Durmo envolvido em meus próprios braços, não por falta de calor humano, mas por que assim é mais fácil ouvir meu coração bater. “Estou aqui”, eu digo a mim mesmo, e logo a sentença se torna uma questão. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito neste dia. Eu desperto e me pergunto qual meu propósito nesta vida. Nas ruas as pessoas caminham tão solitárias quanto eu, todas elas. Em cada intimo um grito desesperado sibila durante a noite, clamando por respostas que nunca virão ou pelo silêncio das perguntas impiedosas...

Eram nove da manhã de uma quinta e Enrico estava completamente bêbado. Andava bêbado e drogado quase o tempo todo desde que recebera sua herança. O auge tinha chegado cedo demais para ele. Seu problema crônico de falta de dinheiro sempre o manteve sóbrio pelo menos quatro dias por semana. Agora parecia um dandy decadente, com barriga de cerveja e olhos vermelhos. O raciocínio estava lento, e às vezes ele se tornava incomunicável. Ele tinha toda munição que precisava para seu projeto de autodestruição.

Quando eu era criança, costuma construir túneis com caixas de papelão. Colocava meu capacete de soldado, pegava minha metralhadora de plástico vermelho e fingia que estava em um bunker, enquanto o mundo lá fora era destruído por uma guerra atômica. Ficava deitado lá por horas, encarando as paredes de papelão e ouvindo os sons do meu quintal. Pensava sobre tudo lá dentro e a cada vez que deixava o abrigo sentia-me menos conectado com o mundo.

Estávamos caminhando no parque quando vimos um garoto de uns nove anos tentando enterrar outro menino bem menor, que gritava e chorava enquanto terra atingia seu rosto. Corremos em direção a eles e eu gritei: “É bom mexer com quem é pequeno, não é?” O garoto me encarou assustado, mas não se mexeu. Então Enrico começou a pular e emitir estranhos ruídos, numa imitação grotesca de um primata. Quando ele mostrou os dentes e ameaçou dar um bote, o moleque saiu correndo desesperado. Enquanto ajudava o menino menor a se levantar, percebi que ele estava tão assustado quanto eu.

A luz do Sol começa a invadir meu quarto. Sem propósitos, sem paixões, a vida é uma sucessão de imagens opacas. Pior do que fracassar é caminhar sem rumo, pior do que ser ansioso é não ter esperança. Abro a janela, observo as cores da manhã. O mundo respira sem mim. O mundo vive apesar de nós. Olho para as casas da minha vizinhança e penso nos milhares adormecidos. Quantos os sonhos serão lembrados e quantas palavras terão sentido? De que nos servem esses pensamentos se ninguém pode ouvi-los? A vida afinal, se passa aqui fora ou dentro de nossos espíritos?

Encontrei Enrico caído no boxe do banheiro, banhado pelo próprio vômito. Ele estava acordado, mas desorientado. Coloquei-o de pé e lavei o seu rosto. Ele se sentou no vaso e ficou encarando a parede. O cobri com uma toalha. “O que você está fazendo?”, perguntei com voz estridente. Ele continuou a olhar, para onde quer que ele estivesse olhando. “Não sei viver assim”, ele falou gravemente. Era obvio que os dias de desperdício de Enrico não eram uma escolha, apenas uma confusão diante da nova vida. Ele não precisava mais roubar restos de cerveja, viver de empréstimos e dormir em um quarto mofado. Ele tinha tudo e não sabia o que fazer com aquilo. “Pare de ficar chapado o tempo todo e arrume alguma coisa para fazer”, eu quis dizer, mas isso seria insensível, não é? Eu diria aquilo mais tarde.