domingo, 9 de maio de 2010

Atroz

Eu costumava observar espelhos com olhos fascistas. Era decepcionante ver reflexos que contrariavam minha percepção da realidade. A expectativa de controle sobre a vida gerava apenas frustração. Foi preciso muito tempo para apreender a contemplar o caos e ver beleza nele. Meu rosto e meu corpo sempre foram cobertos de cicatrizes, lacerações e queimaduras desde que possa me lembrar. Não sei de onde elas vieram. Sonhei inúmeras vezes em ter uma face normal, mas ao despertar, minha aparência era sempre tão hedionda quanto antes. Tentei me convencer que poderia ser julgado apenas por minhas ações, mas isso foi apenas uma ilusão. Por mais bem intencionados que fossem os olhos que se encontrassem com os meus, sempre carregavam uma faísca de piedade ou nojo.

Agora que me exibo em um show de atrocidades, me sinto muito mais tranqüilo. Você pode achar isso humilhante, mas para mim a aberração maior era tentar me adequar aos padrões que não eram meus. Me vestir em um terno e caminhar em meio a uma multidão com esperança de ser mais um. Não! Isso é que era atroz. Deixe que me enjaulem, me desnudem e me exibam. Deixe que me observem com horror e gozo, que se ajoelhem e agradeçam ao seu Deus por não padecer das mesmas chagas do que eu. Que chorem e riam. Eu posso transformar o pior de mim em uma dádiva. A atrocidade está nos olhos fascistas que me observam. Eu os recebo com deleite e me sinto livre no belo caos.

Cada cicatriz minha é um passo de distância da humanidade. E pelo que eu conheço dos homens, estou caminhando da direção certa. Piedade é a pior forma de repulsa. Prefiro inspirar o terror. E quando as cortinas caem e as luzes se apagam eu escuto o infinito desordenado de vozes e passos, e entendo que minha solidão não é pior do que as dos demais. Minhas deformações impedem qualquer embuste sobre a aberração de existir.