segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Turista

Sete e quarenta da manhã. Esqueci de desligar o despertador. Não tenho razões para acordar cedo hoje. Ontem à tarde recebi o comunicado de demissão da corporação. O motivo foi “conduta de trabalho inapropriada, baixa produtividade e falta de motivação”. Um curso de “reeducação de hábitos” foi sugerido. Não sei se o dia amanheceu limpo ou nublado, pois a vista da janela do meu quarto é bloqueada por um muro. Mas posso sentir que está muito frio. Enrolo-me no cobertor e volto a dormir.

Faço minha refeição em frente ao televisor. Assisto uma reportagem sobre uma onda de aparições sacras em diversos pontos das cidades. Santos surgem nas vidraças de arranha-céus, a Virgem Maria brota em uma gigantesca mancha química no asfalto, e o sangue de um mendigo assassinado forma os graciosos contornos de um anjo. Os especialistas dão suas explicações lógicas. Os clérigos falam em sinais. Os fiéis continuam a rezar. Mastigo minha ração e o gosto artificial não me satisfaz.

No banco do metrô escuto duas jovens conversando. Fico impressionado com a tamanha segurança que elas têm ao expor suas certezas banais, suas ambições fúteis e seu estilo de vida promíscuo. Pergunto-me se minhas idéias soam assim tão vulgares aos outros. Provavelmente não, pois eu raramente falo em público. No departamento de relações trabalhistas me informam que minha ficha foi classificada como “não-funcional” e ficará assim até que eu completo o curso de reeducação. Uma unidade de treinamento próxima a minha casa é indicada e os créditos da rescisão contratual são depositados em minha conta. Nas escadarias do prédio um pedinte é expulso por seguranças.

Caminho de volta para casa. Respiro fumaça, absorvo ruídos, cruzo com os demais humanos em suas silenciosas caminhadas rumo ao tempo perdido, sempre sob a vista das torres de vigilância. É mais seguro assim. Meu estomago dói. Não enxergo o horizonte. Sinto claustrofobia. Eu não queria viver aqui, sequer queria me formar. Tinha medo de dizer a minha mãe. Tinha medo de desistir. Procuro um espaço aberto, caminho em direção a periferia. Queria viver longe das muralhas, longe dos telefones e dos planos de carreira. Minha pressão está baixa. Sento-me sobre uma lata de lixo. Vejo um garoto correndo da policia. Ele atravessa a rua, pula uma grade e desaparece. Os policias se entreolham constrangidos. Caminho na direção do inicio da perseguição. Em um muro negro está escrito em vermelho “A vida é um crime”. No chão a lata de spray jaz abandonada. Os policias dizem que eu devo ir para casa, pois está escurecendo e ali é perigoso. Obedeço em silêncio e levo meu espírito não-funcional de volta para as avenidas principais.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Tormenta

Opacos
Os meus olhos sempre opacos
Até você surgir
E destruir minha redoma

Agora toda tarde
Toda tarde da noite
Eu quero mais uma gota
Mais um pouco em minha boca
Pouco à pouco sem escolha

Êxtase
Sinto-me sagrado
Espírito aprisionado
Um eco do nada

O meu destino
Não corresponde ao seu futuro
Embriagado de sorte
Abençoado e confuso

Agora toda noite
Toda noite suja
Eu quero um pouco mais pura
Mais calma em minha fúria
Pura maldade sua

A mentira me enerva
O meu corpo aquecido
Eu quis esta quebra
No limite do instinto

Venha ao meu lado
Efetue o seu abuso
Golpeie com firmeza
Também farei meu uso

Cuspa em meus olhos
Faça com que eu te obrigue
Brinque com meu sono
Se meu sonho te aflige

Aos meus irmãos o meu sangue
Ao meu vício os meus rins
Ao meu delírio o meu córtex
O coração fica para mim

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Confraria

O rosto de Enrico estava horrível. Nós não somos nenhum exemplo de crianças saudáveis, mas ele estava pior do que o habitual. Após passar mais de um dia desaparecido, ele me ligou às seis da manhã, sussurrando para que eu fosse buscá-lo. “Onde? Puta merda! Como você foi parar ai?”. Enrico havia sumido logo após uma consulta no dentista. Enquanto não havia ninguém na sala, ele decidiu ingerir um pouco de anestesia, que aparentemente causou um forte efeito após se misturar com as inúmeras substancias já presentes no organismo do menino. “Me lembro de sair do consultório tropeçando. Andei sei lá quanto tempo até chegar a um ponto de ônibus. Ai vinha um ônibus escrito “Liberdade” e eu acho que interpretei isso de maneira literal”. 20 horas depois ele despertou em uma lixeira nos fundos de um restaurante chinês, coberto por biscoitos da sorte estragados. Ele tinha um galo na cabeça, um pulso bem machucado e os joelhos esfolados. O que ele não tinha mais era sua carteira. “Sabe, vendo toda aquela sorte jogada fora, eu fiquei pensando na ansiedade humana de antecipar o fim. Entende?” Sim Enrico. Não se alcança a liberdade de ônibus, o nosso destino não está num pedaço de papel e muita vezes as nossas certezas não passam de lixo amanhecido.

“É impossível criar um ser humano funcional. Não importa como você crie uma criança, ele vai crescer para virar uma criatura grotesca como todos nós. Olha só para nós dois, eu e o Gabriel, por exemplo,”, disse Enrico, apontando para mim e para ele mesmo, repetidas vezes, enquanto discursava sua tese para uma amiga nossa. “Eu venho de um lar despedaçado, pai ausente, mãe cachaceira. Porra, eu passei a maior parte de minha infância em uma boate, sendo pajeado por um travesti. Olha só o que eu virei.”, ao dizer isso ele abriu os braços e sorriu forçadamente. “Mas por outro lado, nosso colega aqui. Família estruturada, pai e mãe carinhosos, irmã e primos companheiros, tios, tias, avôs... escola, brinquedos, cachorrinhos... e olha só pra ele! Ele é tão paranóico, depressivo e socialmente inapto quanto eu! Não tem jeito, você sempre vai foder com a cabeça da criança, não importa como você a eduque.” Enrico olhou para mim em busca de apoio e eu respondi com um gesto afirmativo. A nossa amiga olhou alternadamente para mim e para ele antes de declarar: “Ah, vocês estragam tudo...”. Cinco minutos antes, ela estava alegremente falando pelos cotovelos sobre o fato de sua irmã estar grávida. Ao ver a expressão levemente angustiada no rosto da garota, Enrico sorriu triunfalmente.

“Qual é o seu signo?”, me perguntou um cego no metrô.
“Touro’, eu respondi. “E do seu amigo?”, ele indagou ao mesmo tempo que acertava Enrico com uma bengalada na perna, enquanto o mesmo se pendurava na barra de apoio do vagão. “Ele é de escorpião”, eu respondi. “Bom, uma boa dupla”, afirmou o velho, fitando fixamente o infinito com seus olhos vazios. “Você é um criador, e ele um destruidor. Mas não no mau sentido. No sentido de derrubar velhas estruturas, jogar fora o que não presta”. “É, ele é meio iconoclasta...”, eu disse, enquanto tentava me desviar de Enrico, que estava em meio a uma perigosa acrobacia. Ele ficou de cabeça para baixo, com as pernas presas na barra, observando o cego. Após alguns segundos, ele perguntou. “Você acredita que os astros influenciam nossas personalidades?”. O velho balançou a cabeça. “Os astros não influenciam nada, eles apenas contam uma história. Se você olhar bem no fundo do universo, à distância de 13 bilhões de anos luz, você vai ver o inicio de tudo. Em algum lugar está também o fim. É uma questão de observar da maneira correta”. Enrico, a essa altura extremamente vermelho pela pressão sangüínea em sua cabeça , questionou mais uma vez. “Quer dizer que não importa o que eu faça, tudo já está definido?”. O velho tornou a balançar a cabeça. “Não garoto. Você já fez. Tudo já está feito”. Quando descemos do metrô, Enrico parecia extremamente tonto, e eu não acho que foi por causa de suas acrobacias.

Uma vez fomos expulsos de um puteiro e eu me lembro de berrar para um segurança: “O fato de eu ser um merda não te dá o direito de me tratar como um!”, Foi uma frase extremamente difícil de elaborar no estado etílico que eu me encontrava, mas pareceu causar algum efeito no sujeito, ainda que fosse cômico. Alguns meses depois eu repeti, de maneira patética, a frase para uma garota que me deu um fora. Lá estava, a mesma expressão confusa, uma mistura de piedade com vontade de rir. Talvez a minha intenção fosse demonstrar sofrimento através de uma piada. Mas quando Enrico pixou essa sentença no outdoor do candidato a prefeito do partido da situação de nossa cidade, assim como sempre, ele elevou o efeito de minha criação a um novo nível.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Abstinência

Lábios secos, lábios feridos. Minha boca é uma chaga aberta, uma rosa pálida e esquecida. Meu peito pesado, meu ego corrompido. Meu corpo entregue a espasmos enquanto o vento sussurra, zombando do meu delírio. Lembranças, lembranças, tortura... oh, o gosto era doce. Nem mesmo o fedor do meu hálito, o quarto tomado por meu suor, nada é capaz de afastar o perfume. Minha fúria demolida, o que sobrou? Refém de carícias, refém de mazelas, eu ainda estou preso ao deleite do seu sabor. Me arrasto pelas trevas, busco por migalhas, imploro por perdão.

Um sentimento estreito,

Os meus lábios contra o chão
Exilado em meu leito

Derramo lágrimas no colchão
Ensaio um pedido de desculpas
Mas minha verdade soa débil
É, eu sei... eu sei....

Observo a luz do horizonte, escuto a cidade se lamentar em dor. Eu não sou ninguém, eu sou o todo, eu sou o corpo que se contorce em transe. O quebrar de mil sonhos, um grito de socorro. O pranto estrangulado, o Sol incapaz de esperar o fim da noite. Minha boca está seca como as flores mortas sobre a televisão.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Darma

Comecei a manhã perseguindo um delírio
Agora a loucura vã tem mais um capítulo
Olho o meu reflexo e sinto repulsa
Nada tem nexo, nada disso tem cura

Minha mente errante busca o mesmo caminho
E assim como antes, me sinto sozinho
O Sol se ergue e me atraí como nunca
Ninguém me persegue e esse é o motivo da fuga

O céu rubro anuncia uma noite desfeita
Um nome ressoa na minha cabeça
Ouço com atenção o sibilar do vento
Abençoar corações fartos de desespero

Atrás de respostas, atrás de repouso
Nada importa agora quando tudo é tão pouco
A luz do inverno desperta meu mundo
Nunca estive tão perto do meu próprio absurdo

Revejo as mentiras até a fantasia morrer
Uma coleção de feridas com que me adornei
No transcorrer da tormenta apenas a dor é real
E ao encontrar os seus olhos eu vejo todo o meu mal

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Procrastinações

Há cerca de três meses, Gabriel Gabay sofreu uma crise gastrointestinal que o levou a ser hospitalizado. Após um dia de vômitos e diarréia, ele chegou ao pronto-socorro em um estado moderado de desidratação. Enquanto recebia soro e medicação, pediu a enfermeira um pedaço de papel e uma caneta. Após algumas horas, ele foi liberado. Uma faxineira encontrou debaixo de uma maca o papel esquecido pelo paciente. Nele se encontrava a seguinte lista:

Coisas a se resolver nesta encarnação (ou até quinta-feira, se possível)

1° - Romper os laços maternais e crescer. Deixar de ser um bebê castrado e preguiçoso. Pagar minhas próprias contas, correr atrás dos meus sonhos, viver sem correntes. Abandonar o conforto da jaula. Liberdade vem do sofrimento.

2° - Não ser um hipócrita. Parar de comer carne e tudo que venha de animais. Não comprar nada que venha de grandes corporações e multinacionais. Não utilizar meios de transporte poluentes. Não precisar de instituições públicas para nada. Ser anarquista em um nível pessoal e responsável.

3° - Limpar meu quarto. Cheiro desagradável, insetos mortos pelo chão, poeira entre os teclados. Violão e guitarras também precisam de atenção. Trocar roupa de cama e colar mais pôsteres nas paredes. Paredes brancas são paredes mortas.

4° - Não jogar a responsabilidade pela minha felicidade em outras pessoas. Não esperar por um messias, por um amor perfeito, por um anjo salvador. Buscar a paz mental através da auto-compreensão e não pelo êxtase efêmero. O gozo é o nirvana dos tolos.

5° - Aprender a tocar violoncelo.

6° - Ser emocionalmente estável para evitar o risco de uma vida pouco prática, obsessões psicóticas e pensamentos suicidas. O padrão ansiedade – depressão – ansiedade - euforia é desgastante demais. Adolescência já arruinada, evitar que isso se repita no futuro.

7° - Ter um gato chamado Lúcifer. A cor do pêlo não é importante.

8° - Contribuir socialmente de uma forma positiva para a raça humana. Não sei como. Talvez escrevendo um livro, uma matéria, pixando uma mensagem em um muro. Morrer sem ter a vergonha de ter sido um branco de classe média que não fez nada por ninguém, viveu uma vida mesquinha e ensinou aos seus filhos valores obscenos como a ganância, a ostentação e a indiferença. Foda-se a lei do mais forte. Se a selvageria é a solução, ao menos dissolvam a constituição e liberem a chacina de qualquer hipocrisia.

9° - Escrever um poema de amor que não seja brega, mentiroso ou que cause ânsia de vômitos, e efetivamente mostrá-lo para a pessoa que o inspirou, ao invés de guardá-lo na gaveta.

10° - Ter uma casa no campo após a velhice. Ela deverá ter um grande pomar, um jardim para os meus netos brincarem, uma mangueira com um balanço (mangueiras são arvores grandes e fortes, boas para um balanço), dois ou três cachorros, uma varanda onde meus gatos possam dormir e eu possa passar as tardes tocando violão, bebendo cachaça e fumando haxixe.