quinta-feira, 10 de julho de 2008

Samsara

“Quando foi que as expectativas ficaram tão baixas?”, eu perguntei, acariciando a areia morna. “São ciclos, Gabriel, ciclos”, me respondeu Enrico, enquanto cavava. “No momento, após uma grande seqüência de fracassos, nós estamos num ponto bem baixo. Mas logo, teremos novas coisas em vista no horizonte, novos anseios, entende? Então, a porra da roda gigante da vida começará a girar, e nós voltaremos a estar no topo e... voltaremos a descer miseravelmente. Bom, mas pelo menos vamos nos divertir no caminho”. Tomei um gole da mistura quente de pinga com guaraná e meditei sobre aquelas palavras, sem dar muita atenção à areia que invariavelmente me atingia. “Pronto”, suspirou Enrico. “Me dá o gato”. Levantei-me e peguei o pequeno cadáver. O coloquei dentro da cova e Enrico o cobriu. Era tarde da noite, estávamos perto da luz de uma fogueira onde um bando de hippies se reunia. O som do violão fazia parte agora de nossos ritos fúnebres. Enrico colocou uma grande pedra sobre a cova, limpou a garganta e começou o discurso. “Diarréia. Você veio ao nosso acampamento como um gato cinza, sarnento e doentio. Vi em seus olhos sujos um pedido de piedade. Nós lhe demos água, comida e atenção. Aí você vomitou no chinelo de Gabriel, o que alegrou muito o nosso dia. E foi assim que você ganhou o seu nome, Diarréia. Quando retornamos da praia, você estava morto”. Tomei mais um gole e passei a garrafa plástica para o nosso orador. “Acredito que você tenha sido um bom gato e tenha aproveitado bem a sua vida livre e simples aqui na praia. Subindo em árvores, fugindo de cães, sendo alimentado por turistas e pescadores... essas coisas de gato. Você poderia ter sido um animal gordo, mimado e castrado da cidade, mas teve o destino de viver como um selvagem, como seus ancestrais e eu te saúdo por isso. A você Diarréia!”, brindou Enrico. Aquilo me pareceu apropriado. “Fale alguma coisa você, vocês tinham uma relação estreita”, me pediu Enrico. Sem questionar comecei. “Diarréia... nós podíamos ser de espécies diferentes, mas nós tínhamos muito mais em comum do que parecia. Você, assim como a areia que te envolve, a pedra de sua tumba, o mar e todos nós que aqui vivemos, somos todos parte do mesmo todo...” Eu sentia minha boca ficar mais mole a cada palavra que eu dizia e a cada gole que eu tomava. Não me responsabilizo por mais nada que vem a seguir. “No inicio dos tempos, toda a matéria prima do universo estava condensada em um único átomo, que se expandiu sem parar, criando o cosmos como hoje ele é. Tudo que existe, portanto, está ligado quimicamente, pois todos nós fomos um só na origem. Somos feitos do mesmo pó que formou as estrelas, planetas e coisas infinitamente maiores do que eu e você...”, parei para tomar fôlego e notei que Enrico fitava gravemente o oceano. “Nós, animais estúpidos desta terra, não percebemos a singularidade de nossa existência, essa nossa ligação. Estamos cegos por nossas vaidades, nossa ganância e nosso orgulho. Buscamos respostas nos lugares errados e só damos continuidade a um ciclo interminável de miséria. Você também nunca percebeu isso, pois sempre foi um escravo da própria fome, e sua única preocupação era se manter vivo por mais um dia. Eu não sou diferente. A minha vida inteira persegui bobagens, pistas falsas e caminhos enganosos que me afastaram do que realmente é importante. Eu vivo frustrado, assim como você vivia faminto, pois nada é capaz de satisfazer, nada disso...”, nesse momento noto que o violão silenciou e alguns hippies escutam com atenção o meu discurso. “... nada pode nos fazer sentir menos sós, pois somos apenas fragmentos daquele átomo primordial, eternamente separados após a grande explosão. Só quando entendermos que nossa individualidade é uma mera ilusão, que nossa cobiça leva apenas a um ciclo interminável de fracassos, decepções e angustias, é que poderemos ver com clareza, juntar as peças de desse enorme quebra-cabeça e novamente voltar a ser um apenas”. Terminei de falar e senti uma leve tontura. A praia parecia tomada por uma névoa e minha cabeça parecia dominada por um zumbido. “Nossa cara, que viagem!”, disse um dos hippies, e os outros concordaram e iniciaram uma discussão filosófica sobre energias cósmicas e místicas. Eu não tinha tentado ser profundo ou profético, eu era apenas um bêbado sensibilizado pela morte de um gato vadio. Além disso, tinha visto recentemente um documentário sobre o Big Bang que tinha me deixado um pouco impressionado. Enrico acenou com a garrafa, olhou para as estrelas e gargalhou. Olhei para a tumba de Diarréia e depois para os meus pés. Conclui que toda vez que olhasse para um par de chinelos, iria sorrir e lembrar dele.

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