sexta-feira, 5 de junho de 2009

“Cada palavra carregando uma gota de seu sangue...”

Dentre as minhas referências nas artes e na cultura pop em geral, sempre tive uma predileção pelo tenebroso e patético mundo dos mártires do rock. Eu nunca dei a mínima para os rockstars milionários, poderosos e belos posando de fodões em capas de revistas. Pau no cu do Jimmi Page e sua Gibbson de dois braços, eu quero saber dos heróis malditos e atormentados, aqueles que levaram a vida e a arte ao extremo e pagaram o preço. Seja no colapso de Ian Curtis, no suplício de Kurt Cobain, ou no definhamento mental de Syd Barret, são os frágeis que me parecem as criaturas mais reais. Aos frágeis, a vida é mais intensa, por isso cabe a eles serem os porta-vozes de toda a ladainha sem sentido da experiência humana. Mas isso é um grande fardo, e como eu disse, eles são frágeis.

Em todos os exemplos citados, vimos jovens homens, tímidos e inconformados, devolverem ao mundo toda a sua angústia e fúria, deixando uma multidão aos seus pés, apenas para serem derrotados pelos seus próprios demônios. O que era para ser um ritual de exorcismo se tornou a celebração de todos os aspectos negativos do espírito humano. Todo horror que nos era incomodo era projetados sobre esses homens, os nossos xamãs, os messias da mediocridade. O fardo era todo deles, afinal pra isso servem os heróis. Nós tiramos tudo deles, não demos nada em troca, a não ser um débil olhar de fascínio e adoração, e quando eles se esgotaram, nós lamentamos, “Oh, tão jovens, que desperdício de talento...”

Mas sobre a pilha de carcaças dos heróis tombados, caminha um ser decrépito e deformado, que sobrevive de maneira improvável, como uma barata hedionda em solo radioativo: Iggy Pop vive, apesar de tudo, apesar de si mesmo. Ouvindo as faixas de seu novo álbum, chego à aterradora conclusão de que toda aflição que eu julgava ser dona apenas do coração de um jovem, permanece ali, corrosiva e pulsante como sempre, no peito de um senhor de 62 anos.

Quando Iggy surgiu, junto com os Stooges, no final dos anos 60, ele era o sinônimo máximo da depravação do rock. Seu ato explosivo no palco, aditivado pela parede sonora dos seus patetas, era um espetáculo sem precedentes de mutilação, cólera e perversidade. No quesito catalisador de tragédias, ele foi o melhor. Ninguém como ele, encarnou a faceta mais suja e desesperada do ser humano. Ninguém sofreu tanto em pró do nosso gozo quanto esse sujeito de um metro e sessenta e nove do Michigan. Mas por trás de toda aquela carnificina, acreditem ou não, havia um homem, atormentado pelas mais profundas questões existências e pelas mais piegas fantasias românticas. Mais impactante do que as dilacerações auto-infligidas, as overdoses e toda a escatologia, é notar a melancolia e o desespero nos olhos de Iggy em algumas fotos daquela época. O homem estava literalmente se despedaçando em público.

Após anos de loucura, o Iguana se cansou, largou das drogas mais pesadas e nos presenteou com uma seqüência de álbuns inossos. Sem se importar com sua integridade artística, o “Padrinho do Punk” assumiu a caricatura de roqueiro doidão, mesmo com sua música soando como o mais meloso exemplo de pop sintético. G.G Allin, o mais atroz de seus discípulos, o chamou de traidor. Eu não, eu entendo completamente a decisão do meu herói. Ninguém deu a mínima pra ele enquanto ele se contorcia desesperadamente sobre cacos de vidro. Ninguém lhe deu valor quando ele nos deu obras escritas em sangue, arrancando toda a sua inspiração de suas entranhas em busca de alívio e de uma arte que fosse significativa. Ele percebeu que estava esgotado, que iria enlouquecer ou morrer vivendo naquele ritmo, e que a humanidade não valia o seu sacrifício.

A mediocridade criativa de Iggy entre os anos oitenta e noventa reflete a mediocridade espiritual típica da meia idade, que a maioria dos jovens tanto teme. Você sabe, acabar como seu velho pai, sentando no sofá com seus olhos cansados e cheios de amargura, fadigado demais pelas decepções da vida para fazer algo mais do que resmungar. Mas a lição que pode ser tirada disso, é que o inconformismo diante do absurdo da vida pode ser silenciado, mas nunca apagado, não no coração de um verdadeiro rebelde. Enquanto Iggy recuperava suas forças, Allin se juntava a cova coletiva dos selvagens, morrendo de overdose de heroína, untado em merda e sangue.

Lentamente, o ímpeto começava a se reacender. Os álbuns se tornavam mais vivos, as canções mais reais. Em 2003, os Stooges se reuniam. Tive a chance de ver um show deles dois anos depois, e acreditava que veria um Iggy mais comportado. “O CARALHO!” Foi o que ele me respondeu, com uma hora de contorcionismos grotescos, uivos primitivos e pancadarias com seguranças. O Iguana está vivo e louco como nunca! Aprendam seus covardes que morreram cedo! Queimar de uma vez para não se apagar os poucos? Acham isso foda? Experimentem queimar, apagar e depois se acender de novo como essa pira funerária ambulante na minha frente! Após o show, eu me senti violado e extasiado. Eu estava surdo de um ouvido, com câimbra nas duas pernas e louco por mais. Os shows seguintes do festival não passaram de borrões. Iggy não deu a mínima pra ninguém.

Agora, com uma cópia de “Preliminaires” nas mãos, eu percebo que o romper da crisálida está completo. Iggy está nu, exposto com ele realmente é: um homem de sessenta e poucos, atormentado e fascinado pela idéia de morrer em breve. “Toda ato em minha vida, na idade em que eu me encontro, é uma preliminar para a morte”, disse o artista em uma entrevista, explicando que o titulo do álbum não tinha uma conotação apenas sexual. A fúria das guitarras foi trocado por arranjos bem trabalhados de jazz e bossa nova, mas o espírito dos velhos tempos está mais acesso do que nunca. Solidão, tesão, orgulho de macho ferido, apatia diante da existência... tudo aquilo que me afeta agora, aos 22 anos, ainda está lá, na cabeça experiente do senhor James Osterberg. Como acreditar em redenção e paz de espírito agora?

Após anos de produção de lixo pop em escala industrial, Iggy volta a criar arte, como ela deve ser feita, através da dor, cada palavra carregando uma gota de seu sangue. Não há certezas, nem respostas, mas assim é a vida, um punhado de momentos que não fazem sentido algum em seu todo, mas sim em suas singularidades. Por último, mais uma obsessão de Iggy Pop retorna neste álbum, mas de forma revisitada: A palavra cão. “Não sei o que é com essa palavra, acho que tem a ver com mulheres dominadoras...”, revelou o cantor em uma entrevista nos inicio dos anos oitenta.

Entre as inúmeras obras que fazem referencia aos caninos, a clássica ”I Wanna Be Your Dog” é o exemplo mais elucidativo. Não é sobre um homem subserviente, como pode parecer. Ao contrario, é sobre ser insolente diante de uma autoridade, é um conto sobre o sacrifício da carne em favor de um espírito indomável. Quarenta anos depois, Iggy lê um livro chamado “A possibilidade de uma ilha” e fica pirado. O deslumbre é tanto que ele recita no álbum um trecho da obra de Michel Houellebecq na música “A Machine for Loving”. O cachorro é a dita maquina de amar, “você apresenta ele a qualquer ser humano e ele irá amar esta pessoa, não importa quão má, perversa, deformada e estúpida ela seja”, sussurra o cantor com sua voz rouca.

Isso deve ter um impacto revelador nele, assim como teve em mim. É isso que somos no fim das contas, vira-latas que abanam o rabo e seguem qualquer um que lhes de atenção, nos conduzindo a uma série de experiências humilhantes e dolorosas. Mas é com a dor que aprendemos e é com a dor que criamos. Aprendi isso graças aos meus heróis caídos e a esse bravo iguana que ainda resiste.