quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Estigmas

Nossa busca espiritual recomeçou às oito da noite de uma sexta-feira. De boteco em boteco, de puteiro em puteiro, mulheres nas esquinas, mulheres na pista, “Ei mano, vai casar com esse baseado? Passa a bola, porra!”. Em algum momento Enrico perguntou “Já viu Deus agora?”, “Não, ainda não.”, “Então bebe mais, seu merda!”. Eu bebi, mas Deus não apareceu naquela noite.

Eu sempre tive uma obsessão por anjos. Quando eu era criança ficava olhando os vitrais da cúpula da igreja do meu bairro e ficava fascinado com um em particular, que mostrava um anjo segurando o braço de Abraão, impedindo que ele sacrificasse o filho. Sonhei inúmeras vezes com anjos, li sobre o assunto e continuei acreditando neles por um certo tempo, mesmo depois de parar de crer em Deus, sei lá porquê. O que eles representam para mim afinal? Por que eu continuo procurando por anjos nos lugares mais sórdidos?

“Budismo é a religião mais inteligente que existe”, eu afirmei, deitado na mesa de sinuca. “Justifique-se”, ordenou Enrico, sentado no chão. “Pois não. O budismo, e eu me refiro ao pensamento original de Buda, não as formas como ele é praticado hoje em dia, que não passam de distorções e fusões com outras religiões, é a religião mais inteligente por que nela não existe Deus”. Enrico ficou em silêncio reflexivo por alguns segundos. “É um bom ponto. Você tem mais algum?”. “Sim senhor. Um aspecto do budismo que me agrada é que ele prega a iluminação espiritual através do questionamento e do auto-conhecimento. É exatamente o oposto das religiões monoteístas, que pregam a subserviência. A posição básica do catolicismo é ficar de joelhos, por exemplo. Outra coisa, na cultura grega, Prometeu é o herói da humanidade, aquele que trouxe luz e o conhecimento para todos. Sabe quem corresponde a ele no Cristianismo? Lúcifer. E o que ele é considerado? Um arrogante desgraçado que questionou Deus e quer foder com todo mundo...”. Eu poderia ter continuado por horas, mas o dono do bar apareceu: “Já tá fechando aqui. Vão blasfemar em outro lugar.”

Nós estávamos deitados na grama, no alto de um morro, a beira da Via Anchieta. O velho Chevette tinha ficado alguns quilômetros para trás no acostamento, com a bateria arriada. Obviamente nós estávamos bêbados, por isso largamos o carro, temendo ser novas vítimas da lei seca. “Eu sinto pena desses otários que procuram uma buceta ou um caralho por aí que vai redimi-los de toda a miséria que ele sentem, de todo esse lixo que eles acolhem. Então o objetivo da vida é esse? Um prêmio de consolação?”, praguejou Enrico. “O que é o paraíso afinal?”. “Eu não sei, nunca pensei muito sobre ele”, eu respondi. “Quando eu tinha uns nove anos e fazia catecismo só tinha medo do inferno”. Enrico concordou com um gesto. “É isso que eles nos ensinam, a ter medo da derrota, da humilhação, de ser um fudido. É pra ninguém ter coragem de correr riscos, questionar esse padrão escroto de vida. O paraíso é só uma promessa, mas o inferno...”. Do outro lado da pista o Sol começava a nascer. Então eu falei: “O lance da vida é se jogar de cabeça e aproveitar a brisa da queda. As pessoas ficam na beira do abismo, se perguntando se devem pular ou não. Elas deveriam se perguntar o que é que as prende ao chão”. Não tenho certeza do quis dizer.

Um comentário:

Luciano Costa disse...

MITO.

"Há pouco tempo vi uma casa. Queimava. A chama
Lambia o telhado. Aproximei-me e notei
Que ainda havia pessoas dentro. Cheguei à porta e gritei-lhes
Que o telhado estava em fogo, incitando-as assim
A sair rapidamente. Mas as pessoas
Pareciam não ter pressa. Uma delas me perguntou
Enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha
Se não soprava o vento, se não havia uma outra casa
E coisas assim. Sem responder
Afastei-me novamente. Estes, pensei
Têm que queimar, até parar de fazer perguntas. Em verdade, amigos
Àquele que ainda não sente o chão bastante quente
Para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar, a este
Nada tenho a dizer. Assim fez Gautama, o Buda.
Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar
Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando
Sugestões várias de natureza terrena, e aos homens ensinando
A desvencilhar-se dos tormentadores humanos, achamos que àqueles que
À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam
tempo a perguntar
Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo
E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma
reviravolta
Nada temos a dizer."

BERTOLT BRECHT - PARÁBOLA DE BUDA SOBRE A CASA EM CHAMAS