sábado, 9 de fevereiro de 2008

Arena de Asfalto

Enrico Roccato, 2:12 AM – São Paulo

Selvageria pura e crua, sem influências socioeconômicas, étnicas ou religiosas. Violência primitiva, sexual, instintiva. Enrico relata sua experiência e de maneira precisa descreve como a condição humana, supostamente evoluída e racional, ainda é refém de urgências subconscientes, oriundas dos estágios primários da evolução.


Olhei para o espelho. Cravei meus olhos no olhar ensandecido, nos lábios sangrentos, nos cortes na testa, no meu olho roxo, nos cabelos desgrenhados, naquele rosto arruinado... Sorri. Sabe o que eu penso sobre cicatrizes? São a glorificação máxima da estupidez masculina. Nós temos toda essa violência contida dentro de nós, um instinto assassino que não se apagou totalmente após milênios de evolução. Quando podemos externar isso, batendo ou apanhando, uma descarga química prazeroso ocorre em nosso cérebro, a libido sobe a níveis incontroláveis, e nossos traumas infantis de dominação feminina são subjugados. Pois nós nunca deixamos de querer ser machos dominantes, violentos e estupradores. Todos os demais comportamentos são hipócritas.

Tinha um bando de idiotas na frente de um boteco sujo. Eu deveria ter subido a Augusta, mas acabei descendo, não imagino por que. Tinha uma garota com esses caras, eles eram uns seis, talvez mais, não posso afirmar, para mim não passavam de vultos. Mas eu me lembro da garota, ela era bem bonita Nada de espetacular, esteticamente falando, mas tinha um certo charme, cabelos lisos avermelhados, pele bem pálida, olhos verdes, um belo decote. Comecei a falar com ela, mas não posso sequer imaginar sobre o que. Pelo que eu me lembre, eu não tinha muito controle sobre minha língua e minha garganta. Não conseguia tirar os olhos do decote, a pele parecia ser tão macia, tão sujeita a um toque... Ela não gostou muito da minha conversa, me empurrou e começou a se afastar. Bom, foi ai que eu fiz o movimento errado, e toquei aquilo que eu queria. Não sei dizer se eles eram punks, skinheads ou garis. Questões ideológicas perdem qualquer sentido, quando um macho toca a fêmea de outro bando. O instinto vem primeiro. Eles gritaram alguma coisa antes de um deles me acertar um murro na cara. Cai instantaneamente, e acho que isso os surpreendeu, pois eles me cercaram e hesitaram. Era o que eu precisava para enterrar meu coturno nas genitais de um deles, que recuou guinchando. Não foi uma coisa esperta de se fazer, eu soube na hora. Comecei a ser chutado por todos os lados. Nas costelas e nas coxas principalmente. Não faço idéia por quanto tempo durou essa tentativa de linchamento. Uma garota começou a gritar e uma sirene salvadora soou pela Augusta. A matilha de assassinos se desfez e meus olhos se abriram. Sangue, cerveja e vomito na sarjeta. Nada mais confortável que um clichê.

Gelo contra meu olho inchado. Minha cabeça latejava, minhas costelas gritavam enfurecidas e minhas pernas não funcionavam direito. A menina que tinha gritado durante meu espancamento me ajudou a entrar no bar. “Seu rosto está horrível”, eu a ouvi dizer, através de um túnel metálico de dor e confusão. Tentei mirar no que possivelmente era o rosto dela a minha frente. “Jura? Logo hoje? Eu esperava ganhar uma grana fazendo ponto, mas aqueles viados velhos só me querem pelo meu rostinho angelical”. Foi então que senti uma enorme tontura e o foco do meu olho bom retornou. Surgiu em minha frente uma moça morena. Ela tinha aquela expressão que todas as mulheres fazem quando um cara não leva a sério algo que supostamente deveria. Olhos cerrados, testa franzida, boca torta... algo meio maternal.
“O que você fez pra eles te baterem?”, ela perguntou impaciente. “Foi marcação de território, a velha história, entende?”. Não, ela não entendeu. Ela não era mais bonita do que a outra garota, mas me parecia muito mais atraente. Os olhos delas eram inteligentes, havia firmeza em sua voz, mas tinha um desalento escondido por trás daquilo tudo. A garota dos sonhos de Gabriel. Pena que ele não estava ali para desperdiçá-la. “Você quer que eu chame uma ambulância?”, ela quis saber. Neguei com a cabeça, o que foi uma idiotice, pos qualquer movimento era doloroso. “Não, ficar por horas na fila de um PS não iria me ajudar muito, mas valeu”. Ela finalmente pareceu concordar comigo. Comecei a me lembrar do carro, de Jorge, provavelmente me esperando no portão da minha casa. Ele diria algo como, “Você não tem jeito, vai acabar preso ou se matando, o que Susana ia pensar?”, essas coisas que meu pai nunca disse. Pobre Jorge. “Eu preciso cair fora”, eu anunciei. “Tem gente esperando por mim”. Ela me olhou perplexa. “Como você vai sair daqui desse jeito?”. Pensei numa boa mentira. “Meus amigos estão de carro, tão num bar aqui perto... eu tava indo pra lá. Não esquenta”. Levantei-me e fui pro banheiro. Então vi com orgulho meu rosto de sobrevivente, o olhar glorioso do derrotado que despertou vivo em sua trincheira. Quando sai de lá, a garota tinha sumido. Normal, ela fez mais do que deveria. Espera... qual era o nome dela mesmo?

O elemento seguiu mancando de volta para o carro. Seu ímpeto de se encontrar com o amigo havia passado. Dessa vez, não houve nenhum confronto ou discussão com os demais freqüentadores de bares ou casas noturnas das proximidades, apenas olhares curiosos e perplexos diante do estado lamentável de Enrico. De índole narcisista e exibicionista nato, nada daquilo o incomodou. Jamais chegou a se lembrar do nome da garota.