sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Desarranjo

Quando a Moça despertou seu mundo era ordenado, subordinado a preocupações cotidianas, rituais inconscientes e gestos medidos. Desvencilhou-se dos últimos pensamentos desconexos de seus sonhos, abraçou a luz do quarto como uma porta para a realidade, conferiu no espelho se seu rosto ainda estava lá, ingeriu sua dose matinal de cafeína, projetou mentalmente o seu dia e observou as horas ao menos seis vezes antes de sair. Ao abrir a porta de sua casa se deparou diante de um estranho objeto, um erro de padrão, um elemento caótico na rotina que julgava previamente equacionada. Um buquê de rosas, deitado de maneira quase obscena no corredor. Esse imprevisto provocou uma breve supressão da respiração e um lapso na sua presente linha de raciocínio. Apanhou as flores e notou que havia um cartão. Talvez fosse a chance de esclarecer e reordenar toda a situação, mas o que ela leu naquele pedaço de papel foi: “Ele mandou flores. O que você vai fazer a respeito?”. Aquilo não estava certo... Ela releu a mensagem inúmeras vezes para confirmar que não havia equívocos. Mas não, estava sempre lá, a escrita impiedosa que arruinou seu compasso e implodiu seus domínios. Havia inúmeras questões dentro daquela única interrogação. Talvez fosse pertinente saber quem havia mandando aquelas rosas, mas não era nisso em que a Moça pensava, embora não soubesse por que. Foi como se toda sua estrutura interna, seus valores e seu senso de realidade tivessem sido despedaçados por aquele ato singular. Suas idéias íntimas estavam completamente expostas e ela percebeu quão frágil elas eram. A sua manhã opaca havia sido tingida de vermelho e sua busca por tranqüilidade e paz mental havia sido ridiculamente arrasada. Tudo o que ela tinha agora eram questões sem respostas. Decifrar aquele enigma seria decifrar a si mesma, e isso seria uma tarefa penosa, torturante e nada prática. Mas agora era tarde, o trem havia descarrilado, suas emoções aflorado e seu mundo não era mais ordenado. Era sinuoso, pulsante e sublime. Era o sorriso em seu rosto, o mistério em seu olhar e o universo que se rearranjava ao seu redor.

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