domingo, 18 de agosto de 2013

Koans do Inferno

O Lagarto
Enrico, Sofia e Gabriel caminhavam sobre os escombros do que um dia havia sido uma casa. Enrico acusava Sofia de ser incoerente por acreditar em astrologia e ser ateia. “Você refuta a existência de uma força motriz invisível, mas é exatamente isso que você atribui às estrelas. É ridículo”. Sofia não concordava com a comparação e dizia que eram coisas diferentes. Gabriel, que errava confusamente sobre ladrilhos quebrados e telhas partidas, se voltou ao casal e disse “Uma vez, quando eu tinha oito anos, corria por uma trilha no meio do mato para ir jogar bola. Essa trilha partia de um terreno baldio, cruzava o trilho do trem e terminava no campo de futebol. Eu estava de cabeça baixa, correndo o mais rápido que podia, quando um lagarto comprido cruzou o meu caminho. Ele parou, olhou para mim, voltou a correr e desapareceu no mato. Eu me assustei e parei. Nesse exato momento, o trem passou. Até então, eu não tinha ouvido nada e não o teria visto se não fosse o lagarto”. Ele terminou de contar a lembrança e voltou a caminhar sem rumo pelos entulhos. Enrico riu e perguntou a Sofia: “Então, o lagarto foi uma manifestação divina, um ato escrito nas estrelas ou apenas ouviu o trem antes, se assustou e na fuga, sem querer, alertou Gabriel?”. Sofia mordeu os lábios. “Sei lá”.
 
“O lagarto era Deus. Se não houvesse lagarto, Deus seria o trem”.

Prisioneiros e Fantoches
Na boate de Enrico, havia um cliente habitual que sempre subia com a mesma garota. Ele acabou se apaixonando por ela e ela parecia corresponder, embora não fosse possível ter certeza. Após um tempo de certa felicidade, ele começou a ser tomado por uma grande angústia. Inseguro, começou a exigir que ela não se deitasse com mais ninguém. Ela prontamente recusou, afirmando que aquela era a vida e o trabalho dela. Se sentindo humilhado e abandonado, o homem decidiu curar seu ego através do desprezo, recuperando assim seu senso de superioridade. Levou um amigo à boate, disse pra garota que ia pagar para ela trepar com o sujeito e que iria se divertir assistindo. A moça chorou, deu as costas e nunca mais o atendeu. Ele não foi capaz de entender.

“Ser soberano sobre a vontade alheia é um anseio comum a tolos e tiranos”

Sossego
Enrico tomava café com sua mãe, queixando-se sobre as dificuldades de se relacionar com Sofia. “Eu não entendo. Às vezes ela reclama que eu sou distante, indiferente. Então eu tento me aproximar e ela começa dizer que se sente sufocada. Eu brigo e ela diz que sou ciumento, eu fico na minha e ela diz que eu não me importo. Que diabos ela quer que eu faça?” A mão de Enrico terminou sua xícara e disse: “Conheço um casal que teve problemas no relacionamento, mas hoje estão em perfeita paz. Vou levar você para conhecê-los, talvez te ajude”. E naquela tarde, Enrico foi com sua mãe até cemitério, visitar o túmulo de seus avós.

“A harmonia é uma virtude dos desalmados. Onde há vontade há conflito”.