sábado, 24 de março de 2007

Ritos de Primavera

Suei sozinho no calor da alcova
Hesitei ferido frente ao lapso da memória
E o meu álibi é minha sina
Em meio às flores que me deslocam
Traído pelo ardor da ferida
Encontrei nas dores os meus dogmas

E apenas o luar se importa comigo
Na primavera que se arrasta sem ritos

Expirei sem força no fundo do pântano
A espera foi longa em meio aos sândalos
E meu corpo é feito de espinhos
Conduzindo uma dança cheia de cortes
O gosto do amor será esquecido
Sangrando na lança no leito de morte

E apenas o luar se importa comigo
Na primavera que se arrasta sem ritos

quinta-feira, 22 de março de 2007

O Som da Serpente

"Jorge recebeu um dom divino. Jorge eleva os mártires e é um instrumento de Deus. Quer ser um bom homem e quer ser um poeta. Jorge tem uma navalha manchada de sangue. Cada estocada um história, cada morte um verso maior do antes. Ele passa a tarde inteira engraxando seus coturnos em seu quarto de hotel. Jorge tem que morar em quartos de hotéis, por motivos práticos. Trabalha a noite como vigia de um prédio público. Dificilmente faz alguma coisa, mas gosta de ficar acordado a noite toda. A noite é mais agradável do que o dia, a cabeça pensa melhor. Desde a infância ele ouve sons que ninguém mais é capaz de escutar. Por que ele é um predador e não se deixa ser enganado. O som de um chocalho, o som de uma serpente, os ruídos se intercalam e o deixam doente. O som fica mais alto, zumbindo na cabeça. Então começam os risos, os risos que zombam de Jorge. Jorge nunca fica calmo quando ouve os risos."

Uma paranóia épica, uma paranóia de sangue, uma chuva de éter enxaguando seu rosto.

"Jorge está nas ruas e não encontra um ponto de apoio. As suas mãos estão tremulas e ele não consegue controlar o seu corpo. As vozes estão mentindo, as vozes que falam em seus sonhos. A boca está seca e ele não se lembra do que fazer adiante. Jorge está na zona, mas não se interessa por putas. Nenhuma vadia suja o acalma, elas enganam e fazem os risos aumentarem. Deus não vem por elas, só a Serpente. Jorge precisa de alguém limpo, talvez sagrado. Na saída da igreja, Jorge reconhece a pessoa certa. A segue pela cidade, sem nunca se mostrar suspeito ou estranho. Jorge se aproxima e fala de seus medos e de suas dores. O homem sorri enquanto o acaricia e diz palavras de consolo. Jorge se anima e agradece em um tom singelo. O homem se vira, decidido a voltar para casa. Sente uma dor dilacerante nas costa, cai no asfalto e está morto. Jorge limpa a lamina e com os dedos escreve seus versos. Os versos são importantes para que Ele venha. Observa o corpo do pastor, imóvel e cada vez mais pálido. As retinas dilatadas, Jorge gosta de olhar para elas, todas às vezes. Os risos se calam toda vez que ele se perde nos olhos de um mártir, pois ele vê Deus e Ele o acalma e lhe diz que ele está fazendo tudo certo. Jorge sabe como calar os risos e derrotar a Serpente. Deus lhe deu o dom do silêncio."

Uma paranóia cega, uma paranóia incessante, uma chuva de pedras açoitando seu corpo.

quarta-feira, 21 de março de 2007

Arena

Enjaulado entre meus medos
Exposto ao escuro e ao calor
Tateando e perdendo o apego
E ainda me atormenta o seu amor

Escalar abismos eu tento
Esperando pela manhã
Sonhando com aquele momento
E ainda me atormenta a sua paixão

Em busca do tempo perdido
Fugindo com todo pavor
Um vento que arrasa comigo
E ainda me atormenta o seu amor

sexta-feira, 16 de março de 2007

O Homem de Palha

O grito morre na garganta, o sonho se torna um borrão. As linhas do meu rosto contam uma história longa, e eu não tenho tempo para lembrar. Quem tenta desaparecer, um dia pode se encontrar estendido num vácuo de pavor. Me comove uma lágrima que uma vez ninguém derramou. O corpo está ali e o fantasma se perdeu de novo.
Olhos se desmancham ante a visão do meu esforço. Lentamente entorpecido, encontro um caminho sem retorno. Será que alguém se lembra daqueles momentos de calor? Eu pergunto aos anjos a esmero, mas apenas a chuva me responde. Eu deveria ter escrito a verdade que se esperneia há tanto tempo. Envolto em mentiras, eu não preciso mais dormir. Refém do spleen, envaidecido por seus escombros, o homem de palha remenda mais alguns retalhos.

terça-feira, 13 de março de 2007

Despedaçado

Ela dança sob a luz do luar
Eu a sigo à beira do abismo
Os seus cabelos me fazem sangrar
E meu sangue desperta instintos

Por ruas estreitas ela faz sua viagem
E resgata lembranças perdidas
Ela sabe que vendi a verdade
E a expõe em minhas feridas

Em meio a tormenta sou em quem rasteja
Ela é a amante perfeita quando está na minha cabeça

Ela não dá ouvidos as minhas palavras
O que eu digo não faz sentido
Sou pego em meio a trapaça
E a vergonha será meu castigo

Eu faço o esforço e não tenho mais corpo
Eu quero quebrar meu espírito e lhe dar esse vazio

Ela ri enquanto me afogo
Sempre me alcança quando estou fugindo
Se aproxima e se torna meus olhos
E me oferece seus lábios macios

segunda-feira, 12 de março de 2007

Cães

O hálito quente envolve meu pescoço em sincronia com o rosnar selvagem que atinge meus tímpanos. Cheiro de carne podre, água choca e crueldade. Meu passo acelera instintivamente antes que eu possa averiguar minha posição de presa. O coração acelera e meus olhos giram na direção do atacante. Cães. Uma dúzia deles, uma matilha de assassinos latindo e me acuando entre o trânsito intenso da avenida e suas mandíbulas fétidas. Um portão entre nós, distraidamente havia me aproximado demais. O cretino do dobermann, o maior de todos, havia se erguido sobre suas patas traseiras, se esgueirado entre as grades e tentado me beijar. Refeito do susto, os observo com fúria e desprezo. Cães imundos. Estou com fome e mal humorado. Poderia rosnar de volta, mas meu senso de ridículo me impede. Gosto de cães, mas só até tentarem rasgar minha jugular. Deveria sentir pena deles, maltratados, ferozes e subnutridos, mas meu pescoço impregnado com o odor da saliva me impede. Enquanto me afasto, eles ainda latem, me insultam, exigem meu sangue. Estou faminto e exausto sob o Sol. Estou cansado desses Cães.

domingo, 11 de março de 2007

Enrico, A Lagartixa Niilista. – Manhã sem Vodka

Enrico está satisfeito. Ele acabou de compor uma música no seu esfacelado violão após passar a madrugada toda trabalhando nela. É mais uma pretensiosa peça de absurdo, com uma letra escatológica/erótica e acordes dissonantes postos cuidadosamente fora de qualquer harmonia com a linha de baixo. “Não poderia ser melhor”; ele conclui com um sorriso disforme. Enquanto punha o violão de lado, ele decidiu celebrar sua canção, mas a garrafa de vodka estava vazia. O sol já havia nascido e timidamente invadia a sala. Enrico sentiu uma urgência em sair dali e resolveu dar uma volta pelo bairro. Vestiu sua calça jeans surrada e sua camiseta branca ridiculamente amassada e deixou sua casa. O dia estava fresco e ensolarado e Enrico se surpreendeu ao notar seu tranqüilo estado de espírito. A calmaria o tinha apanhado e ele sentia que podia conviver com isso. Era cedo demais e o mercado ainda estava fechado. Os mendigos ainda estavam de pé e outras criaturas da noite ainda se abrigavam. Uma sem teto se agachou em frente ao mercado falido do centro, abaixou as calças e começou a urinar. Os outros mendigos riam e apontavam. Enrico passou por ela, altivo e impassível. Ele não podia se importar menos. Deslizando pelas ruas se sentindo invisível, ele observava os demais com algum escárnio. O sujeito parado em frente à banca, o frentista desdentado, o coroa de terno e gravata dentro da Mercedes e as universitárias sorridentes a caminho das aulas, todos eles eram uma grande piada cósmica, vermes nadando em uma sopa efervescente de tragédia e desprezo em busca de alguma grande redenção final. Um erro atômico, é isso o que a humanidade é, pensava a lagartixa em sua alcova mental. É mais fácil encontrar Deus em uma viagem de ópio do que em qualquer igreja e o mundo seria muito mais pacifico se todos seguissem essa sugestão, ele presumiu.
Em frente ao posto de saúde, dois seguranças lançam olhares suspeitos sobre Enrico. Ele sorri serenamente, sentindo se feliz por ser considerado uma ameaça por alguém, ainda que por apenas alguns segundos. Cortando caminho pelo parque ele observa as pessoas correndo e fazendo exercícios. Homens e mulheres de meia idade, tentando enganar o tempo e aprimorar seus corpos, em alguma fútil fantasia de juventude eterna, sob a sombra de uma vida desperdiçada pelo temor da morte. A lagartixa se arrasta e ri a esse pensamento. Para ele a autodestruição é uma dádiva aproveitada por poucos. Consuma seu corpo e mente ao máximo que puder e talvez ao fim você tenha aprendido alguma coisa. Essa é a sua doutrina, quando ele se permite ter alguma. Subitamente, a fome desperta em seu estomago. Ele não se lembra quando foi a ultima vez em que se alimentou, mas tinha quase certeza de que tinha sido uma daquelas sopas instantâneas. Ele se recosta em um poste feito um michê e decide ir comer algo na padaria. Em frente à velha fábrica ele vê uma perua de calças apertadas. O seu cabelo loiro é perfumado e aumenta a fome dentro dele. Algum instinto foi despertado. Ela entra na padaria e ele a segue. Três pães de queijo e um suco de laranja, para tirar o gosto amargo de vodka de seus lábios rachados. Termina o seu lanche e começa a caminhar para casa. Na esquina ele cruza com a perua de novo. Ela deve ter uns 40 anos e está bem cuidada. Enrico pensa nela nua e gosta do que vê. Ela o nota a observando e devolve um olhar assustado e vira o rosto enquanto se afasta. Enrico sorri e imagina que em suas roupas, em seus modos e no vazio de sua expressão deve mesmo parecer assustador. O fantasma pálido desse medíocre bairro industrial. Em casa ele liga a Tv. Assiste por alguns segundo cenas de um protesto político na capital. O sangue e o fogo o fascinam, mas ele desdenha as causas daquilo tudo. Dor e suor em vão, ele pensa enquanto desliga a caixa mágica e se despe. Arrumando seu sofá cama ele sussurra versos de alguma canção maldita que inspira imagens de perversão. Escala as paredes e desliza para cama, inquieto e ansioso como uma criança. Preciso de mais vodka hoje a noite é o seu ultimo pensamento antes de dormir.

segunda-feira, 5 de março de 2007

A Voz

Sinta a dor, sinta o frio
Até o calor virou vazio
Eu perco tempo em questões perdidas
Eu nego e quero mais feridas

Eu não consigo ficar desperto
A noite se perde e eu a sinto perto
Há muito tempo apenas o sono me alivia
A luz me fere e não me guia

Eu acordei com a voz dela
Ela me chama e me vê sozinho

Eu sonho toda noite, todo dia
Eu nunca soube como ela fazia
Segredos e mensagens, a vida não fascina
Me detenho a margem dessa chacina

Esta manhã eu a quero ouvir
Me distraindo do que está por vir
O silêncio sempre foi um precioso amigo
Mas sem seu sibilo, eu me fadigo

Eu acordei com a voz dela
Ela me chama e me vê sozinho

sábado, 3 de março de 2007

O Beijo da Sarjeta

Minha vista dança na transe alcoólica e nas risadas incontidas. Meu corpo estremece com o toque quente da noite e da brisa. Eu não ando, flutuo pelas ruas, em um vôo que transcende o tempo, ultrapassa a loucura e ri da própria existência. Me sinto orgulhoso e invencível em meio a este delírio ébrio, sintoma da pirofagia. As amarras estão frouxas, a vergonha foi varrida. Uma voz no fundo da minha cabeça se ergue acusadoramente contra mim, tentando me arrastar de volta a sobriedade. Tarde demais, estou vencido e estou feliz assim. Caio no asfalto, me sinto completo, me sinto amado. O beijo da sarjeta é o amor mais perfeito que já senti.