segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Solstício

Há inúmeras maneiras de perceber que o verão se inicia. Por exemplo, pela colméia de vespas que começa a se formar na varanda de casa, sob os olhos atentos do meu pai. A cada ano ele utiliza um método diferente para acabar com a construção dos insetos. Seja com uma pá servindo de catapulta ou com um lança-chamas improvisado com um inseticida e um isqueiro, é surpreendente que ele continue a triunfar ileso.

Também é nessa época que Enrico organiza a partida anual de “Marcação Mortal” com a as crianças do bairro. O jogo é uma espécie de paintball mais primitivo e violento, que envolve bexigas cheias de tinta e sinalizadores de fumaça. É sempre disputado na noite do último domingo da primavera e Enrico media a partida do alto do telhado de sua garagem. Ele diz que os jogos violentos de videogame e o fácil acesso a pornografia nos dias de hoje estão arruinando o potencial destrutivo infantil, e isso é simplesmente intolerável. “O que vai ser dessas crianças se delas for privadas a possibilidade do vandalismo puro e inconseqüente? Serão zumbis sem criatividade. Eu quero dar elas a chance de expressar um pouco de caos”. A julgar pelo estado da rua no dia seguinte, ele está fazendo um bom trabalho.

“Então, quais as metas para o próximo ano?”, pergunta Tiago, exatamente como ele faz em todo dezembro. Eu não sei qual são as metas, talvez meu plano seja esperar por uma surpresa. Mas vamos deixar o futuro pra depois e fazer uma retrospectiva. A primavera já era e o que eu aprendi esse ano? A tocar uma versão tosca de “I’m So Lonesome I Could Cry” no violão. Os acordes estão errados, mas dá pra brincar. Também apreendi que o tédio é uma prova que sua saúde mental está boa. Se após seis horas sentando em frente a um computador realizando uma tarefa nada estimulante você não estiver entediado, tem algo muito errado com você. Se você não gostar do seu trabalho e alguém te disser que você parece desmotivado diga “Obrigado”.

O que eu apreendi sobre mim mesmo? Que não importa o quanto eu apreenda sobre mim mesmo, eu jamais vou ser capaz de controlar os aspectos, bons ou ruins, da minha natureza. Amadurecer é saber lidar com as conseqüências das merdas que você faz, e não para de fazer merda. Isso ninguém nunca descobriu como fazer.

O que traz o verão pra mim dessa vez? Excesso de tempo livre, o que significa maior possibilidade da minha cabeça divagar por lugares indesejados. Eu não sei, tudo está meio enevoado agora. Eu não estou triste, feliz, nem frustrado. Eu estou ansioso por tudo que nunca aconteceu. É como Burt Bacharach disse, eu só não sei o que fazer comigo mesmo.

“Não foi um ano de merda, mas também não foi grande coisa”

“Você diz isso todo final de ano” – me respondeu Enrico

“É, mas não é verdade?”

“O que você queria? Um ano em que tudo desse esplendorosamente certo? Merda acontece, mas as festas também... A vida é muito complexa pra ser dividida em grupos de 365 dias ou estações climáticas”.

Algumas coisas mudaram ridiculamente, outros sonhos continuam vivos. Eu não tenho nada a dizer em minha defesa, a não ser que tudo que eu fiz foi movido por desejos sinceros, ainda que estúpidos. E não há nada o que se fazer com as primaveras que se sucedem, a não ser rasgá-las do calendário e esperar por mais sorte no verão.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Hank Williams ainda não respondeu

GABRIEL
Eu tentei me acertar e ser um cara sério. Eu cortei o cabelo, arrumei um emprego, me dediquei mais aos estudos, até pensei em arrumar uma namorada... mas não funcionou. Eu não sou capaz de nada disso.

ENRICO
Tá falando com quem?

GABRIEL
Eu não sei simular interesse no que não me atraí, eu não levo a sério nada do que é supostamente importante e eu não consigo fingir que gosto de alguém. Algo no meu processo de amadurecimento saiu terrivelmente errado.

ENRICO
Gabriel?

GABRIEL
Uma vez eu pus fogo na minha própria mão ao tentar incendiar um formigueiro...

ENRICO
Er... é, eu sei, você contou essa história dez mil vezes. Isso é uma fantasia de palhaço?

GABRIEL
Acho que essa foi uma experiência simbólica.

ENRICO
Por que você está encarando essa viga?

GABRIEL
Eu estou em meio a um monólogo.

ENRICO
Por quê?

GABRIEL
Por que é isso que eu faço melhor. Falar com ninguém. Ouvir nada. Se sentir bem sem ter mudado coisa alguma. Uma simulação de catarse.

ENRICO
E a roupa de palhaço?

GABRIEL
Uma alegoria.

ENRICO
É, isso é meio óbvio...

GABRIEL
E também por que eu achei no baú e...

ENRICO
Certo, essas coisas acontecem.

GABRIEL
Não pude evitar.

ENRICO
Andou usando alguma coisa? Bebeu...

GABRIEL
Sóbrio.

ENRICO
Merda, era que eu temia....

GABRIEL
O álcool afeta meu senso de ridículo. Ele o aumenta. Abala minha mania de grandeza. Eu estou bancando o Hamlet aqui...

ENRICO
Certo....

GABRIEL
Não seria apropriado agora, começar a rir de mim mesmo.

ENRICO
É verdade. Você não tinha medo de palhaços?

GABRIEL
Só da maquiagem.

ENRICO
Do que se trata sua catarse?

GABRIEL
A busca pelo Eu. A mesma merda pretensiosa de sempre.

ENRICO
E você encontrou?

GABRIEL
Sim. Esse é o problema

ENRICO
E então?

GABRIEL
Eu sou um cara que gostar de sentar em uma cadeira de praia com uma cerveja na mão.

ENRICO
Só isso?

GABRIEL
É. Essa é toda a imagem. Além disso, eu gosto de varandas, animais, livros, música e espingardas de chumbinho.

ENRICO
É, elas são divertidas

GABRIEL
Provavelmente eu gostaria de... você sabe.

ENRICO
Hum... não consegue dizer?

GABRIEL
(silêncio)

ENRICO
Uma trepada? Uma punhetinha bem dada?

GABRIEL
(silêncio e careta)

ENRICO
Ah sim, esse sou eu... você, vamos ver essa sua imagem. Você está em uma varanda, sentado numa cadeira de praia, bebendo cerveja, com um cachorro velho aos seus pés, tem uma espingarda encostada na parede e está tocando uma música... que musica é essa?

GABRIEL
Tower of Song

ENRICO
Ah, claro. Leonard Cohen canta e ao seu lado, apoiada em seu braço, uma moça ri da expressão esquisita que você faz quando fica viajando, olhando pro nada. É isso não é?

GABRIEL
É. No final é assim.

ENRICO
Não é nada mau. Meio moroso pra mim, mas ok. Talvez eu esteja no porão da casa, fazendo desenhos pornográficos na parede.

GABRIEL
É possível.

ENRICO
Então você tomou ácido, caminhou por labirintos, falou com xamãs, buscou a estrada para dentro de si mesmo....

GABRIEL
E foi isso.

ENRICO
Nada de plano superior, visões místicas, túneis cósmicos pra fora do próprio ego...

GABRIEL
Era isso o que eu esperava, mas é tudo merda. Coisa de quem tem fetiche por cores fosforescentes, de quem se acha importante demais pra ser humano... de quem se veste de palhaço e fala com uma viga.

ENRICO
É, sempre achei Carlos Casteneda um babaca. E então?

GABRIEL
Então tem uma varanda.

ENRICO
E como você chega a ela?

GABRIEL
Aparentemente não é através de um túnel onírico místico. Mas também não é fingido ser um cidadão sério, coisa que eu não sou capaz de ser.

ENRICO
Então?

GABRIEL
Bom, eu tenho que desenvolver todo meu potencial em algum trabalho construtivo que se qualifique dentro dos meus interesses. Eu tenho que ser sensível o bastante diferenciar meus desejos profundos dos meus instintos de auto-satisfação instantânea. Eu tenho que prestar atenção as necessidades daqueles de quem eu gosto e nunca me sentir importante ou desprezível demais para ninguém. Basicamente eu tenho que não ser um grande imbecil.

ENRICO
Ah, mas isso é simples!

GABRIEL
Não é não. É doloroso e frustrante. Eu estava batendo com a cabeça na viga antes de você chegar.

ENRICO
Isso explica muita coisa. É normal, você não tem tudo ainda, mas qual seria a graça? Eu garanto que se não fosse por todas as sarjetas, hematomas, puteiros, dívidas, infecções, horas perdidas, rejeições e fracassos patéticos... o que eu ia dizer... Ah, a sua varanda não seria tão bela.

GABRIEL
Você ta parecendo um livro de auto-ajuda

ENRICO
Merda! É verdade! Ok, que tal isso. Vamos lá, por partes? Você não tem a varanda, a espingarda e... você sabe. Mas quanto ao resto, você está se saindo bem. Então, vamos pegar duas cadeiras de praia, uma caixa de cervejas e sair desse porão imundo.

GABRIEL
Tá bom.

ENRICO
Mas mantenha a roupa de palhaço. Não quero privar ninguém disso.

GABRIEL
Tem um pomar também... na frente da varanda. Com pitangueiras, goiabeiras e aquelas frutinhas roxas. Nunca sei se é amora, a
meixa ou framboesa.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Pesadelo Digital Avalanche

Sonhando em meu quarto
Sonhos singelos
Sem espasmos
Desperto pela
Sirene aguda
Do telefone celular.
Projeta-se na mente
O pesadelo digital
Avalanche de realidade
Mas eu não quero trabalhar.
Disfarço o enfado
Com os mesmos rituais
Sorrio pro espelho
E digo “não
Tenho motivo
Para reclamar”

Embarco na charrete
Do Governador Cara de Metal
O vagão não tem espaço
Pro gado todo que
Vai pra Catedral.
O Governador está
Sempre certo
Ele nunca se
Deixa enganar
Só mesmo um inseto
Como eu
Pra reclamar

Então eu me distraio
Com os olhos castanhos
Volto ao sonho onde
Nossos lábios
Não são estranhos
Andando sobre as pedras
Próximos ao mar
Comendo cogumelos
Abraçados entre
A brisa e o luar

Eu desembarco na pinguela
Onde eu finjo trabalhar
Alugando o meu cérebro
Pro Coronel não
Precisar pensar.
Desperdiçando o meu dia
Escrevendo jingles
De campanha
Eu sinto azia
Aqui esculpindo
Essa banha.
Mas é impossível
E só Nela que
Estou pensando
Quero escrever um
Poema brega
Onde eu digo
“eu te amo”

Eu finjo não ser
Mesquinho
Atravessando a rua
Sem dar esmola.
Talvez eu seja
Um metido
Por achar que
O mendigo se importa
Penso “Será que
Ela vai rir
E achar que eu
Sou um otário
Se eu disser que prefiro
Dee Dee Ramone
À Chico Buarque?”.

Eu pago o preço
Da comida
Eu pago o preço
Da passagem
E o vitral da
Minha vida
Não forma
Nenhuma imagem
Eu queria saber
Ser um mistério
Só pra Ela
Me decifrar
Mas meu amor
É tão indiscreto
Quanto fora
De lugar

E o Governador
Passa mais um dia
Bem longe dos
Meus sonhos
Talvez eu
Seja invencível
Sem nunca estar
Ganhando
E talvez eu
Seja visível
Aos olhos
Castanhos
E mesmo
Sem motivos
Estou aqui
Reclamando.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A meio caminho de lugar nenhum

Manhã de domingo. O carro está parado, sem combustível, em um estacionamento abandonado. Só há galpões fechados nos arredores, ninguém por perto. Eu e Enrico andamos uns três quilômetros até um posto, mas no minuto em que voltamos começamos a baforar a gasolina. Não acho que vamos sair daqui tão cedo. Enrico liga o rádio e sai do Chevette ao som de ‘Born to Die in Berlin’ dos Ramones. Joga um pouco de gasolina sobre uma caixa de papelão e acende um fósforo. Agora ele urina sobre as chamas. Nós não trocamos nenhuma palavra há horas. Nenhuma tirada, nenhuma impressão filosófica, nenhuma piada obscena. Ainda tenho uma lata de cerveja. Ela desce meio quente. A luz da manhã é agradável e suave. O verde vivo da única árvore do pátio se contrasta ao cinza morto de todo o resto. Eu identifico nisso um pouco da minha condição, corroído pelo cinismo, desiludido e empacado a meio caminho de lugar nenhum. Mas as partículas de esperança dentro de mim parecem mais fortes do que tudo isso. Enrico volta ao carro com um baseado preparado e me oferece. A chama da ponta reflete nas lentes de seus óculos escuros. Ele está pálido. Eu também devo estar. Não comemos há muito tempo. 'O que o Ciro tem?' ele pergunta, quebrando nosso pacto não declarado de silêncio. “Ele está triste”. Mantenho meus olhos na caixa de papelão que ainda queima. 'Deveríamos fazer algo por ele'. o tom de voz é monótono e eu não sei dizer se foi uma pergunta ou uma afirmação. “A gente não pode fazer nada. Mas ele vai ficar bem. Eu sei, já estive onde ele está”. 'E onde é isso?' “É aonde você pensa ter encontrado o caminho, mas então percebe que só foi uma miragem e que você esteve andando em círculos o tempo todo”. 'Hum. Frustrante.' “É, mas as miragens nos ensinam certas coisas. Se você não desvendá-las, nunca vai saber o que é verdadeiro”. O rádio começa a tocar ‘American Jesus’ do Bad Religion e a conversa se encerra. Enrico sai do carro novamente e coloca o resto da gasolina no tanque. O carro dá a partida e nós estamos de volta à estrada. Mas para onde agora?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Sagrado Caos

Eu sou o caminho
Que leva ao incerto
Olhe pra si mesmo
Se quiser me decifrar
Quando grita o instinto
Contra sua virtude rasa
Eu sou o infinito nada
Que ecoa em sua cabeça
Sem cansar

Eu sou o vazio
Que te impele
O peito aberto
Na estupidez do amor
Seu colarinho é limpo
Imunda é sua fé
Nunca de joelhos
Nunca aos seus pés
Eu sou o calor que move o sonho
O cair da lágrima
O riso e o revés

Eu sou o perdido
Que guia a jornada
A clara certeza
Desfeita na madrugada
A memória de cada beijo
Cada olhar sem jeito
Cada dia em sua graça
Eu sou o imperfeito
A abençoada estrada
Que conduz desejos
E traí as máquinas

O Sagrado Caos
É a Voz e a Palavra
Onde soa a Discórdia
Onde a certeza é Nada

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Inferno em ladrilhos

O ar está abafado e imagens disformes se projetam na porta branca do banheiro, dando cores translúcidas às gravuras de masturbadores de sanitários públicos, o confessionário supremo. O que é o confessionário senão um inferno dosado, onde todo pudor é despido por alguns segundos de salvação? O que é este banheiro senão um inferno em ladrilhos, onde minha mente erra através de todos os beijos e cuspidas que eu levei na vida, escaldado em suor, nauseado pelo cheiro de fezes e socialmente morto por alguns minutos? Quantas horas mais de expediente? Quantos meses de contrato? Quantos infernos ainda serão necessários para colocar as coisas em perspectiva? Eu bebi demais ontem à noite, mas não o suficiente para apagar a crença em premonições e em sinais divinos. Não acredito em presságios, mas não consigo ignorar meus sonhos. É duplamente frustrante. Lá fora, do outro lado da porta, duas pessoas conversam. Ouço tudo muito distante, fora do meu mundo. Nada é relevante no momento a não ser os ladrinhos e os pensamentos projetados na porta. Meu espírito quer me provar algo através dessas imagens, mas eu olho pra baixo e a visão da latrina é completamente oposta. Em que acreditar? O que em mim é essencial e o que pode ser deixado para trás, como um dejeto? Agora minha visão começa embaçar e escurecer. Eu não tenho mais corpo, só sobraram as imagens diante de mim. Elas significam algo? Uma expressão da alma ou apenas padrões de luz reproduzidos por minha mente debilitada? Não consigo decifrá-las e agora minha vista volta ao normal. Me levanto, me limpo, deixo o cubículo para trás. Lavo o rosto e observo meu reflexo pálido, esperando alguma resposta minha. O jeito é me enganar por mais algumas horas. Eu preciso de um pouco de cafeína.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

As Águas do Rio Lete

Não são necessários movimentos
Aqui onde estou
Esvazio os pensamentos
Ignoro o que sou
Rastejo entre as pernas
Dos vencedores
Com veias abertas
Escrevo seu nome

Graceja e arrasa meus sonhos banais
Aqui na cova rasa todos os dias são iguais
Acaricio a terra úmida que me abraça
A minha boca imunda não tocará sua graça

Vestida em neon
A sua presença me cega
Capturo cada som
Cada voz que me cerca
Instintos me guiam
Aproximo minhas mãos
Você se desvia
Nega suas feições

Fogo e sangria para purificar o meu mal
Mas ainda sou o mesmo ao fim do ritual
Quem disse que redenção vem através de feridas?
É apenas a sua sede de sangue que se alivia

As águas do Rio Lete
Saciam minha sede
A fúria se despe
O silêncio se estende
A correnteza é suave
Nas águas do Rio Lete

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Bebês amaldiçoados não vão para o céu

Me disseram que eu quando eu nasci deu merda. Uma doença infecciosa, sei lá, nunca explicaram direito. Fiquei internado e minha mãe desesperada, fez meu pai arrumar um padre pra me batizar as pressas. “Bebês amaldiçoados não vão pro céu!”, ela choramingava. O meu velho arrumou um sacerdote pra emergência e o sacramento foi feito na incubadora mesmo. Diante de Deus eu era Enrico Roccato e eu nunca mais estaria tão perto do paraíso. Mas meu corpo benzido sarou e a minha inocência hoje é uma memória apagada.

Gabriel e eu, adormecidos em um vagão. Não tem um dia que amanheça sem que um de nós tenha uma ferida nova no corpo, um vergão na cara ou uma roupa manchada de vômito. Quando foi que nós nos perdemos? eu sussurro. “Não dá pra se perder quando se vai a lugar nenhum”, ele balbucia em resposta. Ele está certo. Nós estamos no limbo, sem esperança de paraíso, sem medo do inferno. Não é uma sensação ruim, é apenas como acordar, seja de um sonho ou de um pesadelo.

Se enroscou no meu cabelo, suspirou no meu ouvido. O perfume, o perfume sempre impregna na roupa, na pele, se torna parte de mim. Eu respondo tudo com os olhos, um sorriso abobado, palavras jamais. Telefone anotado, despedida demorada, estou fora daqui. Não ando nem dois quarteirões e deleto o número. Sem promessas, sem conseqüências, nada a oferecer. A estrada é solitária, eu e o silêncio, e por hora isso é tudo.

Hoje me espanta a idéia de alguém acreditar que uma água choca pode purificar a alma. Me espantam as esperanças de redenção, os planos de fuga, os mapas astrais e as comunhões. Todos querem ser salvos, ninguém quer ser livre. Isso não é amor, isso é medo. Eu não acredito em nada além do caos que transcorre por mim. Confissões e flagelos não redimem ninguém, apenas saciam o vazio. Minha mãe estava certa, bebês amaldiçoados não vão pro céu. Eles são condenados a viver.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Fim de Década

Não tem havido muita diversão pelo bairro. As obras na avenida principal nunca terminam, a quermesse acabou e uma seita tenta converter os mendigos através de rituais místicos. Eu ando sentido dores de estômago que não sentia desde a época do colégio. Numa quarta-feira de ventanias gélidas a situação se tornou extrema e tive que me aliviar num banheiro de rodoviária, onde acabei sendo falsamente acusado pelo zelador de estar usando entorpecentes, devido a minha demora. Acho que nem ele conseguia acreditar que alguém seria capaz de cagar ali. Ataques de ansiedade no meio da madrugada também voltaram a ocorrer. Paranóia e alterações emocionais drásticas... Que porra... De onde veio tudo isso? Ciro e eu vimos um pirado distribuindo horrendas flores negras de papel para os pedestres. “Pra que isso?”, Ciro perguntou. “As pessoas precisam se atentar mais as tristezas dos seus semelhantes. Há muito egoísmo, pessoas mesquinhas... A felicidade vem quando se abre o coração, mas é preciso estar aberto ao coração dos outros”. O que isso tem a ver com flores de papel nós nunca descobrimos. Além disso, toda vez que eu abri meu coração, só sofri hemorragias. Mas resolvi seguir um pouco o conselho new age do coroa e até que foi útil. Percebi que quase todos meus amigos andavam tão apáticos e rabugentos quanto eu. Enrico parecia bem, mas comecei notar algo estranho em seu comportamento recente. As atividades semanais dele consistiam em atirar pedras nas janelas de uma fábrica, mijar sobre carros do alto de um viaduto, pintar mensagens obscenas no asfalto... nada de surpreendente vindo dele, mas não era o tipo de vandalismo que ele estava habituado a realizar desde que o conheci. Então eu percebi. Essas eram coisas que ele fazia quando tinha 13, 14 anos, você sabe, a idade em que você é velho demais para brincar de pega-pega, mas muito novo para entrar em algum inferninho... Pois é, aparentemente estamos passando por uma segunda puberdade. “Sim, de fato”, concordou Enrico. “Outro aspecto que vai de acordo com sua teoria é que ando me masturbando com maior frequencia”. O lance é que nós temos 22 anos e se tornar adulto não parece ser uma idéia fácil de aceitar, mas continuar agindo como adolescentes vagabundos se tornou cansativo e vazio. “É como... certas pessoas fazem parte de um sistema, tipo elas são planetas, satélites, estrelas. Elas fazem parte de uma ordem e conhecem seus lugares. Isso dá segurança a elas. Mas nós, nós somos cometas, cara... nós vagamos por aí errantes, nos gabando de nossa pretensa liberdade, mas por dentro estamos loucos para entra na órbita de alguma coisa...”, disse eu, segundo Ciro, mas eu não me lembro de ter feito semelhante metáfora. De qualquer jeito, andar por aí sem ter a menor idéia de que porra você vai estar fazendo daqui há um ano é um bom motivo para uma diarréia. “Porra, eu achei que estava em meio a um dilema existencial profundo, mas você fez tudo parecer uma criancice”, resmungou Renite, enquanto jogava vídeo-game. “Mas por outro lado, isso significa que provavelmente tudo isso vai passar e não é nada demais. É só uma fase acabando”. É, acho que sim. De qualquer jeito foi uma época estúpida para se viver. Sem heróis, nenhuma grande canção... a porra da década sequer tem um nome. Anos Dois Mil o meu caralho. Todo dia voltando pra casa, eu vejo uns sujeitos que estudaram comigo no ginásio, tomando cerveja na guia e balbuciando as mesmas velhas piadas. Há algo de trágico naquilo, como se beber cerveja na calçada e agir como uns pivetes pelo resto da existência fosse a única coisa que os impedisse de desmoronar. Eu olho para as paredes do meu quarto e me pergunto “Jesus Cristo, quantos anos eu já passei trancado aqui, contemplando as paredes e me perguntado coisas?” Tanto faz agora. A noite está acabada e a década quase no fim. Nada está em órbita e flores negras não existem.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Ghost Writer

Meu nome é H.

Eu sou redator e escrevo cartas de suicídio personalizadas.

Meu trabalho funciona da seguinte maneira. As pessoas me procuram e contam sobre suas vidas. Eu ouço seus problemas, angústias e vergonhas. Então eu tenho meu material. Entre 3 a 5 dias elas recebem o serviço via correio. Aí é com elas. Obviamente, exijo pagamente adiantado.

As pessoas me procuram por que não sabem escrever bem, provavelmente. Ou então precisam de ajuda para organizar suas idéias. Mas o fato é que todos querem uma carta de despedida de intensidade extrema. Toda emoção corrosiva que os levou a tomar essa decisão precisa estar devidamente exposta. Também acredito que o suicídio seja uma forma de vingança para a maioria e a carta é uma parte importante disto.

O processo não é nada simples. Eu tenho que me tornar o suicida, encarnar sua personalidade e seu estado psicológico debilitado. Isto é importante para que a escrita tenha autenticidade. Eu tenho que viver a vida deles e em seguida morrer. Com isso, eu já morri centenas de vezes.

Se eu sinto pena dos clientes? Claro, algumas histórias são realmente tristes. Mas eu acredito que a liberdade de escolha é um direito supremo. Mesmo a escolha de morrer. Faz parte da minha ética profissional não intervir no processo. Mas eu jamais aceito trabalhos de menores de idade. O que é realmente integro da minha parte, pois a maioria dos que me procuram são adolescentes

Não, eu não penso em escrever a minha própria carta um dia. Não vejo necessidade, o tempo já está se encarregando de me levar ao fim. Que a minha vida então seja a minha carta.

Ah sim. Eu gosto do que eu faço. Exige talento e eu me sinto feliz por tê-lo. É emocionalmente desgastante, mas também me ensina muitas coisas. Vida e morte não são opostos, nem fim e começo. São apenas partes de um grande nada. Não faz diferença, é só uma questão de percepção.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Na faísca de um isqueiro: Por um mundo mais depravado.

Andava abatido e rabugento nos últimos dias, e não sabia por que. Tudo parecia dolorosamente tedioso e inútil, e minha única motivação ao acordar era saber que após algumas horas de uma rotina estúpida eu poderia retornar a desfalecer na minha cama, e com sorte, a noite seria livre de sonhos. Sonhos me fadigam às vezes.
Após visitar meu avô no asilo em que ele está internado desde que sofreu um derrame, eu comecei a assimilar algumas coisas. Aquilo era deprimente. Aqueles velhos moribundos, tendo suas carcaças arrastadas por enfermeiras, privados de qualquer chance de liberdade. Hora de acordar, hora de comer, hora de tomar as pílulas, hora de trocar as fraldas... Os desgraçados não têm mais controle sobre o próprio intestino. Todos eles têm o mesmo olhar opaco e perdido, talvez se perguntando de que tinha valido toda a merda por qual eles passaram para acabar daquele jeito. E de que diabo vale toda essa merda afinal? Oito horas por dia, cinco vezes por semana, trinta anos da sua vida. Olhando direito, a vida inteira é como estar internado num asilo. Merda, agora não se pode mais fumar em bares. Qual é a próxima medida do nosso maravilhoso mundo anti-séptico? Proibir palavrões? Controle sobre masturbação? “Você só tem direito a jorrar 2 ml de esperma por semana, senão estará sujeito a multa”.
O mundo te alimenta com mentiras para te manter produtivo. Coisas como: “Ninguém chega a lugar nenhum sem trabalhar” “O casamento é uma instituição sagrada”, “Seja bonzinho e vá pro céu”, “A maconha vai derreter seu cérebro”, mas cedo ou tarde você descobre a verdade, e que coisa triste é isso. Eu não quero ser um velho acabado encarando com desgosto a vida pateticamente desperdiçada que eu tive, servindo propósitos alheios. Eu não quero ser um funcionário produtivo, se isso significa enriquecer o rabo gordo de alguém à custa do meu trabalho. Eu não quero ser um cidadão modelo, se isso significa seguir leis que não fazem nenhum sentido. O que há errado em se divertir? O que há errado com sujeira, depravação e insanidade, se é isso que me agrada? A primeira vez que eu vi viciados em crack e seu mundinho aterrador de lixo e violência, eu fiquei apavorado. Mas agora eu vejo que eles têm um ponto de vista a ser pensado. Se existem pessoas que preferem lamber lixo tóxico a se submeter a uma vida pacata, deve ter algo de errado com os nossos valores. Puta merda, o que eles fazem de tão pior do que nós? Nós viemos nos entupindo de drogas como prozac, cafeína, alimentos transgênicos, livros de auto-ajuda e religião por séculos. E o propósito de tudo isso é o mesmo: uma contínua lobotomia que nos permita conduzir nossas atividades em um nível de produtividade aceitável, sem que o fator “toda essa merda não leva a lugar nenhum” nos atrapalhe. Espero que meu avô melhore e possa se divertir um pouco com o resto da vida dele. Espero que meu neto nunca tenha que sentir pena do aspecto miserável do avô dele. E espero que ele tenha liberdade de fumar, fuder e se divertir tanto quanto ele quiser, sem ter que responder a ninguém por isso.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A Balada do Amor Perdido (E outras histórias de corações despedaçados)

Os garotos não nascem para serem homens. Nascem para serem soldados ou operários. Corpo e alma devem estar sincronizados no pragmatismo da execução de tarefas mundanas, o apertar de um parafuso, a assinatura de um cheque, o disparar de uma arma. Destemperos emocionais e a exposição de sentimentos são vistos como fraquezas, sinais de um ser disfuncional, vulnerável e afeminado. Mas no interior desses caçadores silenciosos há um mundo de carência, desespero, desejos profundos e patéticos, murmúrios e ganidos eternamente trancafiados conduzindo a um processo de implosão pessoal. Os garotos são criados para serem soldados ou operários com um eficiente sistema de autodestruição psíquica que os descarta no momento que suas habilidades físicas se tornam ineficazes.

“Deus, basicamente, foi uma idéia que deu terrivelmente errado. A função desse porra e de todas as instituições religiosas era o controle social. Você tinha um bando de putos fedorentos vivendo no deserto e o que você fazia para controlar essa gente? Dizia: ‘Ei, eu subi no morro hoje e Deus me deu essas tábuas com umas regrinhas que podem nos ajudar... er nada de incesto, estupro, matança e saques, ok? Ah, e lembrem-se de pagar seus tributos aos seus lideres, beleza? Bom, que não quiser obedecer, uma vida de miséria, castigo e sofrimento os aguarda!’Pronto”, disse Enrico para seus companheiros de roda. Ele e mais quatro jovens estavam dispostos em um semicírculo ao redor de uma fogueira no quintal de sua casa. “Mas por que isso deu errado? Acho que funcionou dentro dessa proposta de controle”, questionou Tiago, “Por que isso criou uma tensão que saiu do controle. Fanáticos religiosos, homicidas, pedófilos e toda a escória do universo surgiram devido a essa tentativa de institucionalizar a natureza humana. Deus é só um símbolo disso, você pode citar o governo também. A questão é que o homem é um ser instável e tentar enquadrá-lo numa ordem gera apenas mais conflito. É como enjaular um ser selvagem. O caos é a única verdade, o resto é merda. Pense no casamento, por exemplo, é uma forma de tentar controlar por meio de uma convenção social os instintos sexuais e o processo de reprodução. É por isso que é uma bosta que quase nunca dá certo! Instintos não podem ser controlados por uma instituição!”, bradou Enrico com uma garrafa de vodka na mão. Ciro concordou com um gole de cerveja, Tiago ponderou com uma tragada no baseado, Renite sorriu e saboreou sua cevada e Gabriel apenas observou as chamas que consumiam os jornais no velho latão, enquanto acariciava seu copo de pinga com suco.


Perto demais da adaga envenenada
(Uma conversa telefônica de Ciro)

Meu coração pulsa a uma velocidade superior aos chamados do telefone
-Alô?
- Miriam? Oi!
- Oi Ciro!
Eu gaguejo algo prudente e leviano. Ela ri e devolve tudo com doçura. Se eu tendo a evitar olhares quando me sinto desconfortável, por que conversas telefônicas são tão penosas?
- Então, hoje à noite a gente se vê?
- Vamo sim, eu saio às sete e meia.
- Beleza...
Cada palavra um embuste, uma armadilha sem volta. Será mais simples para ela? Eu sou o único paranóico da história?
- Aí a gente decide o que faz depois...
-Certo...
- Cinema, balada...
Os encontros são cada vez mais freqüentes. Existe um laço que eu não posso negar. Existe o medo, pois algo tão intenso não vai ficar de graça. Quais as conseqüências? Eu irei me reconhecer quando o laço se fechar? E que vai sobrar de mim quando ele for desfeito?
- Então a gente se vê lá!
- Beleza...
- Beijo.
- Beijo.
Pronto, está consumado. Eu cheguei perto demais da adaga envenenada.

Um em um milhão
(Um delírio narcisista de Gabriel)

Do canto escuro da pista eu vi a silhueta dela contra a luz. A reconheci por um gesto, que talvez mesmo ela desconheça. Permaneço imóvel, em silêncio e distante. É como se eu tivesse engolido vidro, mas é assim que tem que ser. Quando eu sinto algo, deve ser mais intenso do que qualquer outra pessoa já sentiu. Deve queimar até o fim, por que é isto que eu quis ser e este martírio me eleva a um nível que ninguém poderá compartilhar. Inabalado, eu me descubro o mais mesquinho dos seres. A minha vingança foi fazê-la sofrer por não ser tão pura quanto eu. Foi deixá-la na sujeira da vala comum, a distância da minha presença angelical. Hahaha, que escroto! Foi sempre assim, com um silêncio resignado e um olhar de sofredor, eu me aproveitei da consciência pesada de tantos outros. Pois para satisfazer meu ego, para justificar minha imagem, eu tenho que escolher o flagelo que me faz sagrado e me aparta daqueles que são apenas humanos. Eu tive escolhas e um dia eu pude ser mais um em seu leito, mais uma lembrança. Mas eu me neguei, pois eu jamais poderia ser apenas mais uma lembrança. Eu tenho que ser A Lembrança, eu tenho que ser UM em um milhão, aquele que recusou sua carne apenas para ferir seu espírito. As pessoas cometem as piores perversidades pelos mais nobres motivos. Eu acho que tento fazer o oposto. E eu estou ferido, aqui em meu pedestal. Mas descer daqui exigiria uma força e uma coragem que eu jamais tive. A sujeira da vala é real demais para mim.

A balada do amor perdido (Uma canção de Renite)

Estou no vazio, no lado obscuro da cidade
Onde os bêbados vêem o sol se pôr
Estou vivendo apenas por caridade
Estou vivendo apenas para a dor

Eu estou perdendo as esperanças
Estou apodrecendo indiferente
Às vezes eu só quero vingança
Às vezes um abraço quente

Vagando por toda a madrugada
Em busca de um sinal dessa mulher
Ela pode ter me enganado, essa safada
Mas o que um homem apaixonado pode fazer?

Eu preciso de um milagre, deus
Eu preciso de um milagre, senhor
Ilumine este parvo filho seu
Me diga que ainda existe amor!

Como você dorme?
(Um conflito de Tiago)

Há um gosto em minha boca que não vai embora, não importa quanto eu a lave. “Como você dorme?” eu pergunto pro cara do outro lado do espelho. É culpa dele, sempre dele. O buraco negro das virtudes, o anticristo do romance. Escravo da rola, é isso que você é, seu moleque de bosta. Todos os dias recomeçam com uma promessa natimorta, o frenesi da noite dissolve o frio na espinha que ele sente quando ouve aquela voz, olha no fundo daqueles olhos e mente. Dói quando a anestesia passa, não é? Machuca saber que não existe alívio para este incomodo. Banque o machão até o fim, se apóie em suas teorias conspiratórias, quem sabe isto não melhore tudo? No final você vai estar aqui de volta, na lona, exposto e fudido, sem chances de defesa, sem tempo para se redimir. Como é ter tanta certeza de sua própria escrotice? Como é ser uma doença sem cura? Como você dorme, filha da puta do espelho?

O destino do vira-lata
(Uma confissão de Enrico)

Para minha mãe, ter sido abandonada por meu pai foi a desculpa que ela precisava para abandonar todo o mundo. Foda-se ela ter entrado num casamento miserável por vontade própria. Foda-se ela ter insistido no mesmo maldito erro por anos. Todo o mundo devia pagar por seus sonhos de casa de bonecas terem acabado em flores despedaçadas e intoxicação alcoólica.

Uma vez eu vi um mendigo sentado na calçada, chorando, abraçado a um vira-lata morto. Foi de rasgar o coração. Aquele homem pode abrir mão de tudo, menos da necessidade de ser amado.

Eu sempre ansiei em seu um cara livre e meu modelo de liberdade sempre foi meu pai, o homem que eu culpava por ter me aprisionado em uma existência servil. Eu simplesmente idolatrava o imprestável, por sua atitude desprezível em relação a tudo. Ele simplesmente mandava tudo à merda, sempre com um sorriso de escárnio no rosto. Talvez fosse isso que minha mãe não podia suportar, não ter tido o mesmo efeito destrutivo que ele teve nela.

Eu permaneço distante de qualquer relação afetiva, por que este é o ponto fraco da minha missão por liberdade. Eu abriria mão de todos os meus sonhos por um pouco do mais brega, piegas e meloso contato amoroso. Isto me condenaria a ser um homem amargo. Eu deixaria de ser como meu pai e acabaria como minha mãe.

Então ela se virou contra o Sol e os olhos delas incandesceram. Eu fui subjugado, aqueles olhos se tornaram o infinito e dentro deles eu vi meu fracasso. Eu vi minha incapacidade de me entregar ao amor e de me libertar deste mundo de fachada e besteira. Eu não posso amar, eu não fui ensinado, eu sou uma maquina de desprezo. Eu sou o vira-lata que morre sem dono.
......................................................

“Então ele escondeu a meia cheia de porra atrás do armário. Umas semanas depois, ele tava vendo um pornozinho, fazendo uma brincadeira, quando lembrou da meia. Ai ele foi pegar e quando ele foi colocar ela no pau, viu que ela tava cheia de larvas de mosquito!” gargalhou Enrico em meio a uma confusão de gritos de asco, risos histéricos e muitas profanidades. “O pior que no meio do desespero pra tirar aquilo, ele acreditou que os espermatozóides dele tinham ficado gigantes!” Mais risos, seguido por “um puta merda, chega, foi demais” dito por Ciro, que poderia estar se referindo tanto a história escatológica quanto a bebedeira. O fato é que logo após o comentário, todos entraram na casa e abandonaram as últimas brasas no latão se consumindo enquanto o sol nascia. De dentro da casa, ainda foi possível escutar alguns risos.

Atos de autodestruição como bebedeiras, direção em alta velocidade, violência física e moral a si mesmo e a terceiros, assim como a celebração exarcebada ao sexo e a objetificação da mulher, podem ser vistas como válvulas de escape de instintos primitivos e necessidades básicas negligenciadas pelas convenções sociais e pelos mecanismos civilizatórios modernos. O tratamento fútil dado a vida pela maioria dos jovens homens pode ser uma respostas a falta de perspectiva e ao vazio existencial que os aflige. Comportamento errático que apenas agrava suas condições emocionais, adicionando mais traumas à seus espíritos feridos. A maturidade, exigida pela sociedade no fim consiste apenas na substituição da esperança pela apatia, e na aniquilação da expressão de qualquer insatisfação interna.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

“Cada palavra carregando uma gota de seu sangue...”

Dentre as minhas referências nas artes e na cultura pop em geral, sempre tive uma predileção pelo tenebroso e patético mundo dos mártires do rock. Eu nunca dei a mínima para os rockstars milionários, poderosos e belos posando de fodões em capas de revistas. Pau no cu do Jimmi Page e sua Gibbson de dois braços, eu quero saber dos heróis malditos e atormentados, aqueles que levaram a vida e a arte ao extremo e pagaram o preço. Seja no colapso de Ian Curtis, no suplício de Kurt Cobain, ou no definhamento mental de Syd Barret, são os frágeis que me parecem as criaturas mais reais. Aos frágeis, a vida é mais intensa, por isso cabe a eles serem os porta-vozes de toda a ladainha sem sentido da experiência humana. Mas isso é um grande fardo, e como eu disse, eles são frágeis.

Em todos os exemplos citados, vimos jovens homens, tímidos e inconformados, devolverem ao mundo toda a sua angústia e fúria, deixando uma multidão aos seus pés, apenas para serem derrotados pelos seus próprios demônios. O que era para ser um ritual de exorcismo se tornou a celebração de todos os aspectos negativos do espírito humano. Todo horror que nos era incomodo era projetados sobre esses homens, os nossos xamãs, os messias da mediocridade. O fardo era todo deles, afinal pra isso servem os heróis. Nós tiramos tudo deles, não demos nada em troca, a não ser um débil olhar de fascínio e adoração, e quando eles se esgotaram, nós lamentamos, “Oh, tão jovens, que desperdício de talento...”

Mas sobre a pilha de carcaças dos heróis tombados, caminha um ser decrépito e deformado, que sobrevive de maneira improvável, como uma barata hedionda em solo radioativo: Iggy Pop vive, apesar de tudo, apesar de si mesmo. Ouvindo as faixas de seu novo álbum, chego à aterradora conclusão de que toda aflição que eu julgava ser dona apenas do coração de um jovem, permanece ali, corrosiva e pulsante como sempre, no peito de um senhor de 62 anos.

Quando Iggy surgiu, junto com os Stooges, no final dos anos 60, ele era o sinônimo máximo da depravação do rock. Seu ato explosivo no palco, aditivado pela parede sonora dos seus patetas, era um espetáculo sem precedentes de mutilação, cólera e perversidade. No quesito catalisador de tragédias, ele foi o melhor. Ninguém como ele, encarnou a faceta mais suja e desesperada do ser humano. Ninguém sofreu tanto em pró do nosso gozo quanto esse sujeito de um metro e sessenta e nove do Michigan. Mas por trás de toda aquela carnificina, acreditem ou não, havia um homem, atormentado pelas mais profundas questões existências e pelas mais piegas fantasias românticas. Mais impactante do que as dilacerações auto-infligidas, as overdoses e toda a escatologia, é notar a melancolia e o desespero nos olhos de Iggy em algumas fotos daquela época. O homem estava literalmente se despedaçando em público.

Após anos de loucura, o Iguana se cansou, largou das drogas mais pesadas e nos presenteou com uma seqüência de álbuns inossos. Sem se importar com sua integridade artística, o “Padrinho do Punk” assumiu a caricatura de roqueiro doidão, mesmo com sua música soando como o mais meloso exemplo de pop sintético. G.G Allin, o mais atroz de seus discípulos, o chamou de traidor. Eu não, eu entendo completamente a decisão do meu herói. Ninguém deu a mínima pra ele enquanto ele se contorcia desesperadamente sobre cacos de vidro. Ninguém lhe deu valor quando ele nos deu obras escritas em sangue, arrancando toda a sua inspiração de suas entranhas em busca de alívio e de uma arte que fosse significativa. Ele percebeu que estava esgotado, que iria enlouquecer ou morrer vivendo naquele ritmo, e que a humanidade não valia o seu sacrifício.

A mediocridade criativa de Iggy entre os anos oitenta e noventa reflete a mediocridade espiritual típica da meia idade, que a maioria dos jovens tanto teme. Você sabe, acabar como seu velho pai, sentando no sofá com seus olhos cansados e cheios de amargura, fadigado demais pelas decepções da vida para fazer algo mais do que resmungar. Mas a lição que pode ser tirada disso, é que o inconformismo diante do absurdo da vida pode ser silenciado, mas nunca apagado, não no coração de um verdadeiro rebelde. Enquanto Iggy recuperava suas forças, Allin se juntava a cova coletiva dos selvagens, morrendo de overdose de heroína, untado em merda e sangue.

Lentamente, o ímpeto começava a se reacender. Os álbuns se tornavam mais vivos, as canções mais reais. Em 2003, os Stooges se reuniam. Tive a chance de ver um show deles dois anos depois, e acreditava que veria um Iggy mais comportado. “O CARALHO!” Foi o que ele me respondeu, com uma hora de contorcionismos grotescos, uivos primitivos e pancadarias com seguranças. O Iguana está vivo e louco como nunca! Aprendam seus covardes que morreram cedo! Queimar de uma vez para não se apagar os poucos? Acham isso foda? Experimentem queimar, apagar e depois se acender de novo como essa pira funerária ambulante na minha frente! Após o show, eu me senti violado e extasiado. Eu estava surdo de um ouvido, com câimbra nas duas pernas e louco por mais. Os shows seguintes do festival não passaram de borrões. Iggy não deu a mínima pra ninguém.

Agora, com uma cópia de “Preliminaires” nas mãos, eu percebo que o romper da crisálida está completo. Iggy está nu, exposto com ele realmente é: um homem de sessenta e poucos, atormentado e fascinado pela idéia de morrer em breve. “Toda ato em minha vida, na idade em que eu me encontro, é uma preliminar para a morte”, disse o artista em uma entrevista, explicando que o titulo do álbum não tinha uma conotação apenas sexual. A fúria das guitarras foi trocado por arranjos bem trabalhados de jazz e bossa nova, mas o espírito dos velhos tempos está mais acesso do que nunca. Solidão, tesão, orgulho de macho ferido, apatia diante da existência... tudo aquilo que me afeta agora, aos 22 anos, ainda está lá, na cabeça experiente do senhor James Osterberg. Como acreditar em redenção e paz de espírito agora?

Após anos de produção de lixo pop em escala industrial, Iggy volta a criar arte, como ela deve ser feita, através da dor, cada palavra carregando uma gota de seu sangue. Não há certezas, nem respostas, mas assim é a vida, um punhado de momentos que não fazem sentido algum em seu todo, mas sim em suas singularidades. Por último, mais uma obsessão de Iggy Pop retorna neste álbum, mas de forma revisitada: A palavra cão. “Não sei o que é com essa palavra, acho que tem a ver com mulheres dominadoras...”, revelou o cantor em uma entrevista nos inicio dos anos oitenta.

Entre as inúmeras obras que fazem referencia aos caninos, a clássica ”I Wanna Be Your Dog” é o exemplo mais elucidativo. Não é sobre um homem subserviente, como pode parecer. Ao contrario, é sobre ser insolente diante de uma autoridade, é um conto sobre o sacrifício da carne em favor de um espírito indomável. Quarenta anos depois, Iggy lê um livro chamado “A possibilidade de uma ilha” e fica pirado. O deslumbre é tanto que ele recita no álbum um trecho da obra de Michel Houellebecq na música “A Machine for Loving”. O cachorro é a dita maquina de amar, “você apresenta ele a qualquer ser humano e ele irá amar esta pessoa, não importa quão má, perversa, deformada e estúpida ela seja”, sussurra o cantor com sua voz rouca.

Isso deve ter um impacto revelador nele, assim como teve em mim. É isso que somos no fim das contas, vira-latas que abanam o rabo e seguem qualquer um que lhes de atenção, nos conduzindo a uma série de experiências humilhantes e dolorosas. Mas é com a dor que aprendemos e é com a dor que criamos. Aprendi isso graças aos meus heróis caídos e a esse bravo iguana que ainda resiste.

domingo, 24 de maio de 2009

Absoluto

Meus olhos violados por sua beleza enfurecida
Sirva-se do silêncio que nos aparta
Despertando do vácuo a minha mente entorpecida
Um beijo trêmulo nos consagra

Eu ofereço o meu fascínio
Se você encontrar uso para minha dor
Santifique meu suplício
Valha-me lágrimas
Seja a navalha contra meu corpo

Suave e febril
Não permita que eu respire
Sua farsa me feriu
Meu ardor não tem limite

O meu sangue ao seu dispor
O meu sangue ao seu dispor
O meu sangue ao seu dispor

Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Isto é tudo que me resta
Ao seu dispor
Ao seu dispor

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Desafino

“Você já pensou que na concepção de uma mente cristã, há um deus entediado olhando para nós o tempo todo, e que nossa missão é entretê-lo?”. Eu não refleti muito sobre aquela teoria, estava concentrado em extrair algum som do meu velho violão. Também não fui capaz de notar que Enrico estudava abismado seu reflexo há alguns minutos. “O que nós podemos fazer a respeito disso? Nós fomos criados para servir ao acaso, a vida inteira uma inútil peregrinação”. Tudo em que eu pensava era na necessidade de trocar as desgastadas cordas de nylon. A afinação estava instável. “A história humana consiste num filme pornográfico repetido incessantemente até que não exista mais ninguém para assistir”. O som dos meus acordes era grotesco. Um ruído sujo, dissonante, sem consistência, lixo sonoro produzido por dedos e ouvidos ineficazes. “Eu não tenho ambição alguma a não ser não fazer parte disso. Todo vez que eu tento fazer parte de alguma coisa eu acabo fodido, machucado e envergonhado. É como se eu traísse minha natureza... Eu não quero mais ter vergonha de quem eu sou.” Eu tentei um dedilhado nas cordas mais agudas e o som se torna mais agradável, ainda que simplório. Eu não presto pra acordes, só domino as notas soltas e as frases repetitivas. “Eu sou o que eu escolhi ser, diante das minhas perspectivas. E se diante da perspectivas dos demais eu sou um lixo... para mim eles também não passam de uns merdas. A diferença é que eu estou sozinho”. Finalmente algo parecido com uma canção ecoa da caixa acústica. Uma bobagem, uma melodia infantil, mas que secretamente me trazia orgulho. “Que porra você tá falando, seu bêbado?” Enrico se desprende do espelho, olha pra mim e sorri. “Que você toca mal pra caralho”.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Oferendas em Chamas

Seja o mundo um campo fúnebre
Feridos sejam os corações infiéis
Seja obscuro tudo que me supre
Atrás das fendas de seus olhos cruéis

Seja o horizonte uma promessa ausente
Carcaças sejam cada homem e mulher
Seja meu corpo uma oferenda ardente
Ao peito gélido de quem eu quiser

terça-feira, 5 de maio de 2009

.22

Foi por causa de um sonho que ele acordou. Um sonho lúcido que revelou o lado sombrio do seu caráter: “Santo Deus!”, ele pensou, “Que péssimo Deus eu seria!”. Ainda embriagado de sono ouviu o barulho da campainha. Eram três da manhã, quem diabo seria? Abriu a porta sem pensar. Três soldados vestindo uniformes negros entraram. Atrás dele um homem severo, de paletó e chapéu anunciou: “Gabriel Gabay, você está preso acusado de desperdiçar 22 anos de uma vida. Entre os delitos, estão listados: Preguiça crônica, ser mimado demais, não se lembrar de aniversários, escrever poesia de baixa qualidade, reclamar sem motivo, se lamuriar pelos cantos, quebrar 12 controles de Playstation, medo do futuro, medo do presente, ingratidão ao passado, não aproveitar tardes de Sol, traição aos próprios ideais, urinação pública, abandonar amigos, pavor a rejeição, narcisismo exarcebado, nunca dar bom dia, incapacidade de se expressar... a lista é interminavél! Mas acima de tudo, você é culpado por seu grave comprometimento com a mediocridade e a não realização de qualquer ato relevante nos campos familiar, amoroso, profissional e artístico”. Gabriel tombou para trás e suas costas se chocaram contra a parede. Ele ficou sem ar e nada conseguiu dizer em sua defesa. “Você permanecerá sob nossa custódia por tempo indeterminado. Sua soltura ocorrerá somente sob as seguintes hipóteses: Primeira, se você começar a agir como um homem. Segunda, quando sua vida estiver completamente desperdiçada e nada puder ser feito a respeito. Você então estará liberado para ser um velho amargo e morrer. Guardas! Realizam a prisão!” O três sujeitos o agarraram pelo braço, o arrastaram para fora e lhe meteram em um camburão preto. Ele bateu a cabeça no chão e começo a sangrar. Ao olhar a sua volta percebeu estar em seu banheiro. Sentou-se no chão, com as mãos sobre o corte e sentiu que as acusações ainda lhe pesavam.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Presque Vu

Solo impróprio para idéias,
A morte é o sono disperso
Vinda do ventre da primavera.
Mas eu me repito quando
Silencio-me diante do apático,
Diante da tragédia.
Qual a metáfora adequada
Para exprimir todo esse
Tempo perdido?

Desejo adestrado, adequado
Ao meu quadro de promessas, ao
Meu peito ardente e carente de trégua.
A ti, eu só peço que venere
As minhas feridas
As minhas batalhas fracassadas
Me redima,
Perdoe-me por não ousar ser este ser.

Sol morno sobre a têmpora,
Cortina suja aparta a multidão
Das minhas seqüelas.
É mais um dia turvo aos olhos daquele
Que não tem pressa, entre tantos
Que passam ser saber que o momento
Acaba de se perder.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Jornada rumo à inexistência

Emergir de um sonho e ser incapaz de se reconhecer. O que sobrou daquele que adormeceu? Eu sonho com o céu noturno do deserto, eu corro livremente sobre a areia fria. Eu sonho com a gentil selvageria de uma noite eterna. Eu desperto em um mundo muito menos real e sem vida. Mas uma mudança se operou, uma reação é desencadeada. Os sonhos trazem sempre as suas conseqüências. 

Sem propósitos, sem saídas. Estou no seu colo, tenho cinco anos. Ele estará morto antes que eu complete doze. Eu não preciso de desculpas, nem de um paraíso. Eu tenho a lembrança, eu conheço o vazio.

Diante de mim um oceano de possibilidades. As minhas costas, uma praia de lembranças. Eu sou um ponto instável em meio à eternidade. Anseio e remorso, e o deleite está na cegueira e na amnésia.

Alucinação auto - induzida. Eu não quero paz, eu quero seu vício. Acariciando as falhas de um lábio ferido, eu acrescento a minha mágoa mais uma paixão pueril.

A existência é uma seqüencia de eventos que transcende a vida e a morte. Uma estrela morta há milênios ainda existirá enquanto formos capazes de enxergar seu brilho. “Viver e morrer, é apenas uma escolha”, pensou o suicida antes de mergulhar no trilho do metrô. Ele estava certo, mas isso não bastou para libertá-lo. A sua memória permanece, assim como a sua dor.

Os segundos que precedem queda são preenchidos por uma prazerosa letargia. A vista esbranquiçada pela névoa, a contradição desfeita pelas trevas. Não há sofrimento no palácio das ilusões.    

No fim da noite, onde as esperanças desvanecem e os sonhos são negros, é pra lá que a estrada me leva. Eu escolho ignorar profecias e silenciar meus demônios. Eu quero o abraço seguro das trevas. Quando meu coração extinguir a vaidade, o ímpeto e a inquietude, serei a mudez eterna de um sonho escuro, e então tocarei as areias frias da inexistência.

O silêncio tem meu nome e meu peito foi feito pra morrer. Eu sou uma doença sem cura, eu sou o que resta. Eu sou a espera do que nunca pode ser.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Bebendo com Takeshi

Gabriel Gabay e Enrico Roccato encontram o velho Takeshi em botequim prestes a fechar. O vizinho de Gabriel, conhecido no bairro por sua alta tolerância ao álcool e por eventuais crises histéricas, convidou os dois amigos para beber uma garrafa de uísque de proveniência duvidosa em sua residência. A seguir, um relato resumido deste evento.

02h11 – GARRAFA CHEIA

ENRICO
Então, uísque? Não curte saquê?

TAKESHI
Curto. Se tiver álcool eu ponho pra dentro.

GABRIEL
Discos legais, Janis, Doors, Hendrix...

TAKESHI
É. É da minha época.

ENRICO
Como você era nos anos 60?

TAKESHI
Igual agora, só que mais bonito.

ENRICO
Curtia política, aquele lance hippie?

TAKESHI
Porra nenhuma. Aqueles esquerdóides era uns escrotos, cheios de regras, de frescuras... eram iguais aos militares, nem um pouco melhor.

ENRICO
Eram intolerantes também, né?

TAKESHI
Porra, demais. Revolução cada um tem a sua, na sua cabeça. O resto é merda.

ENRICO
Você teve a sua revolução?

TAKESHI
Eu fui criado por japoneses tradicionalistas. Olhe pra mim agora? O que você acha?

ENRICO
Certo.

TAKESHI
Eu vivo sob as minhas regras

GABRIEL
Outro dia eu estava no metrô e estava escrito “Nunca ande nos trilhos”. Cheguei à conclusão que as únicas regras que merecem ser seguidas são aquelas que não precisam existir.

02h47 – ¾ DA GARRAFA CHEIA

TAKESHI
Eu tinha um amigo publicitário. Uma vez um grupo de vegetarianos pediu para ele traduzir o slogan “Meat is a Murder” pra eles, mas não só traduzir, mas fazer um lance de palavras legal, em português. Sabe o que ele conseguiu?

GABRIEL
O quê?

TAKESHI
Escutem bem. “O Assado é um assassinato”.

ENRICO
“O Assado é um assassinato?”

TAKESHI
(rindo)
É! Ele nunca mais trabalhou pros caras, você pode ter certeza.

03h23 – ½ GARRAFA CHEIA

TAKESHI
Então eles te mandam pra escola, eles te ensinam todos esses valores horrorosos como posse e ganância, eles te treinam para ser mão-de-obra, não pra ser uma pessoa livre. Escutem muleques, isso tudo é bosta. Vivam suas vidas, jantem umas xoxotas, viagem pra bem longe, onde tudo é selvagem e vivo. Vocês vão se foder de qualquer jeito, mas se fodam do jeito divertido.

ENRICO
Mas há futuro nisso? Quero dizer, eu concordo com você, mas quando você foge da escravidão do sistema você não se torna escravo da marginalidade? Quero dizer, você faz uma escolha que talvez não possa mudar...

TAKESHI
Meu filho, isso tudo é merda! Você é escravo do seu estômago, da sua cabeça e do seu pinto. Sempre! É isso. No final das contas você vai acabar sozinho, num quarto de hospital, numa sarjeta ou no presídio. Qual a diferença? Por que viver uma vida inteira através de termos que não são seus?

GABRIEL
Eu tenho medo de ter uma vida medíocre...

TAKESHI
Ótimo! Já é o primeiro passo pra não ter uma. Todo mundo quer a liberdade, mas todo mundo tem medo dela também, por que ser livre significa abrir mão de todo o resto. A liberdade é a forma mais solitária de se amar.

ENRICO (arrotando)
Bonito isso...

03h50 – ¼ DA GARRAFA CHEIA

TAKESHI
Seus putos...

ENRICO
O quê?

TAKESHI
(murmura algo incompreensível)

GABRIEL
Sabem, hoje eu estava na estação de trem... e... eu olhava todas aquelas pessoas e...
Bem, eu pensei, “O QUE DIABOS NÓS ESTAMOS FAZENDO NESSE PLANETA?”

ENRICO
É... foda

GABRIEL
Foda? É ridículo. Onde as pessoas vão com tanta pressa? Elas não chegam a lugar nenhum no fim.

TAKESHI
Agora sim... isso mesmo... seus putos...

ENRICO
O quê?

04h20
A GARRAFFA ESTÁ VAZIA

GABRIEL
Acho que estou apaixonado...

ENRICO
Hum... e o que você pretende fazer a respeito?

GABRIEL
Eu não sei... bater com a cabeça na parede até passar, provavelmente...

ENRICO
Isso parece tão sensato quanto ficar apaixonado

TAKESHI
(acordando)
Uma vez eu me apaixonei. É uma merda, você não se apaixona por uma mulher, se apaixona por um sorriso...

ENRICO
Por um sorriso?

TAKESHI
Pois é! Ai quando o sorriso se desfaz, o que é que você tem?

ENRICO
Uma piranha chata te aporrinhando?

TAKESHI
(berrando)
É! Essa merda é uma coleira...

GABRIEL
Vão se fuder! Você sabem o que é... o coração sangrando e sua cabeça implodindo? E você olha para aquela pessoa e você não sabe o que fazer para ela entender o que você sente e o que você é... Que merda, você vem me falar de um sorriso... eu quero saber o que esconde o sorriso... eu quero ser o motivo do sorriso... você entende isso, seu velho puto?

Nesse momento Takeshi atira a garrafa de uísque na parede, chuta móveis e esmurra as paredes enquanto berra de maneira desvairada. Enrico e Gabriel deixam a casa, a garrafa despedaçada e o velho sozinhos.

terça-feira, 17 de março de 2009

O Verão não é bom para colheitas

Janeiro... nada.
Fevereiro... porra nenhuma
Março...

É bem incômoda esta ausência de palavras. O truque é conseguir que a primeira sentença seja perfeita, depois o resto vem por espasmos.

IDÉIAS PARA UMA 1ª SENTENÇA PERFEITA:

- Sentado sobre a grama molhada, o menino avalia os primeiros efeitos de uma estranha droga.
(Autobiográfico ou fantasioso? Há algum propósito em avançar aqui?)

- A lâmina da faca refletiu seus olhos e seus lábios sussurraram: “Até quando?”
(Conflitos existenciais compressos em clichês. Eu não consigo escrever nada sem a palavra “lábios” no meio?)

- “Como você prefere morrer: Como Ícaro ou como Narciso?”, ele indagou em sua juventude febril.
(Idéia promissora. Estética pobre. Desenvolver mais tarde?)

Sem chance. Preguiça mental. Além disso, o texto exige um mergulho emocional pesado demais e eu não me sinto disposto. Que sabe um poema erótico por hora?

Um que não tenha a palavra “lábios”?

...

Merda.
Não é assim com poemas. Você não os planeja, não os pensa, eles vêm, exigem ser escritos. É um processo natural. Como uma paixão. Como uma diarréia. Hoje não é o dia.

Talvez algo engraçado, despretensioso, faz tempo que eu não faço algo assim

ERIC, O CARPINTEIRO A PROVA DE JINGLES

Er... isso me parece bem pretensioso... e nada engraçado.

Ok, meu caderno de rascunhos pode ter a salvação. Vejamos. Algumas frases de efeitos, rimas pobres, provocações teológicas, enfim, nenhuma idéia original.

Ok.

Minha última chance. Um relato de meu dia. Estilo um diário. Sempre quis ter um diário, mas tenho problemas com prazos.

RELATO DE UM DIA QUALQUER – HOJE

Hoje eu acordei um minuto antes do despertador tocar, mas continuei na cama até que o alarme soasse.

No trabalho li um artigo sobre doenças mentais bizarras e me perguntei se não sofro nenhuma delas, e em caso positivo, como eu poderia saber?

Uma goteira no meio do escritório destruiu alguns jornais e um e-mail. Todo mundo achou engraçado.

Fiquei completamente encharcado no caminho do trabalho até o metrô. Troquei de camisa no meio da estação e as pessoas olharam assustadas.

Observei do trem uma das maiores tempestades que já presenciei. O vagão passou por um rio onde a água quase transbordava. Fiquei tão impressionado que troquei olhares com um estranho e disse “Nossa!” e ele respondeu “Complicado”.

Percebi a inutilidade de pegar um ônibus e fui a pé para casa. Me senti um monge zen caminhando serenamente em meio ao caos do trânsito. Atravessei uma ponte inundada e pensei na possibilidade de contrair leptospirose. Observei a devastação causada pela chuva, à sujeira das ruas e as expressões atônitas. Me senti feliz, como se fosse imune a tudo.

Cheguei em casa. O vizinho escutava Miles Davis no último volume. Ótimo gosto. Tomei banho e inventei uma canção sobre leptospirose. Não lembro como era a letra. Jantei duas coxas de frango. Limpei o vômito do meu gato. Senti tédio e comecei a escrever. Não sei que horas vou dormir.

FIM DO RELATO

Caralho.
Eu sou um zumbi renascido de uma lobotomia. Eu sou uma criatura mitológica que deu à luz a um demônio através de um aneurisma cerebral. Eu acabei de cagar um tumor colossal. Que alivio! Minha cabeça estava doendo por excesso de idéias e escassez de ação. Por que é tão difícil escrever no verão? É culpa do calor? Eu sou muito preguiçoso? Por que foi preciso um dilúvio para me inspirar?

...

Para mim, tempestades são bons presságios.

segunda-feira, 2 de março de 2009

À Espera dos Anjos

Gabriel atravessa o deserto
Ele desperta de um sonho
Ninguém está por perto
Para ouvir sobre o fogo

Gabriel está alerta
Gabriel se sente ansioso
Sua mente está repleta
De idéias para um novo consolo

Gabriel quer paz interna
Desvendar a misteriosa força
Gabriel quer aquelas pernas
Quer gosto de boceta na boca

Gabriel é o peregrino
É o santo a procura do profano
Gabriel quer perigo
Mas não que lidar com os danos

À espera da primavera
À espera dos anjos
Eu não sei o que me espera
Através do vale dos sonhos

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Raízes Arcaicas

Dádiva podre, sangue da alvorada
Voraz em seu nome, oh minha musa mutilada
Louvada as dores, soberba toxina
Acentuando as cores da minha alma distorcida
Lucidez nervosa, aceleração cardíaca
O perfume de mil rosas não me toma da carniça

Asas despedaçadas, olhos incandescidos
Enxuga-me as lágrimas e silencia os meus gritos
A ferida é cálida, a navalha é tingida
Ignoro sua falácia, só dou ouvidos à agonia
Espelho de bronze, frenesi interrompido
Rastejo ao horizonte, amaldiçoado seja o seu sorriso