domingo, 11 de março de 2007

Enrico, A Lagartixa Niilista. – Manhã sem Vodka

Enrico está satisfeito. Ele acabou de compor uma música no seu esfacelado violão após passar a madrugada toda trabalhando nela. É mais uma pretensiosa peça de absurdo, com uma letra escatológica/erótica e acordes dissonantes postos cuidadosamente fora de qualquer harmonia com a linha de baixo. “Não poderia ser melhor”; ele conclui com um sorriso disforme. Enquanto punha o violão de lado, ele decidiu celebrar sua canção, mas a garrafa de vodka estava vazia. O sol já havia nascido e timidamente invadia a sala. Enrico sentiu uma urgência em sair dali e resolveu dar uma volta pelo bairro. Vestiu sua calça jeans surrada e sua camiseta branca ridiculamente amassada e deixou sua casa. O dia estava fresco e ensolarado e Enrico se surpreendeu ao notar seu tranqüilo estado de espírito. A calmaria o tinha apanhado e ele sentia que podia conviver com isso. Era cedo demais e o mercado ainda estava fechado. Os mendigos ainda estavam de pé e outras criaturas da noite ainda se abrigavam. Uma sem teto se agachou em frente ao mercado falido do centro, abaixou as calças e começou a urinar. Os outros mendigos riam e apontavam. Enrico passou por ela, altivo e impassível. Ele não podia se importar menos. Deslizando pelas ruas se sentindo invisível, ele observava os demais com algum escárnio. O sujeito parado em frente à banca, o frentista desdentado, o coroa de terno e gravata dentro da Mercedes e as universitárias sorridentes a caminho das aulas, todos eles eram uma grande piada cósmica, vermes nadando em uma sopa efervescente de tragédia e desprezo em busca de alguma grande redenção final. Um erro atômico, é isso o que a humanidade é, pensava a lagartixa em sua alcova mental. É mais fácil encontrar Deus em uma viagem de ópio do que em qualquer igreja e o mundo seria muito mais pacifico se todos seguissem essa sugestão, ele presumiu.
Em frente ao posto de saúde, dois seguranças lançam olhares suspeitos sobre Enrico. Ele sorri serenamente, sentindo se feliz por ser considerado uma ameaça por alguém, ainda que por apenas alguns segundos. Cortando caminho pelo parque ele observa as pessoas correndo e fazendo exercícios. Homens e mulheres de meia idade, tentando enganar o tempo e aprimorar seus corpos, em alguma fútil fantasia de juventude eterna, sob a sombra de uma vida desperdiçada pelo temor da morte. A lagartixa se arrasta e ri a esse pensamento. Para ele a autodestruição é uma dádiva aproveitada por poucos. Consuma seu corpo e mente ao máximo que puder e talvez ao fim você tenha aprendido alguma coisa. Essa é a sua doutrina, quando ele se permite ter alguma. Subitamente, a fome desperta em seu estomago. Ele não se lembra quando foi a ultima vez em que se alimentou, mas tinha quase certeza de que tinha sido uma daquelas sopas instantâneas. Ele se recosta em um poste feito um michê e decide ir comer algo na padaria. Em frente à velha fábrica ele vê uma perua de calças apertadas. O seu cabelo loiro é perfumado e aumenta a fome dentro dele. Algum instinto foi despertado. Ela entra na padaria e ele a segue. Três pães de queijo e um suco de laranja, para tirar o gosto amargo de vodka de seus lábios rachados. Termina o seu lanche e começa a caminhar para casa. Na esquina ele cruza com a perua de novo. Ela deve ter uns 40 anos e está bem cuidada. Enrico pensa nela nua e gosta do que vê. Ela o nota a observando e devolve um olhar assustado e vira o rosto enquanto se afasta. Enrico sorri e imagina que em suas roupas, em seus modos e no vazio de sua expressão deve mesmo parecer assustador. O fantasma pálido desse medíocre bairro industrial. Em casa ele liga a Tv. Assiste por alguns segundo cenas de um protesto político na capital. O sangue e o fogo o fascinam, mas ele desdenha as causas daquilo tudo. Dor e suor em vão, ele pensa enquanto desliga a caixa mágica e se despe. Arrumando seu sofá cama ele sussurra versos de alguma canção maldita que inspira imagens de perversão. Escala as paredes e desliza para cama, inquieto e ansioso como uma criança. Preciso de mais vodka hoje a noite é o seu ultimo pensamento antes de dormir.

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