segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Estrada

Era um jeito estranho de encerrar um funeral. A 220 por hora, em um Chevette marrom despedaçado, cheiro de mofo, fuligem e vodca no ar. Essa rodovia é conhecida como a estrada da morte, e ver Enrico dirigir com uma garrafa de Smirnoff entre os joelhos me deixou levemente tenso. Não fazia mais do que duas horas desde haviamos deixado à funerária. A voz no telefone soou sóbria demais para ele, “Tenho que ir num velório, quer ir comigo?”. Foi estranho, era de uma amiga da família dele, chamada Susana. “Foi chefe do meu pai, ele era segurança do bar dela”. Todo mundo parecia conhecer Enrico, e o fitavam com um ar paternal, típico de quem o havia conhecido na infância e o visto crescer. Ele se recusou a ver o corpo no caixão. Fui ao banheiro, e quando voltei, ele havia sumido. Um sujeito com cara de boxeador me pediu para esperar. Meia hora depois, Enrico aparece com aquele museu que por milagre ainda rodava. Fiquei com medo de perguntar onde ele tinha arrumado aquilo. “Um amigo emprestou”, sem maiores detalhes não me convenceu. Então um sujeito bêbado, transtornado, sentado em um carro cuja única forma de servir bem a humanidade seria apodrecendo em um pátio imundo qualquer, onde ratos e mendigos disputam abrigo entre a ferrugem, propõe uma viagem de 6 horas para o sul do estado. O que você faz?

Paramos em um posto no meio do nada. Fui mijar e quando voltei encontrei Enrico fumando com uma garota. Ela era muito bonita, e Enrico tentava uma sutil aproximação, tão sutil quanto era possível para ele. De qualquer forma, enquanto os dois estavam no banco traseiro do carro, eu comia no restaurante e pensava na minha inerte vida sexual. Enrico me disse que eu exagerava na idealização das mulheres e via todas elas ou como putas, ou como santas. Segundo ele, esse meu machismo enrustido por de trás da minha máscara de timidez apática era a razão da minha falta de habilidade com as garotas. “Todo mundo tem que ter seus complexos”, eu disse, aceitando a teoria rapidamente, para não ter que digeri-la da maneira apropriada. Um caminhoneiro aparece avisando de um acidente grave. Um carro incendiou e a pista estava cheirando a carne queimada. Vodca quente e o pão com queijo derretido se revoltaram no meu estomago. Abraço um vaso imundo, lavo o rosto, empato uma foda e saio daquele limbo.

Grande revelação. Enrico disse que a sua falecida amiga tinha sido uma mãe pra ele. “Quando eu brigava com aquela puta (Enrico se refere a sua mãe invariavelmente sob essa terminologia) eu ia me esconder no bar dela. Ela me ouvia, me tratava como gente. Merda, as pessoas boas sempre se fodem...” Silêncio que precede mais um monologo. No painel percebo uma luz vermelha acesa, avisando de alguma falha mecânica á muito ignorada. “Meu pai adorava ela, uma das razões por que ela largou a vaca foi por que ela tinha ciúmes da amizade dos dois, mas meu pai nunca pegaria ela...” Por que? Por que o peito maternal que abrigou meu amigo em sua infância, era silicone puro. Seu rosto e corpo eram resultados de cirurgias e hormônios, e entre suas pernas a verdade repousava. “Susana era um homem... biologicamente falando”.

Alguns de seus desafetos ironizaram sua morte, dizendo que tinha sido câncer nos testículos, mas isso era uma grande calunia. “Foi no pâncreas, e depois se espalhou no organismo. Porra, não bebia, não fumava, merda...” Se recusou a fazer quimioterapia, morreu 3 meses depois de constatada a doença. “A pessoa mais decente que eu já conheci, seca e morre durante 3 meses, vomitando e cagando sangue. Que porra de mundo é esse?”. Enrico costumava ser cínico. Provavelmente diria em resposta a si mesmo algo como “Câncer não escolhe suas vitimas por um processo de seleção moral. Acontece por pré-disposição genética e efeitos do ambiente”, mas ele estava muito perturbado. A vodca acabou, mas no porta-malas tinha mais.

Aquela cidade não podia existir. Parecia uma imagem de guerra de um país exótico e distante, crianças semi-nuas correndo entre os bananais. Só tinha bananeiras, casebres e miséria, em todos os cantos. O carro parou em frente a melhor casa da região, o que não significa grande coisa. Em uma cadeira da praia repousa o grande bêbado. Era aquilo que acontece conosco no final? Os transgressores, ébrios, sonhadores, todos terminavam derrotados, destruídos fisicamente e abatidos pela sensação de desperdício? Pai e filho se encaram e não dizem nada. As lagrimas daquele velho me comovem e me repulsam ao mesmo tempo. As crianças me observam com tímida curiosidade. Enrico se vira para mim. “Vamos embora”, ele quis ordenar, mas apenas suplicou, sem voz. Nego com um gesto, precisamos dormir. Aquela casa suja teria que nos abrigar.

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