quinta-feira, 22 de março de 2007

O Som da Serpente

"Jorge recebeu um dom divino. Jorge eleva os mártires e é um instrumento de Deus. Quer ser um bom homem e quer ser um poeta. Jorge tem uma navalha manchada de sangue. Cada estocada um história, cada morte um verso maior do antes. Ele passa a tarde inteira engraxando seus coturnos em seu quarto de hotel. Jorge tem que morar em quartos de hotéis, por motivos práticos. Trabalha a noite como vigia de um prédio público. Dificilmente faz alguma coisa, mas gosta de ficar acordado a noite toda. A noite é mais agradável do que o dia, a cabeça pensa melhor. Desde a infância ele ouve sons que ninguém mais é capaz de escutar. Por que ele é um predador e não se deixa ser enganado. O som de um chocalho, o som de uma serpente, os ruídos se intercalam e o deixam doente. O som fica mais alto, zumbindo na cabeça. Então começam os risos, os risos que zombam de Jorge. Jorge nunca fica calmo quando ouve os risos."

Uma paranóia épica, uma paranóia de sangue, uma chuva de éter enxaguando seu rosto.

"Jorge está nas ruas e não encontra um ponto de apoio. As suas mãos estão tremulas e ele não consegue controlar o seu corpo. As vozes estão mentindo, as vozes que falam em seus sonhos. A boca está seca e ele não se lembra do que fazer adiante. Jorge está na zona, mas não se interessa por putas. Nenhuma vadia suja o acalma, elas enganam e fazem os risos aumentarem. Deus não vem por elas, só a Serpente. Jorge precisa de alguém limpo, talvez sagrado. Na saída da igreja, Jorge reconhece a pessoa certa. A segue pela cidade, sem nunca se mostrar suspeito ou estranho. Jorge se aproxima e fala de seus medos e de suas dores. O homem sorri enquanto o acaricia e diz palavras de consolo. Jorge se anima e agradece em um tom singelo. O homem se vira, decidido a voltar para casa. Sente uma dor dilacerante nas costa, cai no asfalto e está morto. Jorge limpa a lamina e com os dedos escreve seus versos. Os versos são importantes para que Ele venha. Observa o corpo do pastor, imóvel e cada vez mais pálido. As retinas dilatadas, Jorge gosta de olhar para elas, todas às vezes. Os risos se calam toda vez que ele se perde nos olhos de um mártir, pois ele vê Deus e Ele o acalma e lhe diz que ele está fazendo tudo certo. Jorge sabe como calar os risos e derrotar a Serpente. Deus lhe deu o dom do silêncio."

Uma paranóia cega, uma paranóia incessante, uma chuva de pedras açoitando seu corpo.

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