sexta-feira, 13 de abril de 2007

Enrico, A Lagartixa Niilista – Desperdício de Vinho

Subindo a rua com uma garrafa de vinho vagabundo nas mãos, Enrico se encontra peculiarmente embriagado. Ele limpa os lábios úmidos e engole sem prazer a bebida amarga. Sorri sozinho e se deleita com a sensação de levitar sobre a calçada, acima de toda imundice da cidade. Em frente à igreja evangélica ele encontra um velho amigo, Ciro, um sujeito pequeno e estranho, com os dedos escuros e pupilas dilatadas, típico de um fumador de erva, sempre carregando um caderno velho e sem capa, onde anota seus poemas herméticos sobre tudo que ele pensa a respeito da vida. Enrico o acha bem engraçado e insignificante. Ele sorri e presenteia Enrico com seu hálito de cachaça. Recusa um gole de vinho e convida o amigo para ir ao bordel. Enrico gargalha e se diz sem dinheiro. Ciro diz que só quer se divertir um pouco por lá, sem fazer nenhum uso muito profundo das profissionais lá estabelecidas. Enrico gargalha mais uma vez e os dois seguem em uma marcha ébria para o puteiro. Enrico tenta organizar seus pensamentos, mas eles são rápidos demais e fogem por todos os cantos de sua mente, como fogos de artifícios que por engano foram detonados dentro de um recinto. É realmente uma pena, pensa Enrico, pois esse era um bom momento para um pouco de cinismo. Fica para mais tarde. Na casa de tolerância, eles se sentam em uma mesa escura e observam as garotas passarem. Uma morena de vestido negro senta no colo de Ciro e começa a sussurrar qualquer vulgaridade, que em sua mente limitada de prostituta de cabaré de 10 paus, acredita ser algo realmente erótico e excitante. Enrico engole a sua horrenda cerveja choca de latinha e sente um enorme desdém por Ciro, por sua expressão transformada frente ao assédio da garota e pela excitação incontida em seu sorriso. Sem nenhuma surpresa assiste aos dois subirem para o quarto, onde Ciro quebrará sua tola promessa de bêbado. Uma dor de cabeça decorrente do vinho barato começa a romper sobre a pobre lagartixa e isso aumenta ainda mais seu desprezo por todo aquele ambiente. Ele assiste um homem patético gastar centenas em questão de minutos, pagando tequilas para uma prostituta velha e feia. Duas garotas disputarem um mesmo cliente aos tapas e serem separadas pelos seguranças. Três adolescentes, com certeza virgens, observando de longe a performance de uma striper, encostados no balcão, rindo por trás de suas cervejas e de suas frágeis inocências, tímidos demais para se aproximarem. A cada uma dessas visões, a cada face sórdida daquele buraco sujo, a cada sofrível gole de cerveja, a sua repugnância aumentava. Nenhuma garota tinha coragem de se aproximar dele, pareciam notar um grau acentuado de agressividade naquela estranha criatura esquelética, sentado num canto sombrio e olhando fixamente para qualquer lugar que não era ali. O mau humor de Enrico o fazia fuzilar com pensamentos toda criatura infeliz, odiosa e estúpida que se refugiava naquele inferninho, em busca de companhia, emoção, prazer e todas as outras necessidades básicas humanas a eles negadas. E sua repugnância atingiu o auge ao notar ele, ali sentado em meio aquela imundice, fazendo parte daquilo tudo. Ele quis fugir dali, desintegrar naquele mesmo instante e reaparecer a milênios de distancia dali. Sem esperar por Ciro, ele deu um ultimo gole e foi embora, com a cabeça latejante e um gosto amargo na boca.

Após uma rápida passagem na farmácia e utilizar sem nenhuma prescrição ou moderação uma cartela de uma popular marca de analgésicos, engolidos com um único gole de suco de laranja, Enrico se sentiu psicologicamente mais disposto e resolveu não desistir da noite. Rumou para o bar mais próximo e pediu uma dose de caipirinha que escorregou deliciosamente por sua garganta a caminho de uma agitada madrugada em seu estomago. Com agradável surpresa notou duas belas garotas sentadas em uma mesa, tomando cerveja e rindo, parecendo totalmente deslocada naquele ambiente decadente. É claro, dava pra notar a quilômetros de distancia que elas estavam completamente chapadas. Enrico se juntou a elas, que se mostraram bem receptivas a ele. Elas eram simpáticas e de conversa fácil, riam de qualquer idiotice sem sentido que ele dissesse e bebiam num ritmo assustador. Porém, algo se abateu sobre Enrico. Foi completamente inexplicável e instantâneo. Um olhar trocado entre as duas, uma risada em um tom forçado, talvez algo leviano que foi dito, ele nunca soube ao certo. Mas algum tipo de paranóia foi despertada dentro dele e ele sentia que estava sendo mal tratado por aquelas meninas. Era uma certeza absoluta de que elas riam dele e o humilhavam, estavam ali apenas para brincar com a sua cara, se aproveitarem dele como se ele fosse algum coitado ou um idiota. Conforme essa certeza crescia, um enorme desconforto invadiu seu corpo e uma fúria contra aqueles rostos belos e ébrios se fez avassaladora. Com uma expressão assustadoramente vazia, Enrico se levantou e deixou o bar, sem dizer uma palavra de despedida. Enquanto andava pelas ruas, sem saber para onde ir, aquela raiva angustiante ainda borbulhava dentro dele e ele desejava encontrar uma forma urgente de externá-la. Ele queria socar algo que não sabia o que era, algo inalcançável e impenetrável que se punha em seu caminho. Ele queria bater nessa barreira invisível até seus punhos sangrarem, seus pulsos quebrarem e seu espírito estivesse em paz. Toda aquela noite parecia simbolizar cada um de seus fracassos e cada falha em seu caráter estava exposta de maneira irreversível, estava tatuado em sua alma. A madrugada estava perdida e nada poderia ser feito agora, a não ser ansiar por uma nova chance, uma noite onde ele pudesse beber, se divertir e voltar para casa com boas historias engraçadas para se lembrar, ao invés de uma seqüência patética de eventos que com muito esforço serão esquecidos. Em frente a sua casa, Enrico observa uma estranha movimentação em um bueiro. Aproxima-se e sorri frente à cena selvagem e dramática que ali se desenrola. Uma grande quantidade de formigas ataca uma indefesa barata e a come viva. Por um instante aquilo pareceu extremamente agradável para Enrico e ali entre aqueles animais rastejantes e imundos ele se sentiu confortável. Pela primeira vez na noite, estava em paz.

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