Fixando seus olhos nas chamas, o Poeta contemplava com satisfação resignada as folhas de papel se contorcendo e morrendo sob a ação do fogo. Aquela fogueira em um latão velho era o seu altar, onde o sacrifício supremo era feito. Pilhas e pilhas de sua obra máxima queimavam, e conforme as labaredas aumentavam, ele sentia que dentro dele algo se apagava. Era uma alivio.
Tinha sido um acidente. Não havia luz elétrica, então havia velas acesas pela casa toda. Algo lhe atormentava por dias, uma torturante memória que se repetia sem cessar, um erro imperdoável, um remorso que não se calava, a vontade absurda de tentar refazer sua ação em algum lugar no passado e a sufocante agonia de saber que não haveria redenção para seu crime. Tentando apaziguar a angustia em seu peito, ele escreveu a mão incontáveis linhas sobre o seu erro, refazendo a dolorosa cena, sem ocultar nenhuma humilhação ou culpa. Seus pulsos gemiam no espasmo que era aquele auto-flagelo. Ele leu mais de uma vez aquela carta sufocante, mas não houve alivio, apenas uma breve sensação de dormência, uma agonia letárgica que combinada com a fraca iluminação, tornaram um esforço tremendo manter seus olhos abertos. Ele adormeceu sobre a mesa, e ao despertar, esbarrou seu braço no apoio da vela, que caiu sobre suas folhas e causou um pequeno incêndio. O Poeta resolveu tudo com a ajuda de um cobertor velho, e com certo pesar observou as cinzas que se espalhavam sobre a mesa.
Algo aconteceu. A Musa passou por ele, como se nada tivesse ocorrido. Nenhum olhar de censura, nenhum riso de escárnio, muito menos mágoa entre eles. O Poeta sentiu a angústia morrer em seu peito e aquela lembrança se dissipar com um sonho desbotado e sem sentido. Ele sabia agora, tinha feito uma descoberta fascinante, que logo o consumiu como nenhum outro vicio já havia feito antes. Cada vergonha, cada memória triste, cada segundo perturbador de sua vida era transcrito para depois ser incinerado. Por dias ele se sentiu poderoso, invencível, um alquimista que podia manipular o próprio destino. Ele podia até cometer os piores pecados sem ter que se preocupar com as conseqüências. Tudo viraria pó. Sem lembranças, sem vitimas, sem remorso.
Seu reflexo no espelho lhe dizia que algo estava errado. Seu rosto havia perdido a cor, seus olhos não tinham mais vida. Seu corpo era um mero fantasma, translúcido e enfraquecido. Dentro dele, um vazio imensurável, um abismo que jamais seria preenchido, uma desesperança tão profunda que o único desejo que restara era o de desaparecer. A noite, não mais sonhava. Eram apenas grandes intervalos escuros entre o adormecer e o despertar. Seus amigos não o reconheciam, ele era uma memória perdida no tempo. A Musa o abandonara, e seus poemas eram vazios, desprovidos de alma e sentido. Até que um dia ele não mais pode escrever. Na fúria de apagar suas fraquezas, e moldar se um ser perfeito e indestrutível, ele percebeu, ele havia destruído seu próprio âmago, sua ânsia de viver e de servir bem a quem amava. Não havia mais nele o ímpeto criativo, nem a vontade de reconstruir o mundo a sua maneira. Tudo era cinza, vazio e irreal. Desprezava a tudo e não pertencia a nada. Só havia vaidade, luxuria e cobiça. Seu ego inflamado o conduziu a esta criatura triste e solitária. E no brilho final produzido por sua mente, ele soube o que fazer.
Levaram dias. Ele não comeu, nem dormiu, apenas escreveu. Cada lembrança, cada glória, cada instante ainda vivo em sua cabeça. Seus sorrisos, seus beijos, suas brincadeiras na infância, suas descobertas, suas mentiras. Pilhas de papeis se acumulavam sobre a mesa. Quando terminou, colocou tudo em uma grande caixa de papelão. Em um terreno baldio, ele fez uma fogueira num velho latão. Quando as folhas começaram a se queimar, ele sentiu um doloroso alivio. A lenta morte do seu ego produzia um estranho formigamento em seu corpo e uma névoa fria tomava conta de seus pensamentos. A cada memória queimada, sua vista se embranquecia mais. Quando a última página se consumiu, ele estava livre, desconectado do mundo para sempre, como sempre havia desejado intimamente. Sua existência seria ignorada, sua mãe nunca o havia parido, seu pai nunca o concebido, ninguém o amado, nem o desprezado. Ele era apenas pó levado pelo vento.
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Um comentário:
um dia a gente se liberta. qual é o preço? o que nos prende?
ano novo vida nova, ou ano novo velha vida? veremos. eu apostaria um nos velhos problemas como se tivesse um four de ases. mas blefo e acredito nas mudanças como quem aposta tudo em uma rodada perdida.
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