domingo, 22 de abril de 2007

O Incrível Homem Que Foi Esquecido

Desperto pelo barulho de marteladas na parede de meu quarto, senti um indescritível gosto amargo em minha boca, que encarei como um mau presságio naquela manhã de sexta feira. Ao abrir a porta, descobri ser meu pai o responsável por aquela merda. Ele estava arrumando o batente de minha porta, que precisava de reparos havia meses. Amaldiçoei-o com o olhar, por ele ter escolhido os meus minutos finais de sono para começar o conserto, mas ele sequer me notou. Continuou com seu barulho infernal enquanto eu descia para a cozinha.
Sobre a mesa repousava um copo de café com leite, frio como o desprezo que senti por minha mãe por ter me deixado só aquilo para comer antes da escola. Bebi com desgosto num único gole, e aquela água suja desceu gelada pela minha garganta e se juntou ao gosto amargo que ainda não havia se dissipado. Senti ódio, limpei minha boca com uma toalhinha nojenta e fui embora.
Consegui um lugar para sentar no ônibus, encostei minha cabeça na janela e fiquei pensando em algumas musicas e no que tinha para fazer na escola naquele dia. Estava sonolento e sentindo-me desconfortável. Na verdade eu queria mesmo era tomar um banho. Tinha tomado antes de dormir, mas acordei todo suado, estava me sentindo repugnante. Enquanto acariciava meus lábios rachados, uma garota da minha classe entrou no ônibus. Fiquei esperando ela me cumprimentar, mas ela passou direto por mim e foi para o fundo do corredor. Fiquei puto com aquela vaca na hora. Ela era uma bonitinha esnobe, eu sabia, mas nunca tinha feito aquilo antes. Como se eu desse a mínima, ela podia ficar com os beijinhos na buchecha pra ela. Foda se.
Na classe, eu me sentei na ultima carteira, bem no canto da sala, para que eu pudesse me recostar nas duas paredes conforme passasse o dia. Meus amigos não paravam de falar merda, principalmente sobre futebol e garotas, e eu não estava com espírito para aquilo. Um dos idiotas mostrou um machucado que tinha feito num acidente de moto que me virou o estomago. Era uma ferida do tamanho de uma buceta bem no meio da batata da perna. Fiquei com náuseas o resto do dia por causa daquele estúpido. Na hora do intervalo fiquei sentado na escada enquanto meus amigos conversavam de pé a minha frente. Estava totalmente deslocado e comecei a me sentir mal, uma tontura e minha vista começou a embaçar. Subindo as escadas de volta a aula, eu cai sobre um garoto que me seguro assustado. Ele perguntou se eu estava bem, mas antes que eu respondesse, ele me deixou sentado, e foi com todos os outros lá pra cima. Fiquei totalmente sozinho, com a cabeça enfiada entre as pernas. Me senti um pouco melhor fisicamente, mas estava com saco cheio demais para voltar para a sala. Resolvi ir embora. Achei que o zelador ia me encher para me liberar, ficar perguntando de que turma eu era ou algo assim, mas ele nem se deu ao trabalho. Olhou como se me atravessasse, como se eu nem estivesse passando. Achei ótimo e fui embora sem problemas. No ponto de ônibus, duas garotas começaram a falar um monte de putarias uma pra outra, rindo alto, como se eu não estivesse ali. Elas subiram em um ônibus qualquer, que não era o meu, e pela janela eu as vi rindo, olhando para minha direção. Como se eu me importasse com aquela merda toda.
Por fim meu ônibus chegou, dei sinal, mas o cretino não parou. Xinguei o filha da puta bem alto e esperei mais cinco minutos por outro. A mesma merda, passou direto por mim. Fiquei fudido demais e fui embora andando mesmo. Fui me sentindo um miserável o caminho todo, pensando que porra de manhã tinha sido aquela. A beira da avenida observava os carros passarem e senti uma irresistível atração por aquelas rodas que giravam em velocidade. Pareceu-me por um segundo que embaixo de um automóvel seria um lugar extremamente confortável para se estar, era só se jogar ali no transito e repousar. Afastei esse pensamento estúpido da minha cabeça com um susto e segui para casa. Me sentia um fantasma, um corpo sem vida, uma vida sem dono. Senti-me completamente desconectado de todo resto do mundo, marginalizado por tudo e detestei a todos por isso. Meu estomago ruía na fome e no horror daquelas chagas, e a sensação de abandono atingiu seu clímax em um suspiro que pareceu durar uma eternidade. Disse a mim mesmo enquanto entrava em minha casa, que eu era um fresco, um mentiroso narcisista que gostava de se martirizar. Provavelmente aquele espetáculo patético era só um jeito de chamar a atenção de todos. Mas ao sentar em minha cama, aquela sensação ruim não me deixava. Sem nenhuma surpresa ou admiração, assisti meus braços se tornarem cada vez mais pálidos, até desaparecerem por completo. Minhas pernas e meu tronco murcharem sob minhas roupas e se extinguirem. Em meu ultimo pensamento, antes que minha cabeça desvanecesse, finalmente compreendi aquele gosto amargo. Sobre a cama, restaram apenas meus trapos, como uma fantasmagórica evidência de minha curta existência. Até minha mãe entrar no quarto, dobrar tudo e os guardar no armário, sem aparentar nenhuma comoção. Lá fora faz um belo dia, ela pensou ao sair.

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