quinta-feira, 21 de maio de 2009

Desafino

“Você já pensou que na concepção de uma mente cristã, há um deus entediado olhando para nós o tempo todo, e que nossa missão é entretê-lo?”. Eu não refleti muito sobre aquela teoria, estava concentrado em extrair algum som do meu velho violão. Também não fui capaz de notar que Enrico estudava abismado seu reflexo há alguns minutos. “O que nós podemos fazer a respeito disso? Nós fomos criados para servir ao acaso, a vida inteira uma inútil peregrinação”. Tudo em que eu pensava era na necessidade de trocar as desgastadas cordas de nylon. A afinação estava instável. “A história humana consiste num filme pornográfico repetido incessantemente até que não exista mais ninguém para assistir”. O som dos meus acordes era grotesco. Um ruído sujo, dissonante, sem consistência, lixo sonoro produzido por dedos e ouvidos ineficazes. “Eu não tenho ambição alguma a não ser não fazer parte disso. Todo vez que eu tento fazer parte de alguma coisa eu acabo fodido, machucado e envergonhado. É como se eu traísse minha natureza... Eu não quero mais ter vergonha de quem eu sou.” Eu tentei um dedilhado nas cordas mais agudas e o som se torna mais agradável, ainda que simplório. Eu não presto pra acordes, só domino as notas soltas e as frases repetitivas. “Eu sou o que eu escolhi ser, diante das minhas perspectivas. E se diante da perspectivas dos demais eu sou um lixo... para mim eles também não passam de uns merdas. A diferença é que eu estou sozinho”. Finalmente algo parecido com uma canção ecoa da caixa acústica. Uma bobagem, uma melodia infantil, mas que secretamente me trazia orgulho. “Que porra você tá falando, seu bêbado?” Enrico se desprende do espelho, olha pra mim e sorri. “Que você toca mal pra caralho”.

Um comentário:

Renan Rodrigues disse...

muito bom. e ainda bem que tava tocando o violão, não o acordeon