sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Confraria

O rosto de Enrico estava horrível. Nós não somos nenhum exemplo de crianças saudáveis, mas ele estava pior do que o habitual. Após passar mais de um dia desaparecido, ele me ligou às seis da manhã, sussurrando para que eu fosse buscá-lo. “Onde? Puta merda! Como você foi parar ai?”. Enrico havia sumido logo após uma consulta no dentista. Enquanto não havia ninguém na sala, ele decidiu ingerir um pouco de anestesia, que aparentemente causou um forte efeito após se misturar com as inúmeras substancias já presentes no organismo do menino. “Me lembro de sair do consultório tropeçando. Andei sei lá quanto tempo até chegar a um ponto de ônibus. Ai vinha um ônibus escrito “Liberdade” e eu acho que interpretei isso de maneira literal”. 20 horas depois ele despertou em uma lixeira nos fundos de um restaurante chinês, coberto por biscoitos da sorte estragados. Ele tinha um galo na cabeça, um pulso bem machucado e os joelhos esfolados. O que ele não tinha mais era sua carteira. “Sabe, vendo toda aquela sorte jogada fora, eu fiquei pensando na ansiedade humana de antecipar o fim. Entende?” Sim Enrico. Não se alcança a liberdade de ônibus, o nosso destino não está num pedaço de papel e muita vezes as nossas certezas não passam de lixo amanhecido.

“É impossível criar um ser humano funcional. Não importa como você crie uma criança, ele vai crescer para virar uma criatura grotesca como todos nós. Olha só para nós dois, eu e o Gabriel, por exemplo,”, disse Enrico, apontando para mim e para ele mesmo, repetidas vezes, enquanto discursava sua tese para uma amiga nossa. “Eu venho de um lar despedaçado, pai ausente, mãe cachaceira. Porra, eu passei a maior parte de minha infância em uma boate, sendo pajeado por um travesti. Olha só o que eu virei.”, ao dizer isso ele abriu os braços e sorriu forçadamente. “Mas por outro lado, nosso colega aqui. Família estruturada, pai e mãe carinhosos, irmã e primos companheiros, tios, tias, avôs... escola, brinquedos, cachorrinhos... e olha só pra ele! Ele é tão paranóico, depressivo e socialmente inapto quanto eu! Não tem jeito, você sempre vai foder com a cabeça da criança, não importa como você a eduque.” Enrico olhou para mim em busca de apoio e eu respondi com um gesto afirmativo. A nossa amiga olhou alternadamente para mim e para ele antes de declarar: “Ah, vocês estragam tudo...”. Cinco minutos antes, ela estava alegremente falando pelos cotovelos sobre o fato de sua irmã estar grávida. Ao ver a expressão levemente angustiada no rosto da garota, Enrico sorriu triunfalmente.

“Qual é o seu signo?”, me perguntou um cego no metrô.
“Touro’, eu respondi. “E do seu amigo?”, ele indagou ao mesmo tempo que acertava Enrico com uma bengalada na perna, enquanto o mesmo se pendurava na barra de apoio do vagão. “Ele é de escorpião”, eu respondi. “Bom, uma boa dupla”, afirmou o velho, fitando fixamente o infinito com seus olhos vazios. “Você é um criador, e ele um destruidor. Mas não no mau sentido. No sentido de derrubar velhas estruturas, jogar fora o que não presta”. “É, ele é meio iconoclasta...”, eu disse, enquanto tentava me desviar de Enrico, que estava em meio a uma perigosa acrobacia. Ele ficou de cabeça para baixo, com as pernas presas na barra, observando o cego. Após alguns segundos, ele perguntou. “Você acredita que os astros influenciam nossas personalidades?”. O velho balançou a cabeça. “Os astros não influenciam nada, eles apenas contam uma história. Se você olhar bem no fundo do universo, à distância de 13 bilhões de anos luz, você vai ver o inicio de tudo. Em algum lugar está também o fim. É uma questão de observar da maneira correta”. Enrico, a essa altura extremamente vermelho pela pressão sangüínea em sua cabeça , questionou mais uma vez. “Quer dizer que não importa o que eu faça, tudo já está definido?”. O velho tornou a balançar a cabeça. “Não garoto. Você já fez. Tudo já está feito”. Quando descemos do metrô, Enrico parecia extremamente tonto, e eu não acho que foi por causa de suas acrobacias.

Uma vez fomos expulsos de um puteiro e eu me lembro de berrar para um segurança: “O fato de eu ser um merda não te dá o direito de me tratar como um!”, Foi uma frase extremamente difícil de elaborar no estado etílico que eu me encontrava, mas pareceu causar algum efeito no sujeito, ainda que fosse cômico. Alguns meses depois eu repeti, de maneira patética, a frase para uma garota que me deu um fora. Lá estava, a mesma expressão confusa, uma mistura de piedade com vontade de rir. Talvez a minha intenção fosse demonstrar sofrimento através de uma piada. Mas quando Enrico pixou essa sentença no outdoor do candidato a prefeito do partido da situação de nossa cidade, assim como sempre, ele elevou o efeito de minha criação a um novo nível.

2 comentários:

Thais Sena disse...

Foda!

Ps: só pra não ser muito deprimente - "0 comnetários" - vou comentar agora toda vez que passar aqui!

Fernanda Doniani disse...

Todos os amigos são bêbados; os cegos do metrô, videntes; e a próxima geração, perdidamente perdida.

Muito béém, Crouch!