“A humanidade é uma merda de raça que prefere reclamar do trânsito ao invés de dançar pelada debaixo da chuva”, - Enrico Roccato do alto de uma sacada, diante do pátio da Matriz, onde fiéis erguiam suas velas e cantavam suas canções. Era sexta-feira santa.
Nós tinhas um hábito freqüente de olhar as coisas de cima pra baixo, num misto de arrogância boçal juvenil e estranhamento alienígena. Sentinelas alados, anjos da discórdia, ou qualquer merda pretensiosa dessas. No caso, observávamos uma procissão, uma base da Policia Militar e um ponto de ônibus, como se tudo fizesse parte da dimensão paralela B.I.Z.A.R.R.A da qual jamais entenderíamos ou faríamos parte.
Mas logo avistamos um membro na nossa raça de elite no meio daquela babaquice. Um velho bêbado que tinha saído do bar e estava fazendo graça pra duas gostosas no ponto de ônibus. Fazia caretas, sorria abobado, dava uma dançadinha, entre outras diversas técnicas do Grande Manual de Palhaçadas. Uma delas ria e era censurada pela outra. Não convém encorajar gente assim.
Então o ônibus delas chega, elas se levantam e dão o sinal. Aí a que estava rindo diz “tchau vovô” com escárnio/simpatia e o velho clown saí dali vitorioso com aquela migalha de atenção. A dimensão B.I.Z.A.R.R.A perdia um pedacinho.
Enrico ri, mas seu alvo é outro. “Olha só aqueles putos!” e aponta pra procissão que rumou para o meio da avenida e parou o trânsito da saída do supermercado, os motoristas putos diante daquela demonstração de fé bem no meio do caminho, onde já se viu, vão rezar pra lá. E era difícil dizer quem era mais absurdo, os que erguiam suas velas pro fantasma da Páscoa passada, os que confiavam na tecnologia da buzina para interromper transes religiosos ou os dois bobos que riam do alto da sacada, com a certeza de serem um caso a parte de todas essas pataquadas da existência humana.
A multidão se dissipa, os carros seguem rumo aputaquepariu do desenrolar cotidiano perpétuo, dois moleques matam suas latas de cerveja numa sacada. Era tudo comum e absurdo, era há tanto tempo assim que o tempo nem parecia tempo, só uma pintura num painel, e nós éramos espíritos que a habitavam, que nem num filme lá do Orson Welles.
Nada se repete e o absurdo era que isso fazia tudo sempre igual. E você via aquela base dos coxinhas, como se fosse possível fazer mais do que vigiar o Caos, e como viver o dia a dia é seguro e racional, até que você coloca 15 mil dias seguidos na mesma merda em perspectiva e então, meu deus, é hora de acender uma vela prum judeu fudido que morreu igual a outros 10 bilhões de coitados que nem tem três feriados dedicados ao nascimento, morte e ficção.
Enrico amassou a latinha, sorriu pra estátua do João Baptista não decapitado e falou “vamo embora, vamo lá organizar essa porra de funeral”.
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