A carcaça de Marco Roccato estava sobre a mesa. O caixão era dos mais vagabundos. Estava com seus óculos escuros de grau, sua camisa florida aberta, uma bandeira do Juventus da Mooca de cobertor. Quase sorria o filho da puta. Os convidados do festim fúnebre observavam o corpo com curiosidade e cochichavam e riam baixinho pelos cantos. Todos tinham uma história engraçada/escrota pra lembrar do velho Marco, aquele canalha sem vergonha que devia dinheiro pra metade da sala.
Não tinha padre naquele fuzuê todo, então o primogênito e agora Rei Enrico do clã Roccato, já devidamente coroado e batizado com doses do uísque favorito de sete entre dez homens de meia idade, realizou um discurso em honra a vida e glória do seu papai. Vestido de negro, mais pálido que o lazarento ali morto, usando um par de óculos verdes translúcidos igual que nem seu progenitor usava.
O discurso que se seguiu será aqui relatado:
- Marco Roccato nunca fez absolutamente nada que o desagradasse. Nunca entrou numa loja de construção para escolher piso. Nunca limpou uma calha. Nunca preencheu um formulário da receita federal. Nunca pediu desculpas apenas por educação. Nunca aceitou ordens que julgasse estúpidas. Nunca assistiu a uma peça de teatro para agradar a namorada. Nunca foi gentil com uma mulher sem estar mal intencionado.
Por esse modo de vida, vocês o consideravam um escroto, um figura e um canalha. Ele era tudo que vocês desprezam e tudo que querem ser. Era livre, um sociopata, um bêbado vagabundo que nunca levou um segundo da vida a sério. E isso é uma ofensa para maioria das pessoas, que querem ser levadas a sério o tempo todo.
O conceito de diversão dele envolvia cachaça, putaria e explosões. As crianças estavam sempre por perto dele, por que ele sempre tinha os melhores rojões e fazia uso deles com freqüência. Na visão do meu pai um menino começa a morrer por dentro quando perde o interesse por explosões. Ai eles se tornam homens sérios, carcaças ambulantes, lixo tóxico escravos do ideal projetado pelo Império Intergaláctico do Vaticano Corporativista do Senador Pol Pot.
Quando eu era um pivete, meu pai era meu herói. Eu achava ele o cara mais engraçado do mundo. Ele me levava pra ver jogos na Rua Javari, me ensinava palavrões em italiano e estimulou meu hábito de subir em telhados para rir das pessoas que ficam no chão com medo de cair. Depois com os anos me dei conta que ele era um péssimo marido, um parceiro de negócios tenebroso, um talarico imundo, um ser humano que não valia a confiança de ninguém.
A vida desse heróico merda, encerrada de maneira adequada com um enfarto numa privada suja em um banheiro fedorento a 12 milhões de quilômetros do ser humano mais próximo, me ensinou coisas, tanto nos seus erros e acertos.
A lição é: a vida é uma piada curta que não vale uma noite de sono perdido. Mas em meio a isso, não pise sobre ninguém, não se tranque e nem de as costas aos seus parceiros. Rir sozinho da piada é o final mais triste.
Ninguém se manifestou após essa proclamação. Logo retornaram aos risos e fuxicos. Na porta do salão uma mulher velha, estranhamente familiar, olhava a cena Enrico caixão Marco. Enrico suspirou e caminhou até ela. Não sei o que conversaram. Sabe lá o que dizem mãe e filho um ao outro após cinco anos sem se ver. Houve um gesto de carinho desajeitado, e ela partiu, sem se aproximar do cadáver. Sempre haverá tempo para se visitar os mortos.
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