sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Os Tigres do Jardim

Toda noite o ritual se repete. Antes de apagar as luzes tenho que apanhar a pilha de gatos sobre a minha cama e jogá-los no quintal. Lancelot se esconde embaixo da cama, Bituca protesta com um miado estridente, e o velho Lestat apenas suspira conformado. Tem um bando deles nessa casa desde que eu me lembre. Foram tantos, alguns de presença fugaz e pouco marcante, mas outros com histórias memoráveis.

O primeiro deles foi o Farinha, um gato amarelo e rabugento que dormia sobre uma pilha de jornais velhos. Ele não era muito brincalhão e me arranhava às vezes, mas eu adorava ver as lutas em que eles se metia. Sempre que algum gato de rua invadia seus domínios, ele prontamente se lançava em duelos pavorosos, cheios de rosnados assustadores e quedas espetaculares do alto do telhado. Tinha um gato siamês gigantesco que sempre vinha roubar comida. Farinha nunca fugia da briga, apesar de ser bem menor. Ele era meu herói, mas infelizmente uma dessas batalhas acabou custando caro demais. Uma das feridas de guerra infeccionou e Farinha morreu. Ele tinha cinco anos.

Alguns anos depois apareceu o Juan, disparado o gato mais insano que eu já tive. Ele só ficou comigo por uns seis meses, mas foi uma estadia intensa, onde protagonizou as cenas felinas mais bizarras que eu já vi. Uma vez ele saltou sobre as costas da minha cachorra e por alguns segundos pareceu galopar no lombo dela. Ninguém acredita em mim quando eu conto essa história. De fato, eu mesmo mal acredito. Juan sempre ficava preso no alto da goiabeira e o resgate durava horas, noite adentro. No dia seguinte, lá ia ele de novo, sempre fora do nosso alcance. Ele tinha o hábito de dar cambalhotas, esmurrar ursinhos de pelúcia e jamais cagava fora de sua caixa de areia. Uma manhã simplesmente sumiu e nunca mais voltou. Espero que alguém o tenha adotado e que ele tenha vivido bem.

Logo depois os gêmeos vieram, Lestat e Lucrécia. Lucrécia era medrosa, tinha medo de abacates, sacolas de papel, instrumentos musicais e do reflexo dela no espelho. Mas eram bonés a sua grande fobia. Pegar a Lucrécia no colo com um boné na cabeça era garantia de alguns arranhões. Era uma gata especialmente carinhosa, capaz de ficar horas ronronando no meu colo, afofando de maneira irritante as minhas pernas com suas garras afiadas. Tinha um miado baixo e curto diferente de qualquer outro gato. Morreu de câncer aos oito anos.

Quem nunca se bicou muito com Lucrécia foi Bituca, a nossa doce pantera selvagem. Tímida com estranhos, histérica com os donos e terrível com os outros gatos. A única gata no mundo que eu conheço que é capaz de rosnar como um cão. Vive brigando com os outros gatos, morde todo mundo, me arranha toda hora.  Mas não sai do meu colo e reclama quando não lhe dou atenção. Realmente uma mulher misteriosa essa gata cinzenta.

Por último o meu velho amigo Lestat. Onze anos de vida, mas poderiam ter sido nove, já que há dois anos ele se meteu numa briga com um cão labrador. Ele saiu vivo dessa de maneira incrível, mas não sem o custo de uma pata quebrada. Hoje ele manca orgulhosamente por ai, gordo e sereno como um Buda. Não conte para os outros gatos, mas é ele o meu preferido. Ele é a síntese de tudo que apreciou nos felinos. Silencioso, paciente, imprevisível, companheiro e extremamente orgulhoso. Aqueles que detratam os gatos e os acham arrogantes são os que verdadeiramente precisam ser mais humildes. Os gatos são nossos parceiros, não nossos servos, e isso diz muito do caráter de quem os despreza. Por que um gato deveria se curvar para um humano? Por que essas criaturas magníficas nos devem alguma satisfação? Se os cães quiseram se comportar assim, o problema é deles. Nós oferecemos comida e abrigo, eles nos pagam com afeto e sabedoria. É possível aprender muito com essas criaturas suaves, noturnas e poéticas, donas de espírito irremediavelmente livre. Dóceis e indomáveis, me sinto muito grato a eles por hoje ter um pouco de felino dentro de mim.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Espectros

Olho para todos os rostos. Não vejo nada. Eles nada me oferecem e eu nada tenho para dar em troca. Nenhuma expectativa, nenhum futuro. Apenas passado e promessas. Eu sorrio para os rostos. Eles sorriem de volta. Sorrisos vazios, sem vida, uma contorção facial, nada mais. O som das palavras é monótono, desestimulante. Todos nós já ouvimos essa conversa antes. Todas as conversas levam ao mesmo lugar. Todos os rostos são iguais no final. Eles olham para mim e não me enxergam, apenas me julgam, uma velha memória, um objeto decorativo de suas rotinas. Eu os vejo da mesma maneira, e no fim somos todos espectros, corpos translúcidos sem valor, reflexos de nossa própria apatia. E quando eu busco seus olhos, procuro algum brilho, espero qualquer sinal de que ainda sou capaz de provocar alguma faísca. Mas seus olhos são sempre opacos, tão opacos quanto os meus.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A Mosca

Chutei a carcaça da mosca morta para fora do meu quarto. Eu a matei por causa do zumbido, o barulho me irritava. Sem dúvida um motivo mesquinho para se matar. A mosca só estava seguindo seu instinto, batendo suas asas, se alimentando dos meus restos, se aproveitando da minha imundice. Talvez eu só a tenha matado por instinto também. Qual a diferença entre nós dois afinal? Matéria orgânica de curta existência, regida pelo impulso de sobreviver por mais um segundo. É fácil colocar a humanidade num pedestal, o topo da cadeia evolutiva, os jardineiros do Éden. Não é assim que eu me sinto. Não há nenhuma racionalidade por trás dos meus atos, não há nenhum mecanismo lógico movendo minhas ambições e não há nenhum sentimento divino guiando minha vida. Apenas atividade hormonal intensa, do meu cérebro aos meus testículos, um mero primata bípede. Comer, cagar, dormir e foder, eis o sentido da vida. Todo o resto é apenas um embuste para comunicar o resto do mundo sobre o seu progresso na realização de tais objetivos. O amor por exemplo. O amor é a forma que suas glândulas cerebrais dizem ao seu corpo: “Procrie, fique por perto do seu parceiro e ajude a cria crescer”. É isso, um mecanismo de sobrevivência da espécie, uma arma evolutiva. Agora eu penso na mosca morta. O instinto ordenava que ela se aproximasse de mim, rastejasse por minha pele e desovasse em minhas feridas. Quando larvas eclodissem em minhas chagas e se desenvolvessem alimentando-se de meu pus, a continuidade da espécie estaria garantida. Então me questiono: “Qual a diferença entre o amor e o instinto da mosca? Atração carnal, cópula e nascimento. Não é isso o que move o amor?” Bem, isso não importa mais para essa mosca agora. Eu a matei, talvez por mais do que pelo zumbido. Talvez eu a tenha matado pela sensação de controle, pelo anseio humano de interferir e subjugar a natureza ao seu redor. Mas novamente, eu me vi sobrepujado pelo instinto.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Contra a Parede

Eu me sinto abençoado
Meus lábios cortados
Nunca beijaram tão bem

Estarei sempre em dívida
Sua calorosa mentira
Fez eu me sentir alguém

Em silêncio fulguro
O amor é um estupro
Contra a minha estupidez

Eu sinto falta do desespero de ser seu

Entrego-lhe a mensagem
Sem tempo para miragens
Minha carne exposta a você

O mesmo velho perfume
Que me atraí e me pune
Voltou a me vencer

A marca de suas unhas
Da cor da minha fúria
Que o tempo não desfez

Eu sinto falta do que se perdeu contra a parede

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Para o coração de cada homem, uma estrada perdida

Eu me enganei quanto a Enrico Roccato. Achei que ele fosse um clichê, um niilista raso desprovido de humildade e bom senso, um moleque cheio de rancor querendo descontar no mundo a sua ira. Não, esse não era ele, era eu. Era eu o pivete arrogante o tempo todo. Enrico é muito mais do que isso. Hoje eu o vejo como um protótipo de um animal iluminado, lúcido demais para o nosso tempo. Desde que eu o conheci, há cerca de um ano e meio, minhas certezas foram pulverizadas e a realidade se tornou cada vez mais tênue sob minha percepção. Enrico não tem laços familiares, não tem ideologias, não tem crenças, não tem um trabalho, não tem senso cívico. Mas isso são detalhes irrelevantes, meros traços de seu caráter. O segredo por trás de sua sabedoria é que ele não tem esperança. O que é a esperança senão a razão de todos os anseios? O que é a esperança senão um eufemismo para a agonia? O espírito de um homem só será livre quando a esperança se for, e nele ainda restar a vontade de viver. A vontade selvagem de fazer carne e alma pulsarem até o último suspiro. Sem esperança, sem remorsos, sem hipocrisias. Enrico viu que a questão da vida não é o domínio da razão sobre os instintos, e tampouco o contrário. Instinto e razão são duas expressões da mesma natureza, da mesma origem, que é a vontade de existir e provar sua existência ao resto do universo. Por trás de cada ação, de cada conversa, de cada paixão, há um homem gritando por atenção, para que todos notem quão brilhante sua alma é, para que todos sintam o calor de seu coração em chamas. Enrico desistiu disso. Ele sabe que ninguém poderá conhecer a real essência de outra pessoa. Por isso ele se satisfaz com seu próprio brilho, com suas próprias chamas. Ele não mais espera por compreensão externa, ele não precisa de desculpas por ser o que é. Diante desse homem, venho perdendo a fé em tudo em que me ensinaram, e não vejo mais propósito em fazer o que supostamente é o correto. Tudo em que eu consigo pensar é que a estrada para redenção leva a um abismo e por mais que meu espírito brilhe, por mais que meu peito se contorça em chamas, nada será o suficiente para satisfazer o despropósito de minha existência. E por mais que eu me questione, não consigo me ver livre da esperança de chegar ao fim do caminho e encontrar uma resposta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Estigmas

Nossa busca espiritual recomeçou às oito da noite de uma sexta-feira. De boteco em boteco, de puteiro em puteiro, mulheres nas esquinas, mulheres na pista, “Ei mano, vai casar com esse baseado? Passa a bola, porra!”. Em algum momento Enrico perguntou “Já viu Deus agora?”, “Não, ainda não.”, “Então bebe mais, seu merda!”. Eu bebi, mas Deus não apareceu naquela noite.

Eu sempre tive uma obsessão por anjos. Quando eu era criança ficava olhando os vitrais da cúpula da igreja do meu bairro e ficava fascinado com um em particular, que mostrava um anjo segurando o braço de Abraão, impedindo que ele sacrificasse o filho. Sonhei inúmeras vezes com anjos, li sobre o assunto e continuei acreditando neles por um certo tempo, mesmo depois de parar de crer em Deus, sei lá porquê. O que eles representam para mim afinal? Por que eu continuo procurando por anjos nos lugares mais sórdidos?

“Budismo é a religião mais inteligente que existe”, eu afirmei, deitado na mesa de sinuca. “Justifique-se”, ordenou Enrico, sentado no chão. “Pois não. O budismo, e eu me refiro ao pensamento original de Buda, não as formas como ele é praticado hoje em dia, que não passam de distorções e fusões com outras religiões, é a religião mais inteligente por que nela não existe Deus”. Enrico ficou em silêncio reflexivo por alguns segundos. “É um bom ponto. Você tem mais algum?”. “Sim senhor. Um aspecto do budismo que me agrada é que ele prega a iluminação espiritual através do questionamento e do auto-conhecimento. É exatamente o oposto das religiões monoteístas, que pregam a subserviência. A posição básica do catolicismo é ficar de joelhos, por exemplo. Outra coisa, na cultura grega, Prometeu é o herói da humanidade, aquele que trouxe luz e o conhecimento para todos. Sabe quem corresponde a ele no Cristianismo? Lúcifer. E o que ele é considerado? Um arrogante desgraçado que questionou Deus e quer foder com todo mundo...”. Eu poderia ter continuado por horas, mas o dono do bar apareceu: “Já tá fechando aqui. Vão blasfemar em outro lugar.”

Nós estávamos deitados na grama, no alto de um morro, a beira da Via Anchieta. O velho Chevette tinha ficado alguns quilômetros para trás no acostamento, com a bateria arriada. Obviamente nós estávamos bêbados, por isso largamos o carro, temendo ser novas vítimas da lei seca. “Eu sinto pena desses otários que procuram uma buceta ou um caralho por aí que vai redimi-los de toda a miséria que ele sentem, de todo esse lixo que eles acolhem. Então o objetivo da vida é esse? Um prêmio de consolação?”, praguejou Enrico. “O que é o paraíso afinal?”. “Eu não sei, nunca pensei muito sobre ele”, eu respondi. “Quando eu tinha uns nove anos e fazia catecismo só tinha medo do inferno”. Enrico concordou com um gesto. “É isso que eles nos ensinam, a ter medo da derrota, da humilhação, de ser um fudido. É pra ninguém ter coragem de correr riscos, questionar esse padrão escroto de vida. O paraíso é só uma promessa, mas o inferno...”. Do outro lado da pista o Sol começava a nascer. Então eu falei: “O lance da vida é se jogar de cabeça e aproveitar a brisa da queda. As pessoas ficam na beira do abismo, se perguntando se devem pular ou não. Elas deveriam se perguntar o que é que as prende ao chão”. Não tenho certeza do quis dizer.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Nem Migalhas, Nem Ilusões

Olho para o infinito e busco a mim mesmo
Procuro saídas, um sonho que valha a pena
Sentimento impreciso, mágoa, fúria ou medo?
Condenando a vida a repetição da mesma cena

Outra noite de miragens e eu não sei o que sou
Não é mesmo um milagre que alguma coisa sobrou?
Não me sinto inteiro, eu pressinto sufoco
Devo ser sereno quando sonhos ainda são sonhos?

A dúvida me lancina, evito confrontos
Cultivo um peito cheio de rancor
Paixão que fascina a um ponto sem retorno
Acordo refeito, mas ainda sinto o ardor

O silêncio é farsa, o silêncio é dor
O que eu tenho não basta e o que basta é tão pouco
Eu não tenho respostas, eu mal sei as questões
Nada disso me importa, nem migalhas, nem ilusões

Meu jogo favorito é fingir pretensões
Um fracasso a mais, mas aprendi a lição
Tingindo de tinto meus mil perdões
Esquecido em paz terei redenção

domingo, 2 de novembro de 2008

Majestade Esfarrapado

Quando ele vinha, as crianças riam
Sempre muito altivo em seus farrapos
Seus adornos eram flores e feridas
Pendia como um anjo mutilado

Ele me disse: “Meu amigo,
Eu era a sua cara com sua idade
Eu já tinha talento pra ser mendigo
Orgulhoso demais para ter vaidade”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado

Acendeu a brasa do cachimbo
Tirou uma cachaça do casaco
“Sonhar é tudo que eu preciso
Quem sonha nunca está errado”

Marinheiro louco espera a maresia
Brisa boa como um beijo demorado
“A felicidade é mesmo uma menina
E cortejá-la é o que eu faço ”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado

Espectros dançavam na esquina
Se aqueciam com o fogo da madrugada
Cantaram até nascer do dia
Então o cortejo seguiu a estrada

Nunca mais vi meu amigo
Fiquei com tudo que foi ensinado
“Na vida o maior perigo
É deixar a fome te fazer de escravo”

Adormecido no jardim
Sonhou ser coroado Majestade Esfarrapado