quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Os Lobos da Escória

O que nós fazíamos ali afinal? O que realmente nos motiva a agir assim noite após noite, nessa incansável celebração hedonista de nossa juventude sem propósito?
Era nisso em que eu pensava enquanto assistia Enrico dançar ao som de Iggy Pop com uma garrafa de vodka na mão, sobre a lajem da minha casa. Era uma performance perturbadora, principalmente se considerarmos o seu nível de intoxicação e o perigo iminente de uma queda fatal. Mas eu não estava muito mais sóbrio e ria feito um retardado a maior parte do tempo. Era uma terça feira de madrugada e esse era nosso ritual noturno há algumas semanas, subir no telhado com um monte de bebidas, duas cadeiras de praia e um rádio. Isso depois de nossa ronda habitual por botecos, becos, puteiros e qualquer lugar inconveniente que nós podíamos encontrar naquela porra de cidade medíocre em que vivíamos.

Conheci Enrico num bar, mas não pergunte como. Tudo que eu me lembro é de ter acabado com ele em uma mesa discutindo sobre niilismo clássico, William Burroughs, os diferentes modos de afinar uma guitarra e The Doors. Deus, Enrico odeia Jim Morrison e isso foi um grande choque pra mim. No final da noite, nós apostamos uma corrida por uma avenida e Enrico escalou a estrutura de um outdoor. Eu gritei que ele ia se machucar, e no auge da loucura ele respondeu num urro selvagem “Eu não sou humano, sou uma lagartixa!”. Não entendi por que porra ele falou aquilo, mas me mijei de rir. Enrico nega até a morte que tenha dito algo assim.

Então era isso, nós queríamos ser sujos, arrogantes, destrutivos e toda essa bobagem de sempre. Forçávamos limites, competíamos no álcool, vagabundeávamos sem pudor. Tentávamos desesperadamente chamar a atenção de sei lá quem. Bem, talvez eu soubesse quem Enrico queria impressionar.

Toda as sextas nós íamos a um bar perto da universidade. Tinha uma garota que Enrico conhecia desde o ginásio que sempre aparecia lá e conversava com a gente. Era uma verdadeira esnobe, completamente alienada e superficial. Saquei isso na hora e nunca liguei muito pra ela. Mas Enrico a confrontava o tempo todo, se enervava com as suas provocações e a humilhava sem que ela notasse. Nós voltávamos para casa e ele não parava de falar como ele não a suportava. Deus, como ele a amava.

Ele estava cantando “Dum Dum Boys”, imitando os movimentos de Iggy, forçando os lábios num bico e dando murros no próprio peito. Então “Tiny Girls” começou a tocar e ele se aquietou. Sentou se de costas para a beira da lajem e começou a cantar baixinho. Tinha os olhos alucinadamente distantes e aquele olhar me fez compreender algumas coisas. Eu era um filhinho de mamãe entediado que decidiu agir como um poeta maldito auto-destrutivo, só para ter algum tipo de diversão juvenil e algumas histórias para contar no futuro. Mas no fim do dia eu tinha minha cama, minha janta quente e meus pais pagando meus estudos. Enrico não tinha escolha, aquilo era ele, até o fundo de sua essência. Todo aquele narcisismo fingido era sua defesa contra o mundo, contra o abandono e contra si mesmo. Ele nunca admitiria estar apaixonado por aquela menina, era difícil demais para alguém como ele. Ele não podia confiar em ninguém ou se deixar envolver, ele só podia contar consigo mesmo, não importava o que ele sentia. Mas não podia esconder aquele olhar de mim e eu nunca pensei que alguém tão desprezado pudesse ter tanto amor dentro de si.

A música terminou, assim como a transe de Enrico. Ele olhou para mim e por um segundo pareceu se sentir acuado, mas logo abriu um sorriso e retomou o controle.
“Por que esse olhar de James Dean, Gabriel? Não me venha com essa pose de iluminado pra cima de mim, você é um merda igual a mim e todos os outros dessa porra de mundo”.
Sentou se ao meu lado e me passou a garrafa. O rádio tocava “Mass Production” que me pareceu bem mais depressiva do que o normal. Mas segundo Enrico, eu acho quase tudo deprimente. Deve ser isso

Um comentário:

Murilo Costa disse...

a escória de horizontes perdidos, a juventude transviada, a marginália.
muito foda.
Gabriel é ipo o seu Chinaski. ahuaha
puta personagem.
"bem bolado,bem bolado".