quinta-feira, 24 de junho de 2010

Cães selvagens só usam coleira por uma questão de estilo

Eu estou embolorando nessa porra de apartamento, sentado o dia todo na frente do tele, vendo essas imagens maçantes e essas notícias inúteis. Tem uma criançada barulhenta na vizinhança e essa é única coisa que alegra um pouco os dias. É bom quando ainda são pequenos e selvagens, antes que se tornem uns otários frescos. Não posso acreditar quão rápido foi pra tudo virar uma merda de novo. Depois da grande fissura o mundo virou uma bola de fogo e quase todo mundo morreu. Foi ótimo! Tudo que o planeta precisava era de um apocalipse. Eu era jovem, com espírito em chamas. Nós caminhávamos pela noite, descalços sobre areia tóxica, chutando carcaças e buscando comida. Você só dependia da própria inteligência e da sua navalha pra matar a fome. Sem governo, sem instituições, sem impostos, sem porra nenhuma. Mas só foi questão de tempo e esses vagabundos arruinaram tudo. Logo começaram a se “organizar” e os burocratas tomaram o poder. “Nós precisamos de um método de trabalho”, “a sociedade precisa de instituições e valores sólidos”. Putos! E todos os cretinos trocaram a liberdade pelo que era mais cômodo. Sentados em cubículos, sendo alimentados por sondas nas veias, tubos enfiados no meio do cu, repetindo o mesmo lixo tedioso dia após dia, hora após hora e ainda se dizendo cidadãos produtivos. Nós éramos caçadores, nós éramos deuses, porra! Agora eu vivo nesse mundo de fazendeiros e cordeirinhos. E as merdas que eu tenho que ouvir! “Salvem as baleias”, “Beba com moderação”, “Coma mais vegetais”. Escuta aqui seu viado, sabe quantas gazelas eu tive que degolar pra sobreviver, pra agora tu me aparecer e falar em vegetarianismo? Vá se foder! Agora a matança é imoral? Se não fosse pela matança vocês nem estaria aqui. A humanidade se propagou graças a matança e carnificina, e não através das baboseiras que você prega. Uns anos atrás meu filho me arrumou uma pensão, uma recompensa por eu ser um dos “heróis da reconstrução da civilização”. Putos. Como se eu tivesse alguma coisa haver com essa chatice anti-séptica que o planeta se tornou. Mas pelo menos eles me pagam pra eu ficar aqui fazendo nada. E os empregos que eles inventaram? Superintendente disso, supervisor daquilo, assessores da rola da puta que pariu. E reclamam de tudo. Do governo, do patrão, do salário. E depois eu que sou vagabundo. Olha seus cornos, vocês são o que escolheram ser. Essa merda foi construída em cima da preguiça de vocês, seus lixos, que trocaram a liberdade áspera e brutal da vida por três rações diárias, veículos de transporte automático e alguns minutos semanais de diversão em algum picadeiro. Animaizinhos adestrados. Desci as escadas do meu prédio e dei de cara com um dos moleques rabiscando minha parede. Não fique assustado não. Eu gostei da pintura. Muito melhor do que o muro cinza de bosta que tinha antes. Escreveu um palavrão, não foi? Esse é fraco, depois eu te ensino um dos bons. Garoto, quando eu tinha tua idade nossa diversão era correr pela cratera, escalar as rochas e atear fogo em árvores mortas. Você perdeu uma farra e tanto nascendo na época errada. Não tínhamos prédios, nem cercas, nem esses vigilantes cretinos. Eu me lembro de estar nu sobre uma estrutura de metal tombada, encarando o brilho da atmosfera envenenada e escutando meu coração pulsar depois de uma boa caçada. Agora escuta, vou te mostrar um negócio. Olha só. Pega o elástico e esse treco aqui... arruma uma pedra. Viu? É um estilingue. Tenta você agora. Hahaha, muito bom. Eu dou pra você se você me prometer que vai quebrar umas coisas por aí. Traga um pouco de inferno pra esse mundo escroto. Quem sabe um pouco de barulho faça esse povo entrar em pânico, acelere um pouco a pressão. Talvez se eles ouvirem o coração bater se lembrem por alguns segundos que ainda estão vivos.

Um comentário:

Murilo Costa disse...

e acenderemos fogueiras para apreciar a lâmpada elétrica