segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Fim de Década

Não tem havido muita diversão pelo bairro. As obras na avenida principal nunca terminam, a quermesse acabou e uma seita tenta converter os mendigos através de rituais místicos. Eu ando sentido dores de estômago que não sentia desde a época do colégio. Numa quarta-feira de ventanias gélidas a situação se tornou extrema e tive que me aliviar num banheiro de rodoviária, onde acabei sendo falsamente acusado pelo zelador de estar usando entorpecentes, devido a minha demora. Acho que nem ele conseguia acreditar que alguém seria capaz de cagar ali. Ataques de ansiedade no meio da madrugada também voltaram a ocorrer. Paranóia e alterações emocionais drásticas... Que porra... De onde veio tudo isso? Ciro e eu vimos um pirado distribuindo horrendas flores negras de papel para os pedestres. “Pra que isso?”, Ciro perguntou. “As pessoas precisam se atentar mais as tristezas dos seus semelhantes. Há muito egoísmo, pessoas mesquinhas... A felicidade vem quando se abre o coração, mas é preciso estar aberto ao coração dos outros”. O que isso tem a ver com flores de papel nós nunca descobrimos. Além disso, toda vez que eu abri meu coração, só sofri hemorragias. Mas resolvi seguir um pouco o conselho new age do coroa e até que foi útil. Percebi que quase todos meus amigos andavam tão apáticos e rabugentos quanto eu. Enrico parecia bem, mas comecei notar algo estranho em seu comportamento recente. As atividades semanais dele consistiam em atirar pedras nas janelas de uma fábrica, mijar sobre carros do alto de um viaduto, pintar mensagens obscenas no asfalto... nada de surpreendente vindo dele, mas não era o tipo de vandalismo que ele estava habituado a realizar desde que o conheci. Então eu percebi. Essas eram coisas que ele fazia quando tinha 13, 14 anos, você sabe, a idade em que você é velho demais para brincar de pega-pega, mas muito novo para entrar em algum inferninho... Pois é, aparentemente estamos passando por uma segunda puberdade. “Sim, de fato”, concordou Enrico. “Outro aspecto que vai de acordo com sua teoria é que ando me masturbando com maior frequencia”. O lance é que nós temos 22 anos e se tornar adulto não parece ser uma idéia fácil de aceitar, mas continuar agindo como adolescentes vagabundos se tornou cansativo e vazio. “É como... certas pessoas fazem parte de um sistema, tipo elas são planetas, satélites, estrelas. Elas fazem parte de uma ordem e conhecem seus lugares. Isso dá segurança a elas. Mas nós, nós somos cometas, cara... nós vagamos por aí errantes, nos gabando de nossa pretensa liberdade, mas por dentro estamos loucos para entra na órbita de alguma coisa...”, disse eu, segundo Ciro, mas eu não me lembro de ter feito semelhante metáfora. De qualquer jeito, andar por aí sem ter a menor idéia de que porra você vai estar fazendo daqui há um ano é um bom motivo para uma diarréia. “Porra, eu achei que estava em meio a um dilema existencial profundo, mas você fez tudo parecer uma criancice”, resmungou Renite, enquanto jogava vídeo-game. “Mas por outro lado, isso significa que provavelmente tudo isso vai passar e não é nada demais. É só uma fase acabando”. É, acho que sim. De qualquer jeito foi uma época estúpida para se viver. Sem heróis, nenhuma grande canção... a porra da década sequer tem um nome. Anos Dois Mil o meu caralho. Todo dia voltando pra casa, eu vejo uns sujeitos que estudaram comigo no ginásio, tomando cerveja na guia e balbuciando as mesmas velhas piadas. Há algo de trágico naquilo, como se beber cerveja na calçada e agir como uns pivetes pelo resto da existência fosse a única coisa que os impedisse de desmoronar. Eu olho para as paredes do meu quarto e me pergunto “Jesus Cristo, quantos anos eu já passei trancado aqui, contemplando as paredes e me perguntado coisas?” Tanto faz agora. A noite está acabada e a década quase no fim. Nada está em órbita e flores negras não existem.

2 comentários:

Luciano Costa disse...

"Que século, meu Deus", diziam os ratos. E começavam a roer o edifício.

Murilo Costa disse...

sim, acho que beber cerveja na calçada e agir como uns pivetes é o que nos impede de desmoronar.