Hoje Jorge Hércules é um legitimo homem de negócios e protetor legal do patrimônio de Enrico Roccato. Mas ele já tinha sido um soldado, um policial e um leão-de-chacára e jamais havia perdido seu olhar vigilante. “Eu vi os dois cornos. Os esquisitões estavam no velório e no enterro. Viram o corpo. Acho que deu tudo certo”.
Enrico ouviu, mas deu mais atenção ao pote de sorvete que devorava. Estávamos sentados em caixotes nesse galpão no Brás. Éramos nós três, os caixotes e um furgão. Isso até a porta do banheiro se abrir. Marco Roccato caminhou de braços abertos, usando a bandeira do Juventus como uma túnica.
“Toque minhas chagas, meu filho”, ele declamou. Enrico levantou os olhos, com falsa reprovação. Eu cuspi todo o meu sorvete. “Esse ai tá sempre rindo, puta merda”, disse o ressuscitado apontando pra mim. “Gabriel, eu tava um defunto bonito?”, respondi que ele aparentava mais saudável no caixão do que o filho dele. “Ah, esse ai tem alergia ao Sol. Você também tá precisando, puta merda. Eu não queria ser a puta que vocês pagam pra comer. Na hora que a bunda de vocês aparece deve ser triste”.
Enrico raspou o fundo do pote. “Nem acreditei que você não fudeu com tudo. Tinha certeza que você ia dar risada, soltar um peido ou fazer alguma merda”. O velho riu do moço. “Não filho, nada disso. Já fudi com minha vida toda, ia fuder com a minha morte?”.
O Sr. Roccato havia empreendido um teatro e enterrado 80 quilos de pedra para que a anulação de sua existência perdoasse suas dívidas e dissipasse seus perseguidores. Dezenas de agiotas, policiais corruptos, banqueiros, cafetões e contrabandistas sorriram a doce derrota juntos. O maior de todos os pilantras tinha ido pro saco. Nunca pagaria um centavo. É a vida.
“Sabe filho, queria que todos tivessem a oportunidade de fazer isso o que eu estou fazendo. Faria bem pra sanidade das pessoas morrer e virar outra pessoa, bem longe. Com certeza evitaria enfartos e suicídios”.
“Quando você quiser a gente vai, Marco”, avisou Jorge, encostado na porta traseira do furgão. Marco assentiu e olhou pro seu pirralho com uma expressão estranha. Enrico pareceu intimidado com o olhar e disse meio hesitante. “A mamãe apareceu lá”. Marco sorriu. “Então foi pra te ver. Pra ela, eu já morri faz tempo”.
Enrico sorriu, o pai sorriu de volta. “Ela falou que se mudou da casa. Disse pra eu aparecer”.
“Você devia ir mesmo. Tá muito velho pra ficar com birra da mãe”.
Marco Roccato não vez nenhum discurso de despedida. Não deu nenhuma lição de moral, não fez um balanço da sua vida errática, não pediu absolvição ao filho. Falou casualmente de seu milaborante plano de fuga via navio cargueiro para a Itália e sobre formas de comunicação secreta via email com nomes falsos e mensagens cifradas.
Me deu um abraço e falou “até que enfim engordou filho da puta, tu parecia um frango, aposto que tá comendo mais mulher agora”. Deu um abraço no Enrico e ia entrando no furgão. Então parou.
“Ah, já ia indo embora de túnica” então riu olhando pra bandeira grená. “Puta merda, que time nós fomo escolher. Não ganhamo mais nada. Toma essa tranqueira ai” e a jogou sobre Enrico, cobrindo seu rosto. Depois que o furgão partiu, ele continuou olhando para aquele pano por um tempo.