quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Pesadelo Digital Avalanche

Sonhando em meu quarto
Sonhos singelos
Sem espasmos
Desperto pela
Sirene aguda
Do telefone celular.
Projeta-se na mente
O pesadelo digital
Avalanche de realidade
Mas eu não quero trabalhar.
Disfarço o enfado
Com os mesmos rituais
Sorrio pro espelho
E digo “não
Tenho motivo
Para reclamar”

Embarco na charrete
Do Governador Cara de Metal
O vagão não tem espaço
Pro gado todo que
Vai pra Catedral.
O Governador está
Sempre certo
Ele nunca se
Deixa enganar
Só mesmo um inseto
Como eu
Pra reclamar

Então eu me distraio
Com os olhos castanhos
Volto ao sonho onde
Nossos lábios
Não são estranhos
Andando sobre as pedras
Próximos ao mar
Comendo cogumelos
Abraçados entre
A brisa e o luar

Eu desembarco na pinguela
Onde eu finjo trabalhar
Alugando o meu cérebro
Pro Coronel não
Precisar pensar.
Desperdiçando o meu dia
Escrevendo jingles
De campanha
Eu sinto azia
Aqui esculpindo
Essa banha.
Mas é impossível
E só Nela que
Estou pensando
Quero escrever um
Poema brega
Onde eu digo
“eu te amo”

Eu finjo não ser
Mesquinho
Atravessando a rua
Sem dar esmola.
Talvez eu seja
Um metido
Por achar que
O mendigo se importa
Penso “Será que
Ela vai rir
E achar que eu
Sou um otário
Se eu disser que prefiro
Dee Dee Ramone
À Chico Buarque?”.

Eu pago o preço
Da comida
Eu pago o preço
Da passagem
E o vitral da
Minha vida
Não forma
Nenhuma imagem
Eu queria saber
Ser um mistério
Só pra Ela
Me decifrar
Mas meu amor
É tão indiscreto
Quanto fora
De lugar

E o Governador
Passa mais um dia
Bem longe dos
Meus sonhos
Talvez eu
Seja invencível
Sem nunca estar
Ganhando
E talvez eu
Seja visível
Aos olhos
Castanhos
E mesmo
Sem motivos
Estou aqui
Reclamando.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A meio caminho de lugar nenhum

Manhã de domingo. O carro está parado, sem combustível, em um estacionamento abandonado. Só há galpões fechados nos arredores, ninguém por perto. Eu e Enrico andamos uns três quilômetros até um posto, mas no minuto em que voltamos começamos a baforar a gasolina. Não acho que vamos sair daqui tão cedo. Enrico liga o rádio e sai do Chevette ao som de ‘Born to Die in Berlin’ dos Ramones. Joga um pouco de gasolina sobre uma caixa de papelão e acende um fósforo. Agora ele urina sobre as chamas. Nós não trocamos nenhuma palavra há horas. Nenhuma tirada, nenhuma impressão filosófica, nenhuma piada obscena. Ainda tenho uma lata de cerveja. Ela desce meio quente. A luz da manhã é agradável e suave. O verde vivo da única árvore do pátio se contrasta ao cinza morto de todo o resto. Eu identifico nisso um pouco da minha condição, corroído pelo cinismo, desiludido e empacado a meio caminho de lugar nenhum. Mas as partículas de esperança dentro de mim parecem mais fortes do que tudo isso. Enrico volta ao carro com um baseado preparado e me oferece. A chama da ponta reflete nas lentes de seus óculos escuros. Ele está pálido. Eu também devo estar. Não comemos há muito tempo. 'O que o Ciro tem?' ele pergunta, quebrando nosso pacto não declarado de silêncio. “Ele está triste”. Mantenho meus olhos na caixa de papelão que ainda queima. 'Deveríamos fazer algo por ele'. o tom de voz é monótono e eu não sei dizer se foi uma pergunta ou uma afirmação. “A gente não pode fazer nada. Mas ele vai ficar bem. Eu sei, já estive onde ele está”. 'E onde é isso?' “É aonde você pensa ter encontrado o caminho, mas então percebe que só foi uma miragem e que você esteve andando em círculos o tempo todo”. 'Hum. Frustrante.' “É, mas as miragens nos ensinam certas coisas. Se você não desvendá-las, nunca vai saber o que é verdadeiro”. O rádio começa a tocar ‘American Jesus’ do Bad Religion e a conversa se encerra. Enrico sai do carro novamente e coloca o resto da gasolina no tanque. O carro dá a partida e nós estamos de volta à estrada. Mas para onde agora?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Sagrado Caos

Eu sou o caminho
Que leva ao incerto
Olhe pra si mesmo
Se quiser me decifrar
Quando grita o instinto
Contra sua virtude rasa
Eu sou o infinito nada
Que ecoa em sua cabeça
Sem cansar

Eu sou o vazio
Que te impele
O peito aberto
Na estupidez do amor
Seu colarinho é limpo
Imunda é sua fé
Nunca de joelhos
Nunca aos seus pés
Eu sou o calor que move o sonho
O cair da lágrima
O riso e o revés

Eu sou o perdido
Que guia a jornada
A clara certeza
Desfeita na madrugada
A memória de cada beijo
Cada olhar sem jeito
Cada dia em sua graça
Eu sou o imperfeito
A abençoada estrada
Que conduz desejos
E traí as máquinas

O Sagrado Caos
É a Voz e a Palavra
Onde soa a Discórdia
Onde a certeza é Nada

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Inferno em ladrilhos

O ar está abafado e imagens disformes se projetam na porta branca do banheiro, dando cores translúcidas às gravuras de masturbadores de sanitários públicos, o confessionário supremo. O que é o confessionário senão um inferno dosado, onde todo pudor é despido por alguns segundos de salvação? O que é este banheiro senão um inferno em ladrilhos, onde minha mente erra através de todos os beijos e cuspidas que eu levei na vida, escaldado em suor, nauseado pelo cheiro de fezes e socialmente morto por alguns minutos? Quantas horas mais de expediente? Quantos meses de contrato? Quantos infernos ainda serão necessários para colocar as coisas em perspectiva? Eu bebi demais ontem à noite, mas não o suficiente para apagar a crença em premonições e em sinais divinos. Não acredito em presságios, mas não consigo ignorar meus sonhos. É duplamente frustrante. Lá fora, do outro lado da porta, duas pessoas conversam. Ouço tudo muito distante, fora do meu mundo. Nada é relevante no momento a não ser os ladrinhos e os pensamentos projetados na porta. Meu espírito quer me provar algo através dessas imagens, mas eu olho pra baixo e a visão da latrina é completamente oposta. Em que acreditar? O que em mim é essencial e o que pode ser deixado para trás, como um dejeto? Agora minha visão começa embaçar e escurecer. Eu não tenho mais corpo, só sobraram as imagens diante de mim. Elas significam algo? Uma expressão da alma ou apenas padrões de luz reproduzidos por minha mente debilitada? Não consigo decifrá-las e agora minha vista volta ao normal. Me levanto, me limpo, deixo o cubículo para trás. Lavo o rosto e observo meu reflexo pálido, esperando alguma resposta minha. O jeito é me enganar por mais algumas horas. Eu preciso de um pouco de cafeína.