sábado, 30 de agosto de 2008

O Equilibrista do Meio-Fio

Um desperdício de noite, uma chacina sem propósito... um maldito porre solitário e sem graça. Arrasto-me pela calçada como um verme e entro em uma garrafa de Velho Barreiro. No fundo dela encontro um sujeito de barba rala, cabelos sujos e olhos tão vermelhos quanto profundos. Ele me diz ser Gonzalo, filósofo do meio-fio, guardião da sarjeta e protetor de todos os fracassados. Um rapaz curioso, vocês devem conhecê-lo. Com minha língua dormente pergunto a ele por que eu sempre me sinto tão aconchegado caído em vias públicas.

A RESPOSTA DE GONZALO EM 429 CARACTERES

“A posição básica da sarjeta, sentado no meio fio, pés no asfalto, coluna curvada, olhos baixos e braços apoiados sobre os joelhos, é uma postura naturalmente reflexiva. Este estado introspectivo, aditivado pelo álcool e pelo silêncio noturno da cidade, proporciona uma atmosfera favorável ao auto-questionamento. Eu diria que a sarjeta é a principal postura de meditação dos tempos modernos, a posição de lótus pós-industrial”.

Ao final desta análise esclarecedora, começo a me sentir um pouco claustrofóbico entre aquelas paredes de vidro. Escorrego para fora e deitado de barriga para cima encaro o céu roxo e sem estrelas. Sim meus amigos, uma noite trágica para a carreira deste pobre dipsomaníaco em treinamento.

Meus joelhos doem. Minhas roupas estão sujas. Estou emocionalmente fadigado. Mas ainda não é o bastante! MAIS! Continuo caminhando, sem destino certo, apreciando o frescor da noite, a incerteza de cada esquina. Relembro sabor do beijo, o cheiro do perfume... Eu gargalho, hahaha, triunfalmente. As minhas lembranças ninguém vai tomar nunca! Meu infinito intimo é intocável. Meu ímpeto é invencível. Minha imaginação projeta meus sonhos no asfalto e eu não tenho razão para me sentir sozinho.

O último lugar que eu quero encontrar é a minha casa e a pálida e falsa versão de mim mesmo que lá habita, enjaulada, amaldiçoada pelo desperdício. Não, não, ainda não é hora para isso. Então eu caminho como um equilibrista na guia da calçada, um pé de cada vez, os braços abertos e oscilantes, os lábios rasgados em um sorriso infantil. Seria uma noite e tanto se tivesse alguém pra me ver aqui, no auge da forma, desafiando o bom senso, ignorando todos os sinais de alerta e de mau agouro. Garoa, cachaça e expectativas. É tudo que eu disponho enquanto sorrio de pé no meio fio. E se até o fim da noite a sarjeta voltar a me abraçar, não terá sido nenhum desperdício afinal.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Fragmentos, Sonhos e Desperdícios

O Enforcado

Meu abraço é a forca, é o desconforto que entrelaça. É o puro desespero, é o medo do abandono, o frio e silencioso aperto, o horror de não pertencer. Quando você desfaz o laço, eu caio sufocado e meu peito angustiado chora antes de esmorecer.

Crisálidas

Já tenho minha vingança planejada, uma carta amarga e mal escrita endereçada para a boca do seu desprezo. Nas poucas horas que nos separam, promessas dispostas e crisálidas formadas. Levanto meus punhos contra o céu e espero ansioso pelo nosso vôo.

Jorge

Jorge era um velho que ninguém suportava
Um verdadeiro tédio, tudo ele odiava
Uma tarde ele levou a mão ao coração
“Ora vamos vovô tomar alguma medicação!”
“Vão se foder!”, ele gritou sem nenhum pudor
“Agora só por querer, vou tomar remédio à toa?”
Assim ele ficou por alguns segundos
Até cair morto sobre o chão imundo

Bem feito velho, por que não escuta?
Tomara que vá pro inferno
Queime filho da puta!

(Retirado de um diário de sonhos. A data é de 30/04/2004, uma sexta-feira)

Estava em uma ilha de concreto no meio do oceano. Era uma ilha pequena, e lá também estava um grande número de pessoas, todos jovens como eu. Eles formavam um circulo em volta de um grande cacto. Eu me mantinha afastado, olhando para o mar. Ouvi risos e me virei. Vi três meninas andando de braços dados, rindo histericamente. Uma delas se aproximou do cacto e o beijou. Sua boca começou a sangrar, ela desmaiou e começou a ter convulsões. Alguns se aproximaram para tentar ajudar. Da boca da garota jorrava sangue e de todo seu corpo brotavam bolhas que inchavam e estouravam de maneira grotesca. Um jovem segurava a cabeça dela e tentava acalmar os demais dizendo “Não há nada a se fazer! Temos que esperar!”. Eu dei as costas para aquela cena e voltei a observar o mar.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Desarranjo

Quando a Moça despertou seu mundo era ordenado, subordinado a preocupações cotidianas, rituais inconscientes e gestos medidos. Desvencilhou-se dos últimos pensamentos desconexos de seus sonhos, abraçou a luz do quarto como uma porta para a realidade, conferiu no espelho se seu rosto ainda estava lá, ingeriu sua dose matinal de cafeína, projetou mentalmente o seu dia e observou as horas ao menos seis vezes antes de sair. Ao abrir a porta de sua casa se deparou diante de um estranho objeto, um erro de padrão, um elemento caótico na rotina que julgava previamente equacionada. Um buquê de rosas, deitado de maneira quase obscena no corredor. Esse imprevisto provocou uma breve supressão da respiração e um lapso na sua presente linha de raciocínio. Apanhou as flores e notou que havia um cartão. Talvez fosse a chance de esclarecer e reordenar toda a situação, mas o que ela leu naquele pedaço de papel foi: “Ele mandou flores. O que você vai fazer a respeito?”. Aquilo não estava certo... Ela releu a mensagem inúmeras vezes para confirmar que não havia equívocos. Mas não, estava sempre lá, a escrita impiedosa que arruinou seu compasso e implodiu seus domínios. Havia inúmeras questões dentro daquela única interrogação. Talvez fosse pertinente saber quem havia mandando aquelas rosas, mas não era nisso em que a Moça pensava, embora não soubesse por que. Foi como se toda sua estrutura interna, seus valores e seu senso de realidade tivessem sido despedaçados por aquele ato singular. Suas idéias íntimas estavam completamente expostas e ela percebeu quão frágil elas eram. A sua manhã opaca havia sido tingida de vermelho e sua busca por tranqüilidade e paz mental havia sido ridiculamente arrasada. Tudo o que ela tinha agora eram questões sem respostas. Decifrar aquele enigma seria decifrar a si mesma, e isso seria uma tarefa penosa, torturante e nada prática. Mas agora era tarde, o trem havia descarrilado, suas emoções aflorado e seu mundo não era mais ordenado. Era sinuoso, pulsante e sublime. Era o sorriso em seu rosto, o mistério em seu olhar e o universo que se rearranjava ao seu redor.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Citações de um toxicomaníaco – Um breve passeio pela mente e mundo de Enrico Roccato

“A maior parte da bíblia foi escrita sob o efeito de drogas alucinógenas”, durante uma discussão teológica com dois missionários mórmons.

Um dos grandes feitos do feminismo foi prover ao mundo uma mão-de-obra mais barata”, para uma lésbica em uma balada GLS, no que seria depois considerada a pior cantada da história.

“O seu problema não é pensar demais com o pinto, é foder demais com a cabeça”, ao debochar da inerte vida sexual de seu amigo Gabriel Gabay.

“Psicanálise é a declaração da falência das relações humanas. Que porra de mundo é esse em que você tem que pagar alguém para te ouvir?”, aos 16 anos, para a diretora da escola, quando essa o informou que ele seria obrigado a passar por um tratamento psicológico após desmaiar bêbado durante um seminário.

“Quando meu pai abandou minha mãe, eu me perguntei como ele pode ter feito uma coisa dessas. Anos depois quando eu fugi de casa, me perguntei como ele pode agüentar tanto tempo”, sobre sua relação afetiva com sua progenitora, Estela Mantovani.

“Se trabalho fosse sagrado, Jesus nunca teria deixado de ser carpinteiro”, dando um xeque-mate em uma discussão com seu amigo Jorge Hércules, que insistia que ele deveria arrumar um emprego para dar sentido a sua vida.

“Porra Gabriel, não seja tão ansioso!”, repetida inúmeras vezes, em inúmeras ocasiões.

“A bebida foi a única coisa na minha vida que não me traiu”, em um de seus “momentos”...

“Já que as mulheres me intimidam, eu trato logo de estragar tudo no primeiro instante. Isso deixa tudo mais tranqüilo”, sobre suas táticas amorosas.

“Foi quando a cerveja parou de ser tão amarga”, ao ser perguntado qual tinha sido o melhor dia de sua vida.

“O problema de ser anarquista, comunista, essas coisas, é que você tem que estudar filosofia, ler livros, saber fazer analise social... Já para ser capitalista, basta ser um merda qualquer”, discorrendo sobre modelos sócio-econômicos em um bar de esquina.

“Você me devia ver sóbrio”, após ser elogiado por seu instrutor de direção.

“Sexo é muito bom, amor é importante, o medo da morte é um fato, mas esses são aspectos passageiros, relacionadas a certas etapas da vida. A força matriz por trás de todas as ações é o tédio”, discursando sobre a natureza humana para um cão labrador chamado Duque, após uma noite “caótica”.

“Vai se fuder mãe!”, ao sair de casa definitivamente.