Ela me espera em agonia
Revela a minha real ferida
Desejo ter a alma livre
Mas a dor e o medo ainda existem
O espelho não reflete a verdade
O destino não obedece a minha vontade
E me abandona aqui
Ainda corre em mim o seu veneno
Guardo a cicatriz do seu beijo
Aprisionado em mim, agora eu vejo
A dor de fugir do que eu desejo
Talvez o esforço seja em vão
E o meu corpo seja a minha prisão
Sinto esmorecer pouco a pouco
Feito refém do seu conforto
O controle se reserva a ela
E ao meu redor a realidade se altera
E me abandona aqui
Por uma passagem estreita eu chego ao fim
A alma desfeita dentro de mim
O que eu fiz não tem perdão
Me abandone aqui sem o seu perdão
terça-feira, 27 de novembro de 2007
segunda-feira, 26 de novembro de 2007
Estrada
Era um jeito estranho de encerrar um funeral. A 220 por hora, em um Chevette marrom despedaçado, cheiro de mofo, fuligem e vodca no ar. Essa rodovia é conhecida como a estrada da morte, e ver Enrico dirigir com uma garrafa de Smirnoff entre os joelhos me deixou levemente tenso. Não fazia mais do que duas horas desde haviamos deixado à funerária. A voz no telefone soou sóbria demais para ele, “Tenho que ir num velório, quer ir comigo?”. Foi estranho, era de uma amiga da família dele, chamada Susana. “Foi chefe do meu pai, ele era segurança do bar dela”. Todo mundo parecia conhecer Enrico, e o fitavam com um ar paternal, típico de quem o havia conhecido na infância e o visto crescer. Ele se recusou a ver o corpo no caixão. Fui ao banheiro, e quando voltei, ele havia sumido. Um sujeito com cara de boxeador me pediu para esperar. Meia hora depois, Enrico aparece com aquele museu que por milagre ainda rodava. Fiquei com medo de perguntar onde ele tinha arrumado aquilo. “Um amigo emprestou”, sem maiores detalhes não me convenceu. Então um sujeito bêbado, transtornado, sentado em um carro cuja única forma de servir bem a humanidade seria apodrecendo em um pátio imundo qualquer, onde ratos e mendigos disputam abrigo entre a ferrugem, propõe uma viagem de 6 horas para o sul do estado. O que você faz?
Paramos em um posto no meio do nada. Fui mijar e quando voltei encontrei Enrico fumando com uma garota. Ela era muito bonita, e Enrico tentava uma sutil aproximação, tão sutil quanto era possível para ele. De qualquer forma, enquanto os dois estavam no banco traseiro do carro, eu comia no restaurante e pensava na minha inerte vida sexual. Enrico me disse que eu exagerava na idealização das mulheres e via todas elas ou como putas, ou como santas. Segundo ele, esse meu machismo enrustido por de trás da minha máscara de timidez apática era a razão da minha falta de habilidade com as garotas. “Todo mundo tem que ter seus complexos”, eu disse, aceitando a teoria rapidamente, para não ter que digeri-la da maneira apropriada. Um caminhoneiro aparece avisando de um acidente grave. Um carro incendiou e a pista estava cheirando a carne queimada. Vodca quente e o pão com queijo derretido se revoltaram no meu estomago. Abraço um vaso imundo, lavo o rosto, empato uma foda e saio daquele limbo.
Grande revelação. Enrico disse que a sua falecida amiga tinha sido uma mãe pra ele. “Quando eu brigava com aquela puta (Enrico se refere a sua mãe invariavelmente sob essa terminologia) eu ia me esconder no bar dela. Ela me ouvia, me tratava como gente. Merda, as pessoas boas sempre se fodem...” Silêncio que precede mais um monologo. No painel percebo uma luz vermelha acesa, avisando de alguma falha mecânica á muito ignorada. “Meu pai adorava ela, uma das razões por que ela largou a vaca foi por que ela tinha ciúmes da amizade dos dois, mas meu pai nunca pegaria ela...” Por que? Por que o peito maternal que abrigou meu amigo em sua infância, era silicone puro. Seu rosto e corpo eram resultados de cirurgias e hormônios, e entre suas pernas a verdade repousava. “Susana era um homem... biologicamente falando”.
Alguns de seus desafetos ironizaram sua morte, dizendo que tinha sido câncer nos testículos, mas isso era uma grande calunia. “Foi no pâncreas, e depois se espalhou no organismo. Porra, não bebia, não fumava, merda...” Se recusou a fazer quimioterapia, morreu 3 meses depois de constatada a doença. “A pessoa mais decente que eu já conheci, seca e morre durante 3 meses, vomitando e cagando sangue. Que porra de mundo é esse?”. Enrico costumava ser cínico. Provavelmente diria em resposta a si mesmo algo como “Câncer não escolhe suas vitimas por um processo de seleção moral. Acontece por pré-disposição genética e efeitos do ambiente”, mas ele estava muito perturbado. A vodca acabou, mas no porta-malas tinha mais.
Aquela cidade não podia existir. Parecia uma imagem de guerra de um país exótico e distante, crianças semi-nuas correndo entre os bananais. Só tinha bananeiras, casebres e miséria, em todos os cantos. O carro parou em frente a melhor casa da região, o que não significa grande coisa. Em uma cadeira da praia repousa o grande bêbado. Era aquilo que acontece conosco no final? Os transgressores, ébrios, sonhadores, todos terminavam derrotados, destruídos fisicamente e abatidos pela sensação de desperdício? Pai e filho se encaram e não dizem nada. As lagrimas daquele velho me comovem e me repulsam ao mesmo tempo. As crianças me observam com tímida curiosidade. Enrico se vira para mim. “Vamos embora”, ele quis ordenar, mas apenas suplicou, sem voz. Nego com um gesto, precisamos dormir. Aquela casa suja teria que nos abrigar.
Paramos em um posto no meio do nada. Fui mijar e quando voltei encontrei Enrico fumando com uma garota. Ela era muito bonita, e Enrico tentava uma sutil aproximação, tão sutil quanto era possível para ele. De qualquer forma, enquanto os dois estavam no banco traseiro do carro, eu comia no restaurante e pensava na minha inerte vida sexual. Enrico me disse que eu exagerava na idealização das mulheres e via todas elas ou como putas, ou como santas. Segundo ele, esse meu machismo enrustido por de trás da minha máscara de timidez apática era a razão da minha falta de habilidade com as garotas. “Todo mundo tem que ter seus complexos”, eu disse, aceitando a teoria rapidamente, para não ter que digeri-la da maneira apropriada. Um caminhoneiro aparece avisando de um acidente grave. Um carro incendiou e a pista estava cheirando a carne queimada. Vodca quente e o pão com queijo derretido se revoltaram no meu estomago. Abraço um vaso imundo, lavo o rosto, empato uma foda e saio daquele limbo.
Grande revelação. Enrico disse que a sua falecida amiga tinha sido uma mãe pra ele. “Quando eu brigava com aquela puta (Enrico se refere a sua mãe invariavelmente sob essa terminologia) eu ia me esconder no bar dela. Ela me ouvia, me tratava como gente. Merda, as pessoas boas sempre se fodem...” Silêncio que precede mais um monologo. No painel percebo uma luz vermelha acesa, avisando de alguma falha mecânica á muito ignorada. “Meu pai adorava ela, uma das razões por que ela largou a vaca foi por que ela tinha ciúmes da amizade dos dois, mas meu pai nunca pegaria ela...” Por que? Por que o peito maternal que abrigou meu amigo em sua infância, era silicone puro. Seu rosto e corpo eram resultados de cirurgias e hormônios, e entre suas pernas a verdade repousava. “Susana era um homem... biologicamente falando”.
Alguns de seus desafetos ironizaram sua morte, dizendo que tinha sido câncer nos testículos, mas isso era uma grande calunia. “Foi no pâncreas, e depois se espalhou no organismo. Porra, não bebia, não fumava, merda...” Se recusou a fazer quimioterapia, morreu 3 meses depois de constatada a doença. “A pessoa mais decente que eu já conheci, seca e morre durante 3 meses, vomitando e cagando sangue. Que porra de mundo é esse?”. Enrico costumava ser cínico. Provavelmente diria em resposta a si mesmo algo como “Câncer não escolhe suas vitimas por um processo de seleção moral. Acontece por pré-disposição genética e efeitos do ambiente”, mas ele estava muito perturbado. A vodca acabou, mas no porta-malas tinha mais.
Aquela cidade não podia existir. Parecia uma imagem de guerra de um país exótico e distante, crianças semi-nuas correndo entre os bananais. Só tinha bananeiras, casebres e miséria, em todos os cantos. O carro parou em frente a melhor casa da região, o que não significa grande coisa. Em uma cadeira da praia repousa o grande bêbado. Era aquilo que acontece conosco no final? Os transgressores, ébrios, sonhadores, todos terminavam derrotados, destruídos fisicamente e abatidos pela sensação de desperdício? Pai e filho se encaram e não dizem nada. As lagrimas daquele velho me comovem e me repulsam ao mesmo tempo. As crianças me observam com tímida curiosidade. Enrico se vira para mim. “Vamos embora”, ele quis ordenar, mas apenas suplicou, sem voz. Nego com um gesto, precisamos dormir. Aquela casa suja teria que nos abrigar.
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Exílio
Marco estava sentado sob o Sol fraco de outono, no jardim de sua casa, cercado pelas crianças da região. Elas brincavam, corriam e berravam umas com as outras, mas não ousavam incomodar seu anfitrião. Marco ria, contava e ouvia histórias, bebia um pouco de sua vodca e cantava canções em italiano. Estava naquele fim de mundo há alguns anos já, cercado de crianças miseráveis, agricultores e bananeiras. Só tinha banana naquela merda de terra, para onde você olhasse. 54 anos de vida, ambições e sonhos se reduziam a um velho de pele queimada, camisa desabotoada, óculos de sol vagabundos e uma garrafa de vodca da pior qualidade.
Nascido na Itália, vagabundeava pelo Brasil desde os 17. Se envolveu em golpes, prostituição, desmanches, alambiques clandestinos, cassinos, trafico internacional de muamba, drogas e armas, roubo de carga, empresas fantasmas, estelionato, buffets infantis, táxis, proxenetas, torniquetes improvisados, camisinhas vencidas, anticoncepcionais falsificados, desova de químicos em mananciais, amuletos da sorte, bingos, seqüestro de cadáveres e especulação imobiliária. Casou-se há 25 anos com uma operária do Brás chamada Estela. Ela era linda, loira e de olhos azuis, mas bebia muito, até mais do que ele mesmo. Tiveram um filho, Enrico. Quando o moleque tinha 9, Marco se mandou. Nunca chegou a perder o contato com o filho, mas um não ligava muito pro outro.
Falido e ameaçado por meio mundo, se refugiou nesse vale, que mais parece um cu atolado de bananas. Um alqueire de terra não vale nada e uma tonelada de banana menos ainda. Mas é possível sobreviver e comprar um pouco de vodca. Obviamente, Marco não mexe um dedo, os vizinhos é que retiram as frutas, carregam o caminhão e vendem o produto. Em troca, ele paga uma mixaria e deixe toda aquela molecada brincar na sua casa.
Ele coça uma picada de pernilongo em seu calcanhar pálido e sente algo de errado. Uma vibração estranha, um mau pressentimento, uma nuvem de negatividade se aproximar. Logo tudo se reduz ao ronco de um carro velho se aproximando na estrada. Um Chevete marrom despedaçado para em frente a sua casa e um silêncio insano se faz quando seu motor se desliga. Lá de dentro brotam dois sujeitos, pálidos e sonolentos. Semblantes cerrados, devido ao Sol rasteiro nos olhos. Um parecia perdido e curioso, e olhava ao seu redor, vagaroso e confuso. O outro parecia mortalmente sério, sabia onde estava e quem devia procurar. Seus olhos se encontraram com as lentes empoeiradas de Marco, que viu nos olhos do filho a fúria pesarosa de alguém que não queria estar aqui, mas não teve escolha. E logo ficou claro que a presença de Enrico se devia únicamente a um anúncio fúnebre. Os dois jovens se postaram em frente ao velho, e mutuamente sentiram o cheiro de vodca que os três carregavam. Pai e filho tinham o mesmo hábito, pensou Gabriel, inebriado. E como dois mensageiros infaustos, eles ali ficaram, sem dizer uma palavra. Provavelmente a mãe dele, pensou Marco, mas não, não era isso, ele sabia. Então o olhar incendiário de Enrico baixou triste para o chão, do jeito que só uma pessoa seria capaz de fazer, logo percebeu seu pai. E em meio às crianças caladas e intimidadas por aqueles dois estranhos, Marco colocou as mãos sob suas lentes sujas e tentou segurar suas lágrimas. E aquele que menos merecia, estava morto.
Nascido na Itália, vagabundeava pelo Brasil desde os 17. Se envolveu em golpes, prostituição, desmanches, alambiques clandestinos, cassinos, trafico internacional de muamba, drogas e armas, roubo de carga, empresas fantasmas, estelionato, buffets infantis, táxis, proxenetas, torniquetes improvisados, camisinhas vencidas, anticoncepcionais falsificados, desova de químicos em mananciais, amuletos da sorte, bingos, seqüestro de cadáveres e especulação imobiliária. Casou-se há 25 anos com uma operária do Brás chamada Estela. Ela era linda, loira e de olhos azuis, mas bebia muito, até mais do que ele mesmo. Tiveram um filho, Enrico. Quando o moleque tinha 9, Marco se mandou. Nunca chegou a perder o contato com o filho, mas um não ligava muito pro outro.
Falido e ameaçado por meio mundo, se refugiou nesse vale, que mais parece um cu atolado de bananas. Um alqueire de terra não vale nada e uma tonelada de banana menos ainda. Mas é possível sobreviver e comprar um pouco de vodca. Obviamente, Marco não mexe um dedo, os vizinhos é que retiram as frutas, carregam o caminhão e vendem o produto. Em troca, ele paga uma mixaria e deixe toda aquela molecada brincar na sua casa.
Ele coça uma picada de pernilongo em seu calcanhar pálido e sente algo de errado. Uma vibração estranha, um mau pressentimento, uma nuvem de negatividade se aproximar. Logo tudo se reduz ao ronco de um carro velho se aproximando na estrada. Um Chevete marrom despedaçado para em frente a sua casa e um silêncio insano se faz quando seu motor se desliga. Lá de dentro brotam dois sujeitos, pálidos e sonolentos. Semblantes cerrados, devido ao Sol rasteiro nos olhos. Um parecia perdido e curioso, e olhava ao seu redor, vagaroso e confuso. O outro parecia mortalmente sério, sabia onde estava e quem devia procurar. Seus olhos se encontraram com as lentes empoeiradas de Marco, que viu nos olhos do filho a fúria pesarosa de alguém que não queria estar aqui, mas não teve escolha. E logo ficou claro que a presença de Enrico se devia únicamente a um anúncio fúnebre. Os dois jovens se postaram em frente ao velho, e mutuamente sentiram o cheiro de vodca que os três carregavam. Pai e filho tinham o mesmo hábito, pensou Gabriel, inebriado. E como dois mensageiros infaustos, eles ali ficaram, sem dizer uma palavra. Provavelmente a mãe dele, pensou Marco, mas não, não era isso, ele sabia. Então o olhar incendiário de Enrico baixou triste para o chão, do jeito que só uma pessoa seria capaz de fazer, logo percebeu seu pai. E em meio às crianças caladas e intimidadas por aqueles dois estranhos, Marco colocou as mãos sob suas lentes sujas e tentou segurar suas lágrimas. E aquele que menos merecia, estava morto.
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