O Lagarto
Enrico,
Sofia e Gabriel caminhavam sobre os escombros do que um dia havia sido uma casa.
Enrico acusava Sofia de ser incoerente por acreditar em astrologia e ser ateia.
“Você refuta a existência de uma força motriz invisível, mas é exatamente isso
que você atribui às estrelas. É ridículo”. Sofia não concordava com a
comparação e dizia que eram coisas diferentes. Gabriel, que errava confusamente
sobre ladrilhos quebrados e telhas partidas, se voltou ao casal e disse “Uma
vez, quando eu tinha oito anos, corria por uma trilha no meio do mato para ir
jogar bola. Essa trilha partia de um terreno baldio, cruzava o trilho do trem e
terminava no campo de futebol. Eu estava de cabeça baixa, correndo o mais
rápido que podia, quando um lagarto comprido cruzou o meu caminho. Ele parou,
olhou para mim, voltou a correr e desapareceu no mato. Eu me assustei e parei.
Nesse exato momento, o trem passou. Até então, eu não tinha ouvido nada e não o
teria visto se não fosse o lagarto”. Ele terminou de contar a lembrança e
voltou a caminhar sem rumo pelos entulhos. Enrico riu e perguntou a Sofia:
“Então, o lagarto foi uma manifestação divina, um ato escrito nas estrelas ou
apenas ouviu o trem antes, se assustou e na fuga, sem querer, alertou
Gabriel?”. Sofia mordeu os lábios. “Sei lá”.
“O lagarto era Deus. Se
não houvesse lagarto, Deus seria o trem”.
Prisioneiros e Fantoches
Na
boate de Enrico, havia um cliente habitual que sempre subia com a mesma garota.
Ele acabou se apaixonando por ela e ela parecia corresponder, embora não fosse
possível ter certeza. Após um tempo de certa felicidade, ele começou a ser
tomado por uma grande angústia. Inseguro, começou a exigir que ela não se
deitasse com mais ninguém. Ela prontamente recusou, afirmando que aquela era a
vida e o trabalho dela. Se sentindo humilhado e abandonado, o homem decidiu curar
seu ego através do desprezo, recuperando assim seu senso de superioridade. Levou
um amigo à boate, disse pra garota que ia pagar para ela trepar com o sujeito e
que iria se divertir assistindo. A moça chorou, deu as costas e nunca mais
o atendeu. Ele não foi capaz de entender.
“Ser soberano sobre a
vontade alheia é um anseio comum a tolos e tiranos”
Sossego
Enrico
tomava café com sua mãe, queixando-se sobre as dificuldades de se relacionar
com Sofia. “Eu não entendo. Às vezes ela reclama que eu sou distante, indiferente.
Então eu tento me aproximar e ela começa dizer que se sente sufocada. Eu brigo
e ela diz que sou ciumento, eu fico na minha e ela diz que eu não me importo.
Que diabos ela quer que eu faça?” A mão de Enrico terminou sua xícara e disse: “Conheço
um casal que teve problemas no relacionamento, mas hoje estão em perfeita paz.
Vou levar você para conhecê-los, talvez te ajude”. E naquela tarde, Enrico foi
com sua mãe até cemitério, visitar o túmulo de seus avós.
“A harmonia é uma
virtude dos desalmados. Onde há vontade há conflito”.