Enrico fechou a grade do elevador antigo, nos trancando na jaula rumo ao subsolo. Me trouxe a esse casarão velho e não me disse o porquê.
Entramos no porão iluminado por velas. Um calabouço de paredes de pedra, chão de madeira e tapetes persas. No salão havia um grupo de pessoas em trajes de gala e máscaras. Enrico e eu paramos a margem e permanecemos sob as sombras. “Olha só que clichê”, ele riu observando a cena. “Hollywood e literatura ruim acabam mesmo com a imaginação”.
Uma mulher vestida em couro trouxe na coleira uma loira de roupão ao centro do salão, despiu a moça e, com a ajuda de um outro sujeito, a amarrou de pernas abertas sobre uma mesa. “Por que você me trouxe a um clube de sadomasoquismo?” “Porque é ridículo”, respondeu Enrico.
“Eu andei pensando sobre esse tipo de coisa, como sadomasoquismo poderia representar a essência da sociedade, aspectos como submissão, manipulação e autoritarismo... mas eu percebi que isso é bosta. Não é nada disso”, dizia Enrico, acompanhado pelos gemidos da moça abusada.
“A verdade é que S e M é coisa de gente rica, só isso. Só quem nunca pegou um ônibus lotado na hora do rush, nunca ficou uma noite sem dormir pensando nas contas a pagar e nunca teve qualquer contato com o caos cotidiano pode ter fetiche sexual pelo sofrimento. Pra eles isso é como viajar para outra dimensão”.
“É isso? Essa é sua teoria? Me trouxe aqui pra isso?”, eu perguntei enquanto os mascarados se revezavam entre chicotear, estapear e masturbar a loira. “Quando você joga videogame e finge que é um super-assassino ou jogador de futebol, sabe? Se você é rico suficiente, pode comprar sua própria simulação de realidade e vivenciá-la em carne e osso. Sadismo talvez seja comum a todas as classes sociais, mas masoquismo? Nesses termos, puramente fetichistas? Um capricho elitista”, discorreu Enrico, me ignorando e acendendo um cigarro.
“Existe uma falsa mecânica ocorrendo”, continuou, “Aparentemente a mocinha amarrada é um mero objeto de uso sexual para os bizarros ai, mas é o contrário. Ela é a estrela do show, o objeto de culto, o centro do Universo. Os tapinhas, as chicotadas, são meras caricias. Nem doem, só deixam marcas temporárias, falsas cicatrizes”.
“Eu quero dizer, acha que ela quer mesmo sofrer? Se alguém entrar ai e matar o gatinho de estimação dela, você acha que ela vai ter um orgasmo? É um teatro patético, é um escárnio com o sofrimento de verdade. É gente rica rindo da gente, pra variar”.
“E quanto a religiosos que praticam autoflagelação? Não tem relação com isso ai? E não são sempre ricos...” eu questiono.
“É diferente. Autoflagelação é direcionar a frustração espiritual na carne. Você ambiciona a santidade, mas não passa de um saco de merda e hormônios. Existe vaidade nisso, é claro, mas o propósito é diferente. O que se sente como purificação é apenas fúria acalmada”.
Agora os mascarados começaram a dor choques na moça com um cilindro de plástico, parecido com aquelas raquetes de matar mosquito. A expressão de Enrico se deformou em desdém. “Meu deus, que falta de senso estético. Velas, couro e... um brinquedo de plástico da 25 de março? Que lixo”.
Então um velhote de máscara surgiu ao nosso lado. Achei que ele ia nos botar para fora ou nos algemar e jogar naquela roda de babacas, mas o que ele fez foi mais inacreditável. “Senhor, vou ter que pedir que apague o cigarro”, disse apontando para o cartaz da lei antifumo pendurado na parede. Enrico gargalhou incrédulo. “Beleza”, ele disse, apagando o cigarro na bochecha do sujeito, que ganiu de dor. “Perdão querido, achei que você também curtia”.