“É a sina de um tolo: escolher os solos mais áridos para semear e se sentir culpado quando nada cresce... Não é nada inteligente, meu amigo, nada mesmo”.
Eu sonhava com o deserto. Não me lembro dos detalhes, dos rostos ou das histórias, mas com certeza tinha um deserto. Meus sonhos costumam ser opacos, mas dessa vez foi diferente. A areia resplandecia dourada até o infinito, além do horizonte da minha imaginação. Agora eu encaro o teto do meu quarto. Um fio de luz escapa pela persiana e tinge o recinto numa meia luz agradável aos olhos recém despertos. Penso no que farei pra preencher o dia. Penso no último cheque do seguro desemprego que vai cair amanhã. Penso no futuro enevoado, penso nas mulheres que nunca tive. Porra, o que há de bom em pensar? Eu deveria trocar minha roupa de cama, comer algo nutritivo e enviar currículos. Eu farei isso, eventualmente. Por hora vou me concentrar no tom luminoso das areias daquele deserto. Só por alguns minutos. Depois eu volto ao labor da existência humana, como eu sempre faço. Eu prometo.
“Eu nunca mais quero ouvir uma voz sensata. Vozes sensatas sempre me dizem Não”.
Às vezes eu poderia jurar que se eu não berrasse com toda força, as pessoas ao meu redor não iriam lembrar-se de mim. Por isso hoje ficarei em silêncio, imóvel e fora do campo de visão de todos. Algumas horas esquecido, é só disso que eu preciso. Como se não houvesse nada lá fora. Como se eu não existisse além daqui. Então, quando for o momento certo, eu vou abrir a porta e deixar a luz me invadir. Serei a carne que você pode ver, os murmúrios que você pode ouvir e não mais o vazio que só eu posso sentir.
“Se Eco realmente amasse Narciso, teria o desfigurado”.
Tempo demais em frente aos espelhos que minha imaginação produz, vendo o que eu nunca fui, admirando o que não serei, traçando rugas que não estão lá. Talvez eu pudesse enxergar na íris de outra pessoa o que realmente sou. Eu ficaria verdadeiramente exposto neste reflexo, sem os filtros do orgulho e da autocomiseração. Mas por hora eu só tenho a visão deste deserto, dourado e resplandecente, porém árido e sem vida.