segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Solstício

Há inúmeras maneiras de perceber que o verão se inicia. Por exemplo, pela colméia de vespas que começa a se formar na varanda de casa, sob os olhos atentos do meu pai. A cada ano ele utiliza um método diferente para acabar com a construção dos insetos. Seja com uma pá servindo de catapulta ou com um lança-chamas improvisado com um inseticida e um isqueiro, é surpreendente que ele continue a triunfar ileso.

Também é nessa época que Enrico organiza a partida anual de “Marcação Mortal” com a as crianças do bairro. O jogo é uma espécie de paintball mais primitivo e violento, que envolve bexigas cheias de tinta e sinalizadores de fumaça. É sempre disputado na noite do último domingo da primavera e Enrico media a partida do alto do telhado de sua garagem. Ele diz que os jogos violentos de videogame e o fácil acesso a pornografia nos dias de hoje estão arruinando o potencial destrutivo infantil, e isso é simplesmente intolerável. “O que vai ser dessas crianças se delas for privadas a possibilidade do vandalismo puro e inconseqüente? Serão zumbis sem criatividade. Eu quero dar elas a chance de expressar um pouco de caos”. A julgar pelo estado da rua no dia seguinte, ele está fazendo um bom trabalho.

“Então, quais as metas para o próximo ano?”, pergunta Tiago, exatamente como ele faz em todo dezembro. Eu não sei qual são as metas, talvez meu plano seja esperar por uma surpresa. Mas vamos deixar o futuro pra depois e fazer uma retrospectiva. A primavera já era e o que eu aprendi esse ano? A tocar uma versão tosca de “I’m So Lonesome I Could Cry” no violão. Os acordes estão errados, mas dá pra brincar. Também apreendi que o tédio é uma prova que sua saúde mental está boa. Se após seis horas sentando em frente a um computador realizando uma tarefa nada estimulante você não estiver entediado, tem algo muito errado com você. Se você não gostar do seu trabalho e alguém te disser que você parece desmotivado diga “Obrigado”.

O que eu apreendi sobre mim mesmo? Que não importa o quanto eu apreenda sobre mim mesmo, eu jamais vou ser capaz de controlar os aspectos, bons ou ruins, da minha natureza. Amadurecer é saber lidar com as conseqüências das merdas que você faz, e não para de fazer merda. Isso ninguém nunca descobriu como fazer.

O que traz o verão pra mim dessa vez? Excesso de tempo livre, o que significa maior possibilidade da minha cabeça divagar por lugares indesejados. Eu não sei, tudo está meio enevoado agora. Eu não estou triste, feliz, nem frustrado. Eu estou ansioso por tudo que nunca aconteceu. É como Burt Bacharach disse, eu só não sei o que fazer comigo mesmo.

“Não foi um ano de merda, mas também não foi grande coisa”

“Você diz isso todo final de ano” – me respondeu Enrico

“É, mas não é verdade?”

“O que você queria? Um ano em que tudo desse esplendorosamente certo? Merda acontece, mas as festas também... A vida é muito complexa pra ser dividida em grupos de 365 dias ou estações climáticas”.

Algumas coisas mudaram ridiculamente, outros sonhos continuam vivos. Eu não tenho nada a dizer em minha defesa, a não ser que tudo que eu fiz foi movido por desejos sinceros, ainda que estúpidos. E não há nada o que se fazer com as primaveras que se sucedem, a não ser rasgá-las do calendário e esperar por mais sorte no verão.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Hank Williams ainda não respondeu

GABRIEL
Eu tentei me acertar e ser um cara sério. Eu cortei o cabelo, arrumei um emprego, me dediquei mais aos estudos, até pensei em arrumar uma namorada... mas não funcionou. Eu não sou capaz de nada disso.

ENRICO
Tá falando com quem?

GABRIEL
Eu não sei simular interesse no que não me atraí, eu não levo a sério nada do que é supostamente importante e eu não consigo fingir que gosto de alguém. Algo no meu processo de amadurecimento saiu terrivelmente errado.

ENRICO
Gabriel?

GABRIEL
Uma vez eu pus fogo na minha própria mão ao tentar incendiar um formigueiro...

ENRICO
Er... é, eu sei, você contou essa história dez mil vezes. Isso é uma fantasia de palhaço?

GABRIEL
Acho que essa foi uma experiência simbólica.

ENRICO
Por que você está encarando essa viga?

GABRIEL
Eu estou em meio a um monólogo.

ENRICO
Por quê?

GABRIEL
Por que é isso que eu faço melhor. Falar com ninguém. Ouvir nada. Se sentir bem sem ter mudado coisa alguma. Uma simulação de catarse.

ENRICO
E a roupa de palhaço?

GABRIEL
Uma alegoria.

ENRICO
É, isso é meio óbvio...

GABRIEL
E também por que eu achei no baú e...

ENRICO
Certo, essas coisas acontecem.

GABRIEL
Não pude evitar.

ENRICO
Andou usando alguma coisa? Bebeu...

GABRIEL
Sóbrio.

ENRICO
Merda, era que eu temia....

GABRIEL
O álcool afeta meu senso de ridículo. Ele o aumenta. Abala minha mania de grandeza. Eu estou bancando o Hamlet aqui...

ENRICO
Certo....

GABRIEL
Não seria apropriado agora, começar a rir de mim mesmo.

ENRICO
É verdade. Você não tinha medo de palhaços?

GABRIEL
Só da maquiagem.

ENRICO
Do que se trata sua catarse?

GABRIEL
A busca pelo Eu. A mesma merda pretensiosa de sempre.

ENRICO
E você encontrou?

GABRIEL
Sim. Esse é o problema

ENRICO
E então?

GABRIEL
Eu sou um cara que gostar de sentar em uma cadeira de praia com uma cerveja na mão.

ENRICO
Só isso?

GABRIEL
É. Essa é toda a imagem. Além disso, eu gosto de varandas, animais, livros, música e espingardas de chumbinho.

ENRICO
É, elas são divertidas

GABRIEL
Provavelmente eu gostaria de... você sabe.

ENRICO
Hum... não consegue dizer?

GABRIEL
(silêncio)

ENRICO
Uma trepada? Uma punhetinha bem dada?

GABRIEL
(silêncio e careta)

ENRICO
Ah sim, esse sou eu... você, vamos ver essa sua imagem. Você está em uma varanda, sentado numa cadeira de praia, bebendo cerveja, com um cachorro velho aos seus pés, tem uma espingarda encostada na parede e está tocando uma música... que musica é essa?

GABRIEL
Tower of Song

ENRICO
Ah, claro. Leonard Cohen canta e ao seu lado, apoiada em seu braço, uma moça ri da expressão esquisita que você faz quando fica viajando, olhando pro nada. É isso não é?

GABRIEL
É. No final é assim.

ENRICO
Não é nada mau. Meio moroso pra mim, mas ok. Talvez eu esteja no porão da casa, fazendo desenhos pornográficos na parede.

GABRIEL
É possível.

ENRICO
Então você tomou ácido, caminhou por labirintos, falou com xamãs, buscou a estrada para dentro de si mesmo....

GABRIEL
E foi isso.

ENRICO
Nada de plano superior, visões místicas, túneis cósmicos pra fora do próprio ego...

GABRIEL
Era isso o que eu esperava, mas é tudo merda. Coisa de quem tem fetiche por cores fosforescentes, de quem se acha importante demais pra ser humano... de quem se veste de palhaço e fala com uma viga.

ENRICO
É, sempre achei Carlos Casteneda um babaca. E então?

GABRIEL
Então tem uma varanda.

ENRICO
E como você chega a ela?

GABRIEL
Aparentemente não é através de um túnel onírico místico. Mas também não é fingido ser um cidadão sério, coisa que eu não sou capaz de ser.

ENRICO
Então?

GABRIEL
Bom, eu tenho que desenvolver todo meu potencial em algum trabalho construtivo que se qualifique dentro dos meus interesses. Eu tenho que ser sensível o bastante diferenciar meus desejos profundos dos meus instintos de auto-satisfação instantânea. Eu tenho que prestar atenção as necessidades daqueles de quem eu gosto e nunca me sentir importante ou desprezível demais para ninguém. Basicamente eu tenho que não ser um grande imbecil.

ENRICO
Ah, mas isso é simples!

GABRIEL
Não é não. É doloroso e frustrante. Eu estava batendo com a cabeça na viga antes de você chegar.

ENRICO
Isso explica muita coisa. É normal, você não tem tudo ainda, mas qual seria a graça? Eu garanto que se não fosse por todas as sarjetas, hematomas, puteiros, dívidas, infecções, horas perdidas, rejeições e fracassos patéticos... o que eu ia dizer... Ah, a sua varanda não seria tão bela.

GABRIEL
Você ta parecendo um livro de auto-ajuda

ENRICO
Merda! É verdade! Ok, que tal isso. Vamos lá, por partes? Você não tem a varanda, a espingarda e... você sabe. Mas quanto ao resto, você está se saindo bem. Então, vamos pegar duas cadeiras de praia, uma caixa de cervejas e sair desse porão imundo.

GABRIEL
Tá bom.

ENRICO
Mas mantenha a roupa de palhaço. Não quero privar ninguém disso.

GABRIEL
Tem um pomar também... na frente da varanda. Com pitangueiras, goiabeiras e aquelas frutinhas roxas. Nunca sei se é amora, a
meixa ou framboesa.